Rumo à globalização?
Opor a razão ao sectarismo implica tomá-lo como uma manifestação social: ele exprime e anestesia as rupturas culturais. Fazer parte de uma ou outra igreja é menos importante que o ambiente do culto onde se encontram adeptos e se cruzam temas místicosDenis Duclos
O traumatismo provocado pelo avanço da globalização está sendo subestimado. Há quem se surpreenda com a profusão de grupos iluminados, muitas vezes suicidas, como se esse fenômeno fosse estranho à religião do dinheiro e do avanço tecnológico. Ora, há um parentesco entre a seita, que exige um consentimento íntimo a um grupo resumido do gênero humano e a adesão ao mercado universal, sociedade ao mesmo tempo global e fragmentada em células consumistas tornadas narcisísticas .
As “religiões emergentes” exprimem aspirações de convivência que contrastam com a frieza do sistema triunfante. Mas, basta olhá-la e a seita se parece com a grande sociedade, aliando obrigações delicadas e o insistente palavreado da propaganda. E, se é difícil identificar a banal servidão voluntária, não é mais fácil separar a livre escolha do adepto face à influência psíquica do guru.
Uma grande seita contra uma pequena
É claro que o cidadão que respeita os direitos humanos recusa os agrupamentos coercitivos, manipuladores, e mesmo criminosos (captam recursos, utilizam crianças, agridem fisicamente ou cometem graves atentados psíquicos [1]). Mas o que fazer quando a coerção é auto-administrada, sob a pressão de regras monásticas ascéticas ? Quando a “lavagem cerebral” atribuída a gurus diabólicos se revela como parte dos fantasmas de membros das elites — como os trinta e nove ricos californianos de “A Porta do Céu” que “abandonaram seus receptáculos físicos” em março de 1997, ou os membros (médicos, banqueiros, ministros) da Ordem do Templo Solar (OTS)? [2] E a quem processar por “incitação ao suicídio” quando as pessoas continuam a se matar, embora seus guias já tenham desaparecido há muito tempo? O que denunciar quando a sociedade — bula proposta pelos cultos sectários — é apenas uma cópia microscópica da seita planetária que convoca a pessoa a consentir tornar-se um “gentil membro da humanidade”? O que pensar, por outro lado, quando uma comunidade iluminada por um mito ingênuo permite a desempregados deprimidos, parecendo crianças abandonadas, encontrar uma reinserção útil, pelo menos do ponto de vista deles?
Querer conter o sectarismo por meio da batalha judicial — último recurso de uma esquerda desprovida de seus ideais? — parece covarde e arriscado quando isso envolve as liberdades de associação tão duramente adquiridas. Quanto à psiquiatrização das “patologias sectárias”, equivale a atribuir uma super-experiência a militantes parciais (apesar de seus diplomas de medicina e seu civismo peremptório). Arrisca-se — tal como na psiquiatria soviética de sinistra memória — apoiar uma grande seita social contra uma pequena, fazendo crer que toda resistência ao projeto de globalização seria anormal, sob o pretexto de ” desacreditar a realidade”. [3] Ora, de que forma a fidelidade à ordem liberal seria uma garantia de realismo? Os ideais universais não mostraram — como também os da nação — que podiam estar carregados de irracionalidade coercitiva e entupidos de utopias insensatas?
A busca do extraordinário
Opor a razão ao sectarismo iluminado implica em tomá-lo como uma manifestação social: ele exprime e anestesia, num repente, as rupturas culturais. [4] A multiplicidade de seitas forma um mercado que abriga o mal-estar da civilização. Fazer parte de uma ou outra igreja é menos importante do que o vasto ambiente do culto onde se encontram os futuros adeptos e personalidades influentes e onde se cruzam os temas místicos.
Os membros da OTS (os da Porta do Céu ou os do “centro holístico Isis “, que tinham programado seu fim, nas Ilhas Canárias em janeiro de 2000) haviam manifestado, antes de sua adesão fatídica, um vasto inventário de interesses que ia da homeopatia até o neodruidismo, das experiências à porta da morte aos ritos de ressurreição de Osíris e ao espiritismo de Kardec, às lendas do rei Artur, ao retorno dos Templários, à Rosa Cruz, de anjos a extraterrestres. Como Umberto Eco previa em seu livro O Pêndulo de Foucault, esses elementos formam uma mitologia contemporânea em que muitos buscam o extraordinário. Alguns pretendem fundir o real e o imaginário mas a idéia de uma “passagem” do seu “invólucro carnal” não se impõe sob a influência exorbitante dos gurus: ela viria a princípio de uma cultura trans-sectária difusa, banalmente perpassada por raios de inquietação frente ao desastre ecológico.
