Se o passageiro soubesