Sabendo usar não vai faltar
Para acolher em nosso planeta mais 4 bilhões de seres humanos no futuro, com moradia, educação, saúde e alimentação, é preciso energia. Ao invés da inquietação com a alta do barril do petróleo, uma opção é aprendermos coletivamente a diminuir o seu consumoBenjamin Dessus
Aceleração inquietante da freqüência e da violência de ciclones devastadores; calor excessivo atribuído ao efeito estufa, pelo qual, diz-se, as energias fósseis seriam responsáveis; operações no Oriente Próximo assim que os Estados Unidos entrevêem o menor risco de falta de petróleo suscetível de ameaçar seu estilo de vida, um pouquinho que seja; temor de um novo Chernobil ou de um atentado suicida à usina de tratamento dos rejeitos nucleares de Haia; preço do barril de petróleo nas alturas sem que se compreenda bem o porquê: os meios de comunicação regurgitam imagens cada uma mais inquietante do que a outra no campo da energia.
Deixados para trás, preocupados e sentindo-se vagamente culpados, os cidadãos ouvem o discurso de seus governantes, catastrofista e tranqüilizador ao mesmo tempo. Pinta-se-lhes um quadro, de preferência apocalíptico, dos perigos que os espreitam a curto e a médio prazo, mas se os acalma imediatamente: por pouco que exerçam sua solidariedade planetária apagando a luz quando saem do escritório, mandando alguns cobertores para os flagelados do Haiti e deixando, na França, que a EDF1, Total, Areva e o Ministério da Indústria tomem conta de seu futuro, podem dormir tranqüilos.
Pois as soluções estão ali, ao alcance da mão: energia nuclear limpa, fusão e hidrogênio salvarão definitivamente a humanidade daqui a 50 ou 100 anos, se forem iniciados com vigor os programas de pesquisa necessários. Enquanto esperam, os cidadãos devem moderar seu consumo individual, sem por isso questionar a necessidade de assegurar mercados confortáveis aos aparelhos mais vorazes em energia que os industriais oferecem, do veículo 4×42 ao ar condicionado. Aí entram tanto o emprego quanto a liberdade individual! Mas depois do sangue contaminado, dos organismos geneticamente modificados, da vaca louca e do 11 de setembro, o coração não pede, a dúvida se instala. E se estivermos no caminho errado, sob a pressão do liberalismo sem freios, do conservadorismo institucional, dos lobbies da energia e do cientificismo avançado ? Para tentar ver com mais clareza, convém tomar um pouco de recuo.
Política ineficaz
A segunda categoria de soluções sugere um desenvolvimento com sobriedade energética, atribuindo uma grande prioridade ao controle da evolução da demanda
O mundo conta com seis bilhões de habitantes, um terço dos quais em uma situação de desenvolvimento insustentável. Os demógrafos prevêem dois a quatro bilhões a mais antes do fim do século. O desafio é em primeiro lugar encontrar os meios de acolher em nosso planeta estes quatro a seis bilhões de seres humanos, de deixá-los morar, educar-se, ter saúde, alimentar-se, participar da vida social, etc. E para isso, claro, é preciso energia. Então, dizemos, vamos produzi-la sem medida, ao melhor preço possível e para todos, pois não há desenvolvimento sem consumo de energia. Além desta política ter-se mostrado ineficaz – já que ainda deixa atualmente dois bilhões de indivíduos à margem – traz um impasse em relação à rede de restrições que impõe a moderação desse otimismo da produção. Concomitante à mundialização econômica e financeira, apareceram os problemas globais de desenvolvimento e de fontes de recursos do planeta. No campo energético, isso traz :
o esgotamento dos recursos fósseis, que vai para as primeiras páginas dos jornais cada vez que o preço do petróleo, às vezes por simples razões de especulação financeira, ultrapassa os 40 dólares por barril;
o aumento do efeito estufa, do qual uma parte, amplamente majoritária, está ligada às emissões de gás resultantes da combustão do petróleo, carvão e gás;
os perigos específicos da energia nuclear civil: acidentes graves, proliferação e dejetos.