Reações à crise da cultura
Como outras atividades no mundo da mercadoria, a adesão à seita tende à consumação oportunista: inúmeros japoneses praticam ao mesmo tempo o xintoísmo (mais “mágico”), o budismo (mais filosófico), e até o catolicismo (para o casamento). Aprecia-se também as seitas, mais “existenciais”, que devem, para agradar, rivalizar em originalidade. Assim, o buda reencarnado Ryuho Okawa se apóia em Nostradamus. Nos Estados Unidos, Hollywood dá o exemplo: fala-se da vedete que antes era “New Age” e agora se filia ao lamaísmo, ou de uma outra que descobriu a Cabala. O mesmo acontece na África ou nas culturas afro-americanas: muitos adeptos passam de um culto a outro, mas a maioria acumula filiações a uma denominação religiosa e a participação em grupos rituais — isso sem falar do fato de recorrerem a curandeiros e feiticeiros. As representações(os espíritos) também circulam entre tradições e deuses inspirados.
Nesse caldo heterogêneo, o vasto campo de grupos de cultos pode ser descrito como um triângulo cujas pontas simbolizam três grandes reações à crise da cultura: aceitá-la, criticá-la ou dela fugir. [5] Pode-se chegar até o movimento científico, técnico e comercial para apoiá-lo espiritualmente. Pode-se, por outro lado, condenar a decadência daqueles que estão no poder. Enfim, pode-se decidir que é preciso “acabar com tudo” submetendo-se a um julgamento terminal. Expressas por seitas, estas três posições amplificam atitudes conhecidas na sociedade global, como a corrida pelo progresso, a luta contra os arcaísmos, ou ainda apostar entre a vida ou a fortuna — lutas por independência financeira, corridas especulativas etc. Nisso, também, não se separam da sociedade, mas talvez exagerem suas tendências profundas.
A TV, o novo altar doméstico
Numerosas seitas, por exemplo, não pretendem recusar o progresso, mas incentivá-lo. O mundo moderno está incontestavelmente relacionado à educação? Eis a Ciência Cristã, que desde o início do século XX propõe o aprendizado racional da religião. A Igreja da Cientologia pretende dominar ” o saber sobre o saber” e superar o atraso do conhecimento do homem com relação à natureza. E há seitas que constróem escolas e laboratórios, financiam programas de pesquisa, recrutam no campus universitário, entre estudantes e pesquisadores dos mais brilhantes — entre elas, a Verdade Suprema de Aum Shinrikyo, budismo com verniz apocalíptico mas centrado no aumento das capacidades na vida moderna.
Os meios de comunicação são fundamentais na nossa existência? Eis os tele-evangelistas norte-americanos ou brasileiros que superam os mais populares animadores de auditórios e que — ó escândalo! — exigem uma remuneração tão considerável quanto aqueles! A tela da TV ou do computador é, evidentemente, o novo altar doméstico da religião consumista? Eis que a Sokka Gakkai (“sociedade de criação de valor”, que diz ter dois milhões de famílias filiadas) propõe colocar funcionamento em todos os lares um aparelho muito mais interessante: o altar de Mandala, onde se recita o Daimoku (adoração do sutra de Lotus).
Seita estruturada em “ministérios”
A Internet coloca em contato milhões de indivíduos ? Eis que florescem “ciberreligiões”, “tecnocultos’ e “tecnosofias”: mais de 20.000 foruns religiosos recenseados em 1997, na Internet. E também o “Instituto de Pesquisa da Felicidade Humana” (seita sincrética japonesa) que promete ligações por satélite entre os adeptos. E eis Aum de novo, fabricando relês de transmissão de pensamento entre o guru e seus discípulos.
