Santo Sharon
A mídia transformou o ex-primeiro-ministro de Israel num suposto campeão da paz. Esta imagem não corresponde nem ao passado do personagem, nem à essência de seus planos recentesDominique Vidal
“Dois pesos, duas medidas”: esta expressão caracteriza perfeitamente a distinta cobertura da mídia dada ao ataque cerebral que sofreu o primeiro-ministro Ariel Sharon e à doença seguida de morte do ex-presidente Iasser Arafat, em novembro de 2004. A morte do primeiro representaria uma “ameaça à paz”, enquanto a do segundo eliminaria um “obstáculo à paz”.
Paradoxal troca de papéis. Abou Ammar conduziu a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) da luta armada (às vezes terrorista) pelo desaparecimento de Israel ao combate político e diplomático a fim de criar um Estado palestino independente ao lado daquele. O velho general participou de todas as guerras de Israel — inclusive da guerra que representou a colonização, cujo principal arquiteto foi ele próprio. Além disso, seu nome está ligado a uma série de massacres [1]. A mídia menciona freqüentemente os de Sabra e Chatila, executados pelas forças libanesas com a cumplicidade de seus homens; e, mais raramente, outros cometidos por eles mesmos: Kibya (1953), a passagem de Mitla (1956), a faixa de Gaza (1971), sem esquecer, mais recentemente, a reconquista sangrenta da Cisjordânia (2002).
O bulldozer teria se convertido de repente ao pacifismo, com a retirada unilateral de Gaza, no final do verão de 2005. “Erro de ótica”, responde o historiador israelense Tom Segev: não existe “um novo Sharon”, que se revela um adepto da paz no crepúsculo de sua vida. Ariel Sharon tornou-se idêntico a ele mesmo: um general que vê os palestinos através do visor de seu fusil e que os considera como inimigos e não como parceiros [2]. Para o ex-embaixador em Paris, Elie Barnavi, “A reviravolta bastante espetacular (…) nos comentários é mais eloqüente sobre a seriedade de um certo jornalismo que sobre a evolução objetiva do ex-primeiro-ministro” [3].
A guerra, diz Clausewitz, é “a continuação da política por outros meios”. Herdeiro digno de David Ben Gorion e de Zeev Jabotinsky, o primeiro-ministro inverteu a máxima. Eleito no início de 2001, ele acredita ainda que “a guerra da independência de 1948 não acabou” [4]. Após ter aplicado este programa durante dois anos, retomando totalmente o controle sobre a Cisjordânia, na primeira etapa, ele teve de passar a uma segunda fase, para dar conta de dois desafios, um estrutural e outro conjuntural.
“O sentido do plano de retirada [de Gaza] é o congelamento do processo de paz”, confidencia Dov Weissglas, o conselheiro mais próximo do primeiro-ministro israelense
Os demógrafos o prediziam: o “Grande Israel” contará em breve com uma maioria árabe. Terrível dilema para Israel, definido por sua Constituição como “judeu e democrático”: ou o Estado privilegiará o segundo termo, e perderá seu caráter judeu, ou pretenderá conservar seu caráter judeu, não podendo ser democrático. Para escapar a esta armadilha, é necessário admitir ao seu lado um verdadeiro Estado para os palestinos, ou expulsá-los massivamente. Sharon descarta a primeira solução e sabe que a segunda é atualmente impraticável. Por isso, imaginou uma terceira opção, em 1998: a formação de quatro enclaves palestinos sobre a faixa de Gaza e sobre a metade da Cisjordânia, compreendida no interior do muro. Israel anexaria o resto — principalmente os blocos de implantação,
que reúnem 80% dos colonos.
Daí a idéia da retirada unilateral de Gaza, gesto sem precedente, mas sobretudo etapa em direção a esta nova forma de hegemonia israelense sobre a Palestina. Estratégica, a manobra inclui também uma dimensão tática. Sharon a coloca em marcha em 2004, porque calcula seu isolamento. Primeiramente em Israel, cuja opinião sobre o conflito já está mais do que saturada. Em seguida, no exterior. Em 9 de julho, o Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) decretou o muro como ilegal e ordenou sua destruição; em 20 de julho, a Assembléia Geral das Nações Unidas adota estas conclusões por 150 votos a favor, 6 contra e 10 abstenções. Todos os membros da União Européia votam a resolução, essencialmente porque, segundo 59% de seus cidadãos, Israel encabeça a lista dos Estados que “ameaçam a paz no mundo [5]” Tel Aviv receia até mesmo sofrer pressões por parte da Casa Branca. E o Quarteto (Nações Unidas, Estados Unidos, União Européia e Rússia) chama Israel a ceder às exigências de seu plano. O congelamento da colonização deve recompensar a trégua obtida por Mahmoud Abbas.
