Sai a ONU, entra a OMC
A partir de 1989, e devido à hegemonia norte-americana em matéria de segurança, passaram a ser os cálculos de custo-benefício — feitos em Washington — que decidem, em última instância, quem pode matar quem sem riscos de contágioGeorge Ross
Não faz assim tanto tempo, ainda se achava que a potência econômica não era senão um dos trunfos nos jogos do poder. Hoje, no entanto, os jogos não servem senão para divertir a platéia na corrida frenética ao comércio. É nas reuniões do G7, da Organização Mundial do Comércio (OMC), do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Fórum de Davos ou do Mercosul que acontecem as coisas sérias. A nova diplomacia procura mercados que lhe sirvam.
Há dois anos, o New York Times questionava a “estratégia da trincheira” (no sentido de barreira) elaborada por Robert Rubin — ex-secretário do Tesouro norte-americano, após ter sido um dos grandes tubarões [1] de Wall Street por ocasião da crise financeira asiática. [2] Cada vez que um país necessitava de ajuda, Rubin utilizava a alavanca da potência dos Estados Unidos para exigir, e no prazo mais rápido possível, uma liberalização total de sua economia. Nada como essa medida, no seu entender, para garantir aos “mercados” tudo o que desejavam para evitar o contágio.
Funcionários de terno cinza
As coisas tornaram-se um pouco mais complexas. Em vez de funcionar a esperada “trincheira”, o que se viu foi a liquidação catastrófica de ativos nacionais, desvalorizados de acordo com os interesses de empresas predatórias estrangeiras, a figa maciça de capitais e uma vulnerabilidade cada vez maior, intensificando assim a crise. Se os acontecimentos demonstraram a nocividade de uma liberalização imposta do exterior, também lançaram alguma luz sobre as mudanças ocorridas numa ação diplomática que já não é empreendida por funcionários em ternos cinza, e sim por abastados empresários itinerantes.
Quando se pensa em diplomacia, pensa-se nos Talleyrand, nos Metternich ou nos Kissinger, jogando pesado no pano verde, em termos de vidas humanas. Na lógica do sistema wesfaliano, [3] são na realidade os Estados que controlam os meios da violência, passando o papel dos diplomatas a ser apenas o de ameaçá-los, de forma a garantir seus interesses nacionais. A busca por uma posição dominante nas hierarquias regionais deixa, no caso específico da Europa, muito espaço à gesticulação e a ações de extrema brutalidade. No entanto, a partir de 1989, e devido à hegemonia norte-americana em matéria de segurança, passaram a ser os cálculos de custo-benefício — feitos em Washington — que decidem, em última instância, quem pode matar quem sem riscos de contágio.
Uma comercialização frenética
Antigamente admitia-se, sem pestanejar, que o peso econômico era um instrumento do poder westfaliano, entre outros. Hoje em dia, a diplomacia tradicional, seja ela multilateral — nas Nações Unidas, na Organização Internacional do Trabalho ou na Unesco — ou bilateral — Blair-Jospin, Clinton-Arafat etc. —, ainda é manchete dos jornais, mas não passa de uma ilusão, na medida em que o cursor já se deslocou claramente na direção da diplomacia comercial, até chegar aos espiões que agora atuam na área da informação econômica. [4]
O deslocamento da diplomacia na direção do comércio internacional fez aparecerem em cena novos atores. Os presidentes dos bancos centrais, os ministros das Finanças e do Comércio, que antes ficavam à sombra dos ministros de Relações Exteriores, ocupam hoje a dianteira do palco público. Quanto aos atores privados — firmas transnacionais, bancos de investimentos, operadores de mercado de capitais, gestores de fundos especulativos, bancos comerciais, think tanks (grupos de trabalho que elaboram idéias políticas) e conglomerados do setor de comunicações —, passaram a ter um peso igual ou maior que o dos governos. A maior parte da frenética comercialização que vem ocorrendo esconde-se por trás dos grandes princípios da paz, da democracia, dos direitos humanos e do progresso universal. Chegam a dizer que os mercados impedem as guerras. Em seus exageros, os promotores do “mercado total” parecem acreditar, única e exclusivamente, nos mercados. Quanto ao resto — caso represente algum lucro —, é negociável.
Os riscos da violência
A nova configuração da diplomacia reforçou consideravelmente a interdependência internacional. É possível analisar esse fenômeno de diversas maneiras. Por um lado, pode-se ressaltar o caráter assimétrico de suas origens e conseqüências: foram os interesses do hemisfério Norte que o impulsionaram, criando novas relações de dependência para os outros países. E por outro lado pode-se invocar as relações de reciprocidade que ele tece: os diferentes atores, povos e regiões dependem mais do que nunca uns dos outros. Mas o pensamento único das “elites”, que guarnece a discussão, toma a forma de um liberalismo onde as múltiplas reciprocidades da interdependência não podem ser organizadas senão de uma única maneira: num sistema único de mercado global. O que falta a esses postulados, embora normalmente desferidos com a mesma segurança com que se enuncia a lei da gravidade, é a verdade. É óbvio que é totalmente falso que exista uma única forma de organizar a interdependência. A melhor prova disso foram as reviravoltas a que se assistiu durante os recentes terremotos que abalaram os mercados.