É claro que o modernismo sectário pode conduzir à violência (como em 1995, quando os membros dessa poderosa seita espalharam gás sarin no metrô de Tóquio matando cinco pessoas) mas, a longo prazo, acaba se adaptando. Aum, por exemplo, dispõe hoje de dezenas de lojas de informática como é o caso também de comunidades de diferentes cultos fascinadas pela rede. Essas comunidades ritualizam a afinidade entre a seita e o comércio descrita por Max Weber em certas comunidades protestantes em séculos anteriores.
A tecnologia militar demonstra sua superioridade? Depois que o Exército da Salvação (durante muito tempo demonizado como seita) veste o uniforme para combater a miséria como num campo de batalha, o tema é utilizado com outros fins: a estranha igreja de Uganda ” Holy Spirit Mobile Forces” (1993-1996), por exemplo, organizou-se em meio à guerra civil como um exército moderno em luta, dotado de uma hierarquia militar high tech. [6] Por seu lado, Aum Shinrikyo, estruturada em “ministérios”, dispunha de uma “agência de defesa”, procurada por dezenas de membros do exército japonês. Aliás, o atentado do metrô teve muito mais a ver com uma “operação psicológica” do que com uma loucura escatológica: foi programado clandestinamente — antes de ser denunciado pela CIA — para corroborar a profecia do guru (grande admirador das manobras de Hitler) sobre um próximo ” desastre nacional” que não se poderia — supunha-se — atribuir à seita.
Um cruzado da “boa ciência”
E, finalmente, a sociedade valoriza o sucesso pelo trabalho em grandes organizações disciplinadas? Tem-se a Associação pela Unificação do Cristianismo Mundial (dirigida pelo reverendo Moon) que adota esse princípio, logo seguida por inúmeros movimentos espirituais riquíssimos: a ponto de nos perguntarmos se o modelo da seita não inspira agora os métodos de gerenciamento nas maiores empresas.
Em certo sentido, é estranho que a vingança pública contra as seitas se concentre em orientações tão em simbiose com a “grande sociedade”. Na seita Moon, na Ciência Cristã, ou na Igreja da Cientologia, na verdade, tudo está bem próximo do “consentimento forçado” que uma empresa internacional (ou uma organização civil ou militar) obtém correntemente de seus subordinados. Nelas encontramos a mesma crença ingênua nas técnicas manipulatórias: há multinacionais americanas que ainda recorrem ao detentor de mentiras, como faz a Cientologia. [7]
Crença que parece ser compartilhada por um cruzado da “boa ciência”, anti-seitas, Jean Marie Abgrall, [8] que atribui um valor científico às “experiências de incitação” de Milgram (que não passam de explorações teatrais do sadismo de cada pessoa) para lhes opor um “descondicionamento” não menos suspeito.
O poder “mágico” da ciência
Não seria a virulência com relação às seitas modernistas motivada, em sua origem, por uma concorrência forte pelo frutuoso mercado de uma ciência que se presume todo-poderosa? Assim se explicaria, por exemplo, como em vários países certos psicoterapeutas militantes da “verdadeira ciência” tentam condenar, em nome das mesmas categorias pseudocientíficas, tanto as seitas como as escolas de psicanálise independentes (que se recusam a enquadrar-se nos moldes da psiquiatria anglo-saxônica padronizada). É fácil, portanto, para as seitas, acostumada com litígios, devolver a seus censores a acusação de intolerância coercitiva — enquanto permanecem mais discretas sobre práticas evidentemente inadmissíveis a qualquer Estado soberano: informações ou tráfico de influência a serviço de potências estrangeiras.
Todo esse jogo entre irmãos inimigos esvazia a questão principal: a do recurso ao “cientificismo” — sectário ou pseudo-acadêmico — em matéria de costumes. O estranho uso que a seita faz do ideal científico não é, na verdade, a única coisa que está em causa: todos os poderes (econômicos e políticos, judiciários e policiais) são tentados pelo recurso ao poder “mágico” da ciência, um risco, a longo prazo, a democracia e a liberdade.
Desde as reformas protestantes (e os movimentos judaicos hassídicos — a piedade) que as seitas “críticas” compartilham um outro traço moderno: elas se atêm à autoridade paternalista. Entre evangelismos (testemunhas da boa nova), metodismos ou batismos (técnicas salvadoras, ritos de conversão) e pentecostismos(abrindo o acesso de cada um ao Espirito Santo), fica evidente um individualismo “democrático”, ligado ao desejo de saber. Pertenceria a santidade, a salvação, ao clero (derivado do grego kleri: herdeiros, escolhidos), a pessoas merecedoras (homens bons, como diziam os Catares de suas elites) ou também à população de fiéis?
