Romances termináveis e intermináveis: Baumgartner, de Paul Auster
O último romance de Paul Auster é um exercício mais claro de aproximação àquela exigência interna de incompletude
Talvez seja o caso de começar sugerindo que todo grande escritor mereça um livro inacabado para chamar de seu. Em casos mais agudos, tal estatuto é alcançado por uma intervenção externa à literatura: foi assim com 2666, por exemplo, cuja produção fora interrompida pelo adoecimento exponencial de Bolaño, mas também com O homem sem qualidades, que se viu órfão de seu autor após Musil adoecer em exílio. Ambos, romances enciclopédicos – textos que, como o próprio Bolaño apontara, seriam melhor descritos como “monstruosos”. Monstruosidade essa que seria impensável de abordar sem levar em conta em que medida seu não-fim ajudou a constitui-las enquanto grandes obras. Monstruosidade cuja morte prematura de seus autores parece acrescer um dado sedutor, quase profano, àquele que se aventura a lê-los – em casos como os de Bolaño e Musil, somos assombrados pela pergunta pelo final à mesma medida que por ela somos movidos. Chegar ao fim de 2666 ou O homem sem qualidades é, de certa forma, invadir um terreno póstumo, o caráter artificial de seus ponto-finais sendo constantemente pervertidos pelo leitor.
Mas há casos em que tal estatuto se atinge como uma exigência interna ao gesto literário posto em jogo. Há casos onde o fracasso em terminar, mais do que demonstração de desleixo, aponta o triunfo em tornar explícita a artificialidade inerente a todo fim. Como se, ao fim, o golpe final de todo escritor almejasse não exatamente encontrar um final, mas encontrar o ponto em que um final já perca razão de ser. Quem talvez tenha mais bem compreendido a relevância desse gesto tenha sido Kafka – o padroeiro dessa peculiar linhagem de escritores de não-textos, digamos. De pequenos contos a romances, incluindo as obras ditas acabadas, toda sua obra parece fragmentária. Finalizar seria, afinal, não mais escrever. A suspensão do fim, a permanência no fragmento, ao invés, seria como que a insistência em não-escrever – escrever um texto cuja repressão do fim testificasse a compulsão por continuar escrevendo.
Lançado um ano antes de sua morte – preservando assim seu caráter dito acabado –, o último romance de Paul Auster me parece seu exercício mais claro de aproximação àquela exigência interna de incompletude. Trata-se de um romance em que os fios narrativos jamais se enodam; as personagens são trazidas e abandonadas de maneira abrupta; em que o prolongamento do fim passa a ser ele mesmo um recurso estilístico. Uma narrativa cuja narratividade, ao seu modo, se esfacela quanto mais nela adentramos.
Tal estratégia não foi de todo bem-recebida, no entanto. Críticos de língua inglesa não se furtaram de apontar a suposta “não-resolução” do livro. Lê-se por exemplo na crítica de A. Cummins, publicada no The Guardian, que “o livro não tem o número de páginas necessário para solucionar o vasto número de tópicos que põe em jogo”.[1] Para leituras como essa, cujo valor estético se mede pela equação entre “números de páginas” e “tópicos abertos”, os labirintos de Bolaño e Musil talvez sejam a mistura perfeita entre céu e inferno. Elas podem afinal se deleitar com a profusão de temas e personagens, em toda a sua monstruosidade, sem perder jamais a esperança implícita de que, em algum momento, todo aquele caos uma hora teria fim. Toda aquela grafomania eventualmente se justificaria, e eximiria o sacrilégio de um texto não-resolvido.
Embora não deixe de ser sintomático que o romance seja julgado por sua não-resolução, posições como essa não parecem vir do nada: elevado à fama por sua Trilogia de Nova Iorque, exercício de Auster no romance-detetive, nada mais estranho àqueles que buscam a discursividade detetivesca que uma narrativa cujos plot-holes não se remendem. Nada mais estranho que um romance em que insistentemente se quer roer os remendos até torná-los fragmentos.

Mas a que se deve essa exigência interna de incompletude, em Baumgartner? Eis algumas pistas (talvez agradem os críticos-detetives). O romance acompanha um professor aposentado de filosofia, cuja morte da esposa continua a persegui-lo após dez anos. Embora o luto do protagonista, que empresta seu nome à obra, seja certamente o grande tema do romance, a novidade aqui aparece no modo como Auster decide escrevê-lo. Uma maneira de diferenciar seu gesto seria dizer que, ao invés de escrever sobre o luto, o autor se decide por escrever o luto. A escolha parece acertada quando vemos suas estratégias estilísticas. Por exemplo, ainda que dê preferência à narração em terceira pessoa, o narrador de Auster é decididamente parcial e inconfiável, e se mostra decisivo para nos impor à condição de instabilidade fenomênica que a perda de um objeto eleito produz. Num expediente familiar aos leitores do português – Saramago e Machado sendo dois grandes nomes que vem à mente –, Auster faz questão de percorrer a memória de Baumgartner sem ceder à tentação de lhe impor uma linearidade alheia a uma experiência constitutivamente marcada pela sua perda. Ao assumir cortes abruptos, introduzir interesses amorosos sem antes lhes abrir caminho narrativo pelas beiradas, abandonar anedotas sem mais para quê, a experiência de leitura parece acompanhar aquele que seria o movimento mnemônico típico do luto.