Diante destes fatores, duas categorias principais de cenário estão presentes. A primeira oferece uma visão do futuro construída com base num modelo de desenvolvimento centrado na produção, por abundância energética, com opções contrastadas de participação das diferentes fontes primárias no balanço mundial. Fundamenta-se na idéia de uma relação constante, vizinha da unidade, entre crescimento da demanda de energia e crescimento econômico.
Os cenários « abundantes » pressupõem uma mobilização anual de 25 bilhões de toneladas equivalentes de petróleo (tep), em 2050. Já os « sóbrios » se contentam com 15 bilhões de tep
Admitindo, sem complexos, que não se faz omelete sem quebrar ovos, essa categoria acumula riscos em níveis elevados e suas diversas variantes se distinguem apenas pela diminuição ou aumento de um dos perigos em relação aos outros. A segunda categoria sugere um desenvolvimento pela sobriedade energética, atribuindo uma grande prioridade ao controle da evolução da demanda. A partir de uma análise detalhada das necessidades do desenvolvimento e dos serviços energéticos necessários para a sua satisfação com menor consumo, mostra a vontade de rejeitar simultaneamente os principais riscos no tempo. Amplia a política energética, tradicionalmente consagrada à oferta, para o conjunto dos setores de atividade que estruturam a demanda. Dá assim a máxima atenção ao arranjo dos territórios e às grandes infraestruturas de urbanismo, de transporte, de habitação.
A verdadeira questão
Contrariamente ao que se crê com freqüência, é bem mais pelo volume de energia do que pela demanda maior ou menor deste ou daquele tipo de fonte de energia que estes dois tipos de visão se diferenciam. Enquanto que os cenários “abundantes” pressupõem uma mobilização anual da ordem de 25 bilhões de toneladas equivalentes de petróleo (tep), isto é, três vezes mais do que em 2000, e antes de 2050 batem de frente no muro dos riscos citados acima, os cenários “sóbrios” se contentam com 12 a 15 bilhões de tep na mesma data. Em uma prospecção para o ano de 2100, a divergência entre eles ultrapassa uma relação de 1 a 5.
A verdadeira questão, assim, não é escolher um pouco mais de energia nuclear ou eólica, mas de implantar políticas ambiciosas de controle da energia, sem as quais nada é possível. O que é verdadeiro para o mundo não o é em particular para a França onde a análise do balanço atual e das perspectivas é fatal: nos cenários que prolongam as tendências dos últimos vinte anos, mesmo recorrendo muito à energia nuclear e às energias renováveis, o consumo de energia fóssil e as emissões de gases com efeito estufa aumentam consideravelmente, quando seria preciso dividi-los por três ou quatro daqui a 2050. Sem contar o aumento muito rápido das quantidades de dejetos nucleares de longa vida e alta atividade e o aumento dos riscos de acidentes e de proliferação.
Opção de primeira linha
A verdadeira questão, assim, não é escolher um pouco mais de energia nuclear ou eólica, mas de implantar políticas ambiciosas de controle da energia, sem as quais nada é possível
O controle da energia não é, portanto, um complemento para a alma, como muitas vezes se quer fazer crer: é a opção de primeira linha. Joga bem para trás a questão da parcela de cada fonte de energia no balanço do fornecimento. Reconhecer este fato (como fazem aliás cada vez mais os governos – pelo menos no discurso) levará a extrair as conseqüências. Para tomar o caso da França, os fatores mais importantes de uma política de controle da energia não se situam prioritariamente na indústria, e sim no setor imobiliário (moradia e escritórios) e nos transportes: só eles representam 70% do consumo final de energia e mais de 80% das emissões de CO2 . E os principais determinantes deste consumo residem na escolha da infraestrutura, do urbanismo, da organização urbana.
Para os transportes, é preciso ao mesmo tempo frear a extensão constante do tráfego de passageiros e mercadorias, que torna totalmente ilusória a esperança de uma redução das emissões de CO2 – sejam quais forem as dinâmicas de progresso técnico e de transferência modal imagináveis – e de diminuir de modo drástico a dependência desse setor em relação ao petróleo. No setor imobiliário, o peso do consumo do parque imobiliário construído antes dos anos 1970 torna ilusória uma política de economia baseada apenas no desempenho energético da construção nova. E preciso então dar a prioridade ao parque imobiliário antigo.