Pentecostais na África
Uma vez iniciada, a questão se alimenta a si própria, pois ao repudiar as grandes Igrejas devido a uma mediação muito hierarquizada, cada novo grupo é por sua vez confrontado com o surgimento de um clero, guia de leitura, depositário dos rituais ou exemplo do ideal comum. As afirmações de igualdade (congregacionismo) não suprimem o poder. Desde o início do século XX, a dinâmica viria dos pentecostais, inclusive no interior do catolicismo americano e europeu (através da renovação carismática). Ao aceitar as mais variadas manifestações do Espírito Santo sobre qualquer pessoa (por ocasião de reuniões onde a emoção do transe é reconhecida), esses encontros liberam na verdade uma boa margem de individualismo.
Entretanto, a evolução para a pluralidade das identidades não fica só nisso: indo mais além da referência unificadora da Escritura, há um retorno aos lugares, aos modos de vida, às paixões, aos santos, aos caracteres nacionais, aos mortos etc. Foi assim que, desde a década de 30, a ignorância crassa da história esqueceu as primeiras incursões pentecostais à Nigéria, as missões do Exército da Salvação no Congo Belga ou as das Testemunhas de Jeová em Zâmbia, sempre pelas mesmas razões: a criatividade das culturas africanas diante das ondas sucessivas de estrangeiros — cristãs ou islâmicas — e a capacidade delas se traduzirem no “idioma” dos conflitos espirituais e práticas de cura.
A sociedade toma o lugar de Deus
Desde então, os milhares das atuais seitas — às vezes efêmeras — da África (oriental, central e do sul) ou os grupos de cultos brasileiros (reivindicando ou não uma origem africana, como o famoso candomblé, estudado por Roger Bastide [9]) não perpetuam somente os antigos proselitismos (nem são, aliás, incompatíveis com as Igrejas tradicionais). Elas manifestam uma segmentação “libertária” do mercado de ideais da sociedade consumista mundial, resistindo à mobilização dos períodos trabalhistas. E mesmo assim, quando um quarto da população guatemalteca está sob a influência de seitas de origem norte-americana não se observa entre os fiéis nenhuma mudança significativa em direção a uma “performance econômica” supostamente engendrada pela ética puritana! [10]
Os pentecostais são derrotados em sua própria propensão à expressão plural (o “falar em línguas”): uma variedade de certa forma impensável de ritos, danças, representações taumatúrgicas, que são repassados pelo colonizado ao ex- colonizador. Isto, apesar do anátema e da diabolização — como nos Estados Unidos, onde certos cultos sul-americanos supostamente de origem Yoruba (Nigéria) são objeto de boatos a respeito de sacrifícios humanos e crimes sexuais, nada diferentes das acusações feitas aos cristãos na Roma antiga ou aos judeus na Europa medieval.
Quando os cidadãos pretendem verificar o grau de tolerância de tais “cultos livres”, eles se assemelham aos dignitários decidindo as manifestações proféticas ou identidades comunitárias no seio de sua Igreja. Eles então fazem de maneira precipitada a comparação entre a “grande sociedade” das quais participam e a seita totalitária que denunciam. Encarnam, portanto, a previsão de Émile Durkeim: a sociedade toma o lugar de Deus.
Caça às bruxas
E será que quem propõe uma abordagem puramente judicial das seitas duvida em algum momento que elas darão o troco, exercendo a censura com base jurídica — como o fazem a Cientologia, combatendo a psiquiatria, ou a Tradição, Família e Propriedade, criada pelo brasileiro Plínio Correa de Oliveira, sobre as liberdades artísticas?
O ponto em comum entre a intolerância majoritária e o sectarismo minoritário não é novo: a partir da perseguição aos paganismos, a repressão aos desvios emocionais emana não só das autoridades como de grupos sectários, numa dialética da exclusão. Por exemplo: as regiões européias mais marcadas pelas radicalizações político-religiosas (a Suíça, durante seu processo de criação, e as Alemanhas despovoadas pela guerra religiosa dos Trinta Anos) foram palco de mais da metade das condenações de “bruxas” na Europa. [11] Atualmente, é nas regiões impregnadas pelo sectarismo fundamentalista (nos Estados Unidos e na América Latina) que ocorrem alguns processos por inacreditáveis crimes sexuais supostamente associados à bruxaria.
E finalmente há pessoas que defendem ser uma loucura querermos continuar a ampliar nosso conhecimento sobre a natureza e a vida — e que é melhor parar com essa aventura. O fim imaginário de uma história que escapa à nossa compreensão é uma consolação banal mas existem três maneiras de concretizar essa fantasia: ou se decreta que o tempo pare, ou se espera por um acontecimento salvador terminal, ou, enfim, se provoca um: precepitando-se naquilo que não se pode chamar senão um ato coletivo de suicídio.
O apocalipse está presente
Adeptos da teoria de que o tempo deve parar, menonitas (os amish) da Pensilvânia ou hutterianos do Canadá vivem como os camponeses suíços do século XIX. Certos modelos monásticos (em várias religiões) recorrem ao tempo imóvel da contemplação, ou buscam, como no budismo, a abolição do ciclo de vida ou morte. Nesta perspectiva se colocam várias novas tentativas, às vezes ligadas a uma comunidade agrária. Embora as autoridades os persigam, esses grupos fechados (pela sua pretensão de reconstruir filiações fora de políticas familiares e educativas oficiais) raramente são envolvidos em autodestruição e o tema do apocalipse está presente mais como uma afirmação defensiva (segundo a antropóloga britânica Mary Douglas) do que como um objetivo.
Como outras Igrejas adventistas, as célebres Testemunhas de Jeová praticam a espera de um acontecimento que resolva os sofrimentos. A postura não tem nada de novo: a fundação do cristianismo foi também envolvida pelo desejo de um fim de mundo no tempo em que a aceitação da unidade da civilização — o Império — era insuportável para muitos. Entre os hassídicos contemporâneos, o movimento Lubavitch espera o retorno de um rabino como Messias.
Euforia coletiva do martírio
O problema destes grupos é o fato da data prevista ter vencido, o que impõe readaptações no imaginário coletivo. Por exemplo, o que acontecerá com as Testemunhas de Jeová quando tiver desaparecido a última pessoa que viveu a guerra de 1914-1918? Pode-se supor que, para se preservarem como denominação estável, elas reorganizem sua perspectiva escatológica, da mesma maneira que deixaram para trás as datas anteriormente escolhidas para o Juízo Final.
A via do suicídio coletivo também não é nova, embora os meios de comunicação e os movimentos anti-seitas sugiram o seu início numa série de eventos contemporâneos: envenenamento voluntário, tal como o ocorrido na Guiana em 1978, quando morreram 918 membros do Templo Do Povo, paróquia evangélica norte-americana dissidente dirigida pelo pastor Jim Jones. A orientação pelo fatal desenlace está ligada no passado: a busca do martírio, como no início do cristianismo, nas seitas guerreiras muçulmanas ou nos movimentos messiânicos brasileiros do século XIX, quando seus membros se ofereciam à soldadesca vinda para os reprimir. Longe de ser um fato supondo exaltações isoladas, o desejo de acabar com o mundo (vale de lágrimas, inferno, fardo insuportável etc.), numa euforia coletiva de pessoas se expandiu de tal forma que se recorreu ao temor da condenação ao inferno para controlá-lo!
Em defesa do “direito de morrer”
O suicídio coletivo também expressa resistência (os combatentes judeus que se recusaram a render-se aos romanos na fortaleza de Masada, os camponeses gregos que se jogaram em precipícios para não caírem nas mãos dos turcos etc). Durante o ataque à fazenda em Waco, no Texas (1993), o inegável projeto de suicídio orquestrado pelo jovem guru David Koresh transformou-se num martírio em combate, com a desastrada intervenção armada do governo norte-americano. Durante as carnificinas realizadas, na primavera de 2000, na seita ugandesa “Restabelecimento dos dez mandamentos”, não há como ignorar a semelhança do meios utilizados (ordem de reunir, silêncio obrigatório, jejum, contenção, ginástica associada a rezas intensas) com o martírio em serviço comandado e exigido por chefes de outras seitas (tais como os Exércitos do Santo Espírito de Alice Lakwena, de Severino Lukoya ou de Joseph Kony). Nessas imitações de exércitos disciplinadores está presente também a “redenção” de ex-militares, os mesmos que são responsáveis pelos massacres tribais. Na África oriental, por exemplo, é na linguagem militar-religiosa, e não na do guru, que se traduz a vontade de auto-surpressão, morrendo numa guerra civil sem fronteiras nem fim e dando uma significação simbólica à Aids.