Decerto Auster não é Kafka – há momentos em que aquele cede e assume tons quase pedagógicos. Ele se decide por nos explicar, por exemplo, que um interesse intelectual recente de Baumgartner esconderia em verdade uma metáfora para sua própria condição atual. Esta lhe rende demoradas páginas de musculação simbolista, saturando o que, deixado ao leitor, poderia se mostrar um artifício eficiente de reconfiguração do quebra-cabeça em que o protagonista se encontra. Explicitada, contudo, a metáfora passa a ter o efeito estético de uma piada a qual precisamos acrescentar uma nota de rodapé para se fazer entender. Ainda assim, em seus momentos altos, mais do que um romance sobre o luto, em que fins e começos se espelham mutualmente, em que descrições são explicações de um desenvolvimento progressivo, Baumgartner se apresenta muito mais como um convite a experienciar esteticamente um afeto que nos descentra de expectativas de “resolução”, de fim sem restos.
Experiência essa que se conjuga sobretudo pelo desconforto em acompanhar as peças de um quebra-cabeça sendo não exatamente remontadas, mas reconfiguradas. Boa parte dessas peças são homônimas à esposa de Baumgartner: Anna. Não poderia ser diferente. Tradutora e poeta de ocasião, conhecemos a voz de Anna apenas pelos manuscritos vasculhados por seu marido. Ao longo desses filetes de memória, pinçados de uma vastidão de textos eles mesmos não-textos, outro expediente estilístico de Auster se mostra para nós: as descrições psicológicas de Baumgartner partilham com os rascunhos de Anna um certo ritmo, delicadamente exposto pela “sinfonia” composta em sua máquina de escrever. E, mesmo que haja passagens que nos descrevam o quão íntimos eram o casal, são nos momentos em que resiste a explicá-los que Auster mais competentemente sabe expressá-lo. Ao invés de escrever sobre eles, a escrita de Anna e o pensamento de Baumgartner se mostram através da ubiquidade de vírgulas e polissíndetos.
Mas o que poderia ser sinal de uma telepatia sintática, digamos, logo se mostra como a gramática mesma pela qual o aferramento de Baumgartner a Anna se organiza. Como se sua óbvia admiração pela erudição da esposa, presente sobretudo pelas recorrentes notas de pesar daquele acerca de sua de decisão por não publicar seus poemas, passasse a colonizar a totalidade de seu processo mental. Como se, ao pensar no ritmo em que Anna escreve, Baumgartner procurasse realizar o desejo de provavelmente todos aqueles que já perderam um ente querido: deixar-se colonizar por sua voz. Isso se sugere pela maneira como inicialmente fala de seu interesse amoroso tardio, Judith: num esforço de intelectualização dos sobrenomes de Anna (Blume) e o duma personagem em seus poemas (Feuer), era como se “em um de seus primeiros poemas, Anna houvesse previsto seu futuro romance com uma mulher chamada Feuer”. Contaminando-a com o traço de Anna, Baumgartner traz à tona assim o funcionamento maior da maneira como tinha até então lidado com a perda daquela: também ele se torna, afinal, um de seus personagens.
Enseja-se agora uma quase irresistível menção a Freud. Segurei-a até aqui. Façamo-la pelas avessas, no entanto, tangendo a tentação em explicar sobre “o quê” o romance é. Pois mais do que em Luto e melancolia, talvez o leitor encontre ignição crítica noutro texto psicanalítico, a saber, Análise terminável e interminável. Há uma lição estética implícita nesse texto tipicamente clínico, a qual parece vir a calhar para vermos na incompletude mais do que mera não-finalização. Nele Freud nos ensina que talvez a única forma de terminar seja nos desprendendo daquilo que “terminar” pode vir a significar para nós. Assim como numa análise, muitas vezes a maneira mais importante de terminar um romance seja com uma profusão de perguntas e a incitação para genuinamente nos interessarmos por elas. “Fim” passa a significar um convite a que continuemos desejando, a que continuemos escrevendo, como uma exigência interna a assumir uma narrativa por definição inacabada – agora apenas com um pouco menos de confusão acerca do ritmo que assumiremos quando nossos objetos padecerem. Se nos atentamos a essa lição freudiana, talvez os críticos ingleses estejam certos – o último Auster nos faz desejar uma sessão a mais.
Pedro Pennycook é doutorando em Filosofia na Universidade do Kentucky.
[1] https://www.theguardian.com/books/2023/oct/30/baumgartner-by-paul-auster-review-amiable-aimlessness