Na França, os fatores mais importantes de uma política de controle da energia não se situam na indústria, e sim no setor imobiliário (moradia e escritórios) e nos transportes
Nestes dois campos prioritários, os parceiros principais não são mais as empresas produtoras de energia, mas sim os consumidores, os cidadãos e suas organizações locais ou temáticas, as comunidades locais e territoriais:
Os consumidores e suas organizações, porque qualquer esforço de sobriedade no comportamento pressupõe a aquisição de uma cultura nova e qualquer esforço em relação à eficiência pressupõe o acesso a uma informação descentralizada, independente dos lobbies produtores.
Os cidadãos e suas organizações, locais e temáticas, para participar da definição das ações de proximidade mais eficazes e mais equitativas e para criar as condições coletivas de sua implantação dentro do respeito da igualdade de acesso à informação, ao financiamento, etc,
As comunidades locais e territoriais, cujo papel é central tanto na definição e implantação de políticas de arranjo do território, de urbanismo, de habitat e de transporte suscetíveis de ter um impacto considerável a longo prazo no consumo de energia, quanto na animação e coordenação dos esforços descentralizados; na formação básica e continuada; no financiamento das operações; nas medidas de ajuste de preços e de solidariedade necessárias ao respeito da igualdade do acesso aos serviços da energia.
Um controle cidadão
É preciso inventar uma política baseada na prevenção e não na corrida à produção; na inteligência e na solidariedade coletiva e não nas certezas de peritos e querelas de produtores
A constatação é idêntica para as energias renováveis, descentralizadas por natureza, cuja difusão repousa muito amplamente na mobilização dos mesmos parceiros que atuam no controle da energia. Isto supõe evidentemente uma coordenação que permita assegurar a convergência das iniciativas, bem como as indispensáveis solidariedades territoriais, todas elas funções que carecem de representação nacional e de executiva central: publicização da prioridade do controle da energia; definição de objetivos nacionais globais, colocados em números, a médio e longo prazo; promoção e negociação em escala européia das medidas de coordenação e convergência; sistema de impostos; regulamentações, normas e marcas diversas; pesquisa e inovação, etc. Isto pressupõe também reorientar a pesquisa da oferta em direção à demanda, da tecnologia pura rumo à compreensão dos comportamentos coletivos e individuais.
Estamos bem longe da política tradicional, baseada principalmente numa oferta que envolve em primeiro lugar as grandes empresas produtoras de energia, os ministérios da indústria e das finanças. Em resumo, é preciso inventar uma política baseada na prevenção e não na corrida à produção ; na inteligência e na solidariedade coletiva e não nas certezas de peritos e querelas de lobbies de produtores; em uma definição renovada da noção de serviço prestado ao público, mais do que na aplicação do dogma tudo-mercado ou tudo-estado; na iniciativa local em vez da centralização. Os muitos cidadãos e políticos eleitos que clamam seus propósitos de novas práticas de democracia participativa aí encontrariam um exemplar terreno de aplicação concreta. É na base de suas experiências que poderá de fato construir-se uma política que não seja somente uma nova arbitragem ministerial entre lobbies produtores, mas uma verdadeira elaboração coletiva que envolva e comprometa os cidadãos.
(Trad. : Betty Almeida)
1 – Contrôle: David Reeb e Michael Kratzman, Musée National d? Israel em Jerusalém, outubro-dezembro, 2003.
2 – Photographies, 1905-1948, Museu de Arte moderna de Tel-Aviv, Julho-novembro, 2003.
3 – O presente estudo não aborda a arte palestina. Entretanto, pode-se sugerir que nessa assimetria forçada pela história, à noção fundadora israelense de retorno ao retorno, corresponde, nos palestinos, ao retorno sobre a partida, a de 1948. Ver o livro de Elias Sanbar Palestiniens, Images d?une terre et son peuple de 1939 à nos jours. Hazan, Paris.
4 – A lei do retorno: lei adotada pelo Estado de Israel em 1950 e que dá a possibilidade a qualquer judeu no mundo de “retornar” a Israel e obter sua nacionalidade. Direito de retorno: direito reclamado pelos palestinos expul