A autodestruição é raramente vivenciada como tal. Na maioria das vezes ela é a recusa da mortalidade do corpo sexuado, como viagem para uma outra incarnação. Estaríamos tão longe assim (embora recusando essa proximidade com indignação) da defesa do “direito de morrer” e do “dever da eutanásia”, que crescem com o envelhecimento das populações mais bem cuidadas?
A seita suicida representa um tal escândalo para os membros da sociedade-mundo (da qual ela parece uma negação absoluta) que suscita uma intensa “negação da realidade”. Pode-se verificar, por exemplo, que a cada novo suicídio coletivo os meios de comunicação supõem que os gurus fugiram após massacrarem seus adeptos. O discurso muda pouco quando se esclarece que entre as primeiras vítimas estão esses gururs (por mais crápulas que sejam): Jim Jones, David Koreh, Marshall Applewhite, o guru da “Porta do Céu”, os dois chefes do OTS, Luc Jouret e Jo di Mambro, e muito provavelmente também o guru de Uganda Joseph Kibwetere, cujo cadáver foi reconhecido por um parente próximo. Evocam-se então misteriosas intervenções (a máfia, os serviços secretos), uma guerra pela hierarquia, dificuldades financeiras etc. Quando uma seita executa o seu terceiro suicídio (como a OTS), em vez de reconhecerem, enfim, a autodestruição inspirada pela crença compartilhada…, os meios de comunicação se calam. Assim como também não admitem o desespero dos grupos indígenas brasileiros ou mexicanos em que famílias inteiras se enforcam ou se envenenam ante a possibilidade de ter que mudar de vida.
O sonho de “deixar o corpo e o mundo”
Esta recusa por parte dos orgãos ideológicos da modernidade (que corresponde à recusa de realidade atribuída às seitas e à recusa destas últimas do caráter de suicídio de suas “partidas”) deve ser analisada por aquilo que ela é: uma recusa em admitir que os membros de uma sociedade (ainda que seja microscópica) possam se associar livremente para desaparecer. Aceitar, na verdade, colocaria uma questão angustiante: não existiria uma tendência trágica na perseguição de um ideal comum tornado absoluto? A militarização desesperada de sociedades como a França napoleônica, a Alemanha imperial ou nazista entre 1914 e 1945, ou o “clube” dos grandes antagonistas nucleares prestes a se exterminarem durante a guerra fria , não seriam signos insistentes dessa tendência? Não a sentimos sendo construída na idéia de um mundo virtual, inteiramente mobilizado por empresas multinacionais e pela especulação na Bolsa? Não estaria ela dispersa no mercado universal?
Quando se rechaça o próprio conceito de suicídio coletivo, preferindo a fórmula mais segura de “manipulação mental”, é porque no fundo ele sugere que o coletivo planetário poderia ser… uma forma ulterior de seita. Mas como reconhecer que a humanidade inteira possa brincar com a ruína ou procurar se suprimir?
Resumindo, grupos “artísticos” tais como ravers, new age e zippies, que navegam entre o libertário ecológico, o cyberpunk, a utopia e a ficção científica, que tornam ridículo o desejo de desastre e de desencarnação (deflesh: substituir a carne por um artefato) ao imaginarem a humanidade criogenisada, “teleconectada” em redes virtuais ou reencarnada em outro planeta, nos parecem mais realistas que os censores que negam o não-sentido gerado pela sociedade ultra-liberal informatizada. [12] Na verdade, eles sugerem que não é tanto o sonho de “deixar o corpo e o mundo” que é anormal, que o risco grave que leva alguns a realizarem sua fantasia está onde outros atuam sem deixar a vida, ou melhor atuam para melhor encontrá-la .
Em “Holy Smoke”, um filme bonito e perturbador, Jane Campion, da Nova Zelândia, mo
Denis Duclos é antropólogo e diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS, na França. Autor de “Éloge de la pluralité – Conversion entre cultures et continuation de l’humanité”, Bibliothéque de la Revue du Mass permanente, Paris, 2012