“O sentido do plano de retirada [de Gaza] é o congelamento do processo de paz”, confidencia Dov Weissglas, o conselheiro mais próximo do primeiro-ministro israelense. Ele explica: “Quando se congela este processo de paz, impede-se a criação de um Estado palestino, bem como um debate sobre os refugiados, sobre as fronteiras e sobre Jerusalém. (…) A retirada (…) é a dose de formol necessária para que não haja processo político com os palestinos [6].” Dezesseis meses mais tarde, esta análise parece premonitória: o Quarteto calou-se e a União Européia chegou a dissimular seu próprio relatório sobre a anexação israelense de Jerusalém Oriental. Resumindo, ninguém importuna mais Israel com o seu Plano…
O prestidigitador conseguiu. Encenado de maneira espetacular a partida de 8 mil colonos da faixa de Gaza, ele hipnotizou o planeta, agora cego, surdo e mudo diante do destino dos palestinos. No entanto, estima-se agora que o número de colonos aumentou de 6.100 em relação ao ano passado. São 250 mil na Cisjordânia [7] que será literalmente dividida em duas partes pela expansão de Maale Adoumin. A construção do muro está sendo acelerada: quase a metade já está concluída ou em vias de sê-lo, completando o encarceramento de Jerusalém Oriental [8]. O exército multiplica bombardeios e assassinatos, sem esquecer os cercos e humilhações nas 750 barreiras. Mas silêncio: que importam o direito internacional, as resoluções das Nações Unidas, o estabelecimento de um Estado palestino sobre toda a Cisjordânia e a faixa de Gaza, com Jerusalém Oriental para capital, visto que… a paz está em curso.
Além da hipocrisia, o que choca é o contraste entre o silêncio eloqüente de Paris sobre a repressão na Palestina e sua cooperação cada vez mais estreita com Tel-Aviv
Durante muito tempo a política francesa relativa ao Oriente-Médio alinhou-se à de Israel: à lembrança das culpas pelo papel do governo de Vichy no genocídio nazista, juntou-se pouco depois o combate contra o nacionalismo árabe em Argel, logo no Cairo. De Gaulle operou uma mudança por ocasião da guerra de junho de 1967. Avaliou que Israel iria “organizar, sobre os territórios que tomou, a ocupação, que não pode ser realizada sem opressão, repressão, expulsões; e então vai se manifestar, contra este Estado, uma resistência que ele qualificará de terrorismo”. Seus sucessores Georges Pompidou, Valéry Giscard d’Estaing e, principalmente, François Mitterand apoiaram-se nesta “política árabe”, convencidos de que só a autodeterminação dos palestinos cortaria os nós górdios da região.
De início, fiel a esta inspiração, o presidente Jacques Chirac passou de repente a seguir outra. Por quê? Evidentemente, o tapete vermelho desenrolado em julho passado sob os pés do primeiro-ministro Ariel Sharon, até então persona non grata, materializava uma guinada. O anfitrião de Elysée não esperou a hospitalização de Sharon para proferir elogios deste “homem de paz”, com um pouco de atraso, é verdade, sobre George W. Bush.
Além das hipocrisias, o que choca é o contraste entre o silêncio eloqüente de Paris sobre a repressão na Palestina e sua cooperação cada vez mais estreita com Tel-Aviv, ritmada por incessantes intercâmbios ministeriais. A participação de duas grandes empresas francesas, Alstom e Connex, na construção do bonde ligando Jerusalém às colônias de Pisgat Zeev e de French Hill (as quais a França sempre considerou ilegais) revela uma certa esquizofrenia. E o que dizer da estadia do ministro israelense da Segurança Pública, Gideon Ezra, e do chefe da polícia israelense, Moshe Karadi, em Paris, em dezembro passado, a convite de Nicolas Sarkozy com a finalidade, segundo Haaretz, de expor “a seus homólogos franceses a lição que eles tiraram da repressão das rebeliões em seu próprio país [9]”? Os franceses, acrescentou maliciosamente o diário, “estão realmente interessados no savoir-faire israelense na matéria”…
O assunto ultrapassa evidentemente o Oriente Médio. Ex-campeão (em 2003) entre os que se opuseram ao aventureirismo do presidente Bush, Chirac compôs-se com ele. Do Afeganistão ao Irã, ele segue os Estados Unidos e até mesmo o precede – como a respeito do Líbano e da Síria. E quanto ao tema darelação entre Israel e a Palestina? Apostemos que à renúncia geopolítica se mesclam preocupações mais políticas. Sem dúvida, os dirigentes franceses, obcecados pelos prazos eleitorais, cedem pouco ou muito à chantagem que, desde há cinco anos, apresenta como anti-semita quem critica a política para com Israel [10]. Estas campa
Dominique Vidal é especialista em Oriente Médio e membro sênior da equipe editorial de Le Monde Diplomatique (França).