Ainda é impossível afirmar com segurança que os novos sistemas de interdependência global reduzem ou não os riscos de violência entre os Estados. É bastante possível, por outro lado, que eles corroam qualquer possibilidade de vida em comum entre os povos, na medida em que a mercantilização em escala planetária limita a capacidade dos governos adotarem políticas desejadas por seus cidadãos. Os argumentos dos liberais são simples: os Estados e os governos devem adotar um perfil de subordinação, pois são os mercados que decidem. São “impessoais” — dizem — e não podem ser enganados por especuladores ou por interesses particulares. [5]
Uma cidadania “flexibilizada”
Daí, a crença segundo a qual as decisões políticas devem abranger um espectro cada vez menor: os Estados democráticos devem ser despojados da maioria de seus direitos de tomar decisões e fornecer bens coletivos a suas sociedades. Quanto aos cidadãos que pretendam desejar responder às reivindicações dessas sociedades, eles são expostos como obstáculos ao “progresso”. Eis aí uma redefinição nua e crua do significado da democracia — e que merece, pelo menos, ser examinada. Não são os filósofos que sempre disseram que a democracia era “política”?
Vejamos a que ponto chegamos. Uma das conseqüências da globalização foi a emergência de “elites” cosmopolitas que se afastam, com desdém, dos “locais” marginalizados. Elas próprias “globalizadas”, essas elites são isoladas de suas sociedades de origem e se vêem imbuídas no domínio do novo ambiente global. Esse distanciamento as leva a tentar manipular as culturas locais, inclusive as suas, a se submeter ao que pensam ser as lógicas da globalização, e também, naturalmente, a promover seus próprios interesses. Poderia dizer-se que a cidadania dessas “elites” foi “flexibilizada”. São essas as bases da metamorfose por que passou a diplomacia acima citada.
Vendendo imagens de si próprias
O sistema westfaliano deu origem a uma elite da “política de poder” — que definia o universo do nacionalismo, do governo dos homens e dos meios de coação — à qual se devem bastantes dos horrores do século XX. As novas interdependências, que caracterizam a chegada do próximo século, trazem com elas as elites “liberal-cosmopolitas”, dispostas a acabar com as bases das tradições democráticas. Quando seus concidadãos lhes pedem que façam alguma coisa, elas juram ter boas intenções, levantam, desesperadas, os olhos aos céus e acusam o mercado — à hegemonia do qual consagraram todas as suas energias — de as impedir de agir.
O quadro é ainda mais sombrio quando se examinam os resultados da nova diplomacia. O computador é para o novo milênio o que era a ferrovia para o século XIX e o automóvel para o século XX: não apenas um produto, mas o elemento central do crescimento econômico e industrial de praticamente todos os outros setores e produtos. E, principalmente, consiste na combinação indissolúvel da eletrônica e da cultura. As tecnologias da informática não são apenas a matemática, os símbolos digitais e a miniaturização. Incluem a informação — o conteúdo real — dominada pelas empresas e sociedades inovadoras. E esse conteúdo estrutura as escolhas dos que venham a ser condenados a ficar marcando passo. As empresas que produzem o conteúdo vendem imagens de si mesmas aos consumidores do mundo inteiro. Ocorre que essas imagens são, fundamentalmente, identidades individuais.
Um mercado sem preconceitos
Seriam as pessoas tão “livres para escolher” como pretendem os economistas? Não tanto, e apenas uma pequena parte delas. A dimensão dos conglomerados — tais como a Time-Warner-CNN, a News Corporation, a Bertelsmann e afins —, assim como suas escalas econômicas, criam um mercado imperfeito. Seus produtos — filmes, programas de televisão, música, jornais (e outros produtos de “informação”), Internet e, é bom não esquecer, publicidade — se tornam rapidamente acessíveis em mercados internos muito divulgados, o que permite vendê-los a preços baixos em outros lugares, ou seja, para outras sociedades.
Ora esses produtos também são idéias, imagens e sonhos que, embora em sua maioria provenham de uma única cultura, têm impacto sobre todas as outras. As regiões economicamente menos desenvolvidas absorvem os mais recentes produtos culturais de Nova York ou de Hollywood, da mesma forma que franceses, suecos ou australianos. O mercado não é inteiramente preconceituoso: se cantores irlandeses tiverem um público, são incorporados; se imagens australianas podem fazer aumentar as vendas de carros japoneses nos Estados Unidos, ótimo!
O interesse nacional
Durante dois séculos, a economia, a política e a ideologia promoveram a identificação dos indivíduos como “cidadãos” de “nações” nos territórios onde os Estados fazem e aplicam regras. A globalização cultural põe em grave perigo esse equilíbrio. As pessoas comuns correm o risco de perder suas referências, ao serem bombardeadas por símbolos vindos de toda a parte — para muitos, do outro lado do mundo. O bom senso as levará a não levarem em conta alguns desses símbolos e a transpor outros para o cotidiano de sua vida local. Existe, no entanto, um potencial real de perda de identidades. A identificação com a comunidade abstrata que é a nação teve um papel importante na constituição das sociedades e das individualidades modernas, assim como teve um relacionamento estreito com os direitos e responsabilidades da cidadania — e com o sentimento de “inclusão” e “exclusão” daí decorrentes.
Não se trata de questões abstratas. As democracias — ou pelo menos as poucas que conhecemos através da história (pois, como nossas “elites” quase sempre esquecem, trata-se de uma planta frágil) — apóiam-se naquilo que os cidadãos esperam de seus governos e um sentimento profundo de identidade nacional. Samuel Huntington, um norte-americano privilegiado por uma inteligência acima do comum, observa que “a tentativa de definir um interesse nacional pressupõe um acordo sobre a natureza do país cujos interesses cabe definir. O interesse nacional resulta da identidade nacional. Precisamos, primeiro, saber quem somos para saber quais são nossos interesses”. [6] A atual situação exige, simultaneamente, capacidade de ação por parte dos governos e as identidades necessárias à coesão social.
Um jogo destruidor
Não se trata de fazer a defesa do nacionalismo, e sim preocupar-se com uma dimensão fundamental das nossas vias democráticas, à qual não se oferece qualquer substituto claramente identificado. Já se assiste, numa espécie de resposta, ao renascimento do populismo nos países desenvolvidos, que toma as formas mais variadas: nacionalismo, racismo, hiper-protecionismo.
Na França, Jaen-Marie Le Pen aposentou o discurso político da intolerância. Os que ainda o mantêm — Jörg Haider, na Áustria, o partido Vlaams Blok, na Bélgica, a Liga do Norte, na Itália, e Pauline Hanson, na Austrália — parecem ir pelo mesmo caminho. [7] Nos países anglo-saxões, os mais representativos populistas liberais — a direita republicana, nos Estados Unidos, o thatcherismo britânico ou o Partido da Reforma, no Canadá — também mobilizaram a preocupação popular contra as elites cosmopolitas, com o objetivo de adotar políticas ultraliberais. Nos Estados Unidos, é possível encontrar pessoas que acreditam sinceramente que as Nações Unidas, o Banco Mundial e o governo de Washington conspiram para destruir a República — posição essa que justifica a existência de enclaves armados ou de atentados com explosivos para destruir prédios federais.
Desinteresse social maciço
Atualmente joga-se um jogo que é potencialmente destruidor. As nações prosseguem com seus balés diplomáticos como se continuassem no século XIX. E no entanto, o que realmente conta para a diplomacia, em termos internacionais, o seu grande negócio, enfim, é fazer negócios. A maioria dos países — tal como os lêmures, que seguem sempre o maior — rivalizam em entusiasmo para construir o mercado global. E quem lucra com isso? Os países cujas empresas estão em melhor posição de explorar os mercados construídos para elas — e às vezes, por elas.
Por isso, se um país ou uma região é mais avançada economicamente, mais os seus diplomatas se transformam em caixeiros viajantes. A diplomacia westfaliana levou a dezenas de milhões de mortes horríveis, no século XIX. A diplomacia do caixeiro viajante terá suas próprias conseqüências catastróficas no curso do novo milênio. Na verdade, cada uma delas poderia reforçar a outra nesse círculo vicioso que deprava a democracia e, ao mesmo tempo, incentiva um desinteresse social maciço num contexto maior de instabilidade internacional.
Aceitar sem espernear
Todas as sociedades poderiam estar ameaçadas por este fenômeno, inclusive as que hoje se beneficiam dele. As mais vulneráveis são as que não dispõem de uma posição viável e bem clara com respeito aos novos mercados globais, ou as que são muito pequenas e periféricas. Na ausência de perspectivas de um êxito econômico e com uma comunidade nacional que se desagrega, pouco ou nada sobrará para se fazerem sociedades democráticas — ou para mantê-las, caso já tenham atingido esse estágio.
Para estas, a manutenção de uma diplomacia tradicional — que apenas serviria de cortina de fumaça para a diplomacia econômica dos poderosos — equivaleria a perder tempo e recursos. Enfrentariam grandes dificuldades, pelo menos sozinhas, para se contrapor às lógicas mais amplas prometidas pelos caixeiros viajantes. Além disso, não têm outra opção senão aceitar os novos bens culturais e as novas estruturas de mercado sem espernear. A única vantagem inicial de que seus governos em princípio dispõem é a de poderem perceber mais claramente os perigos da atual situação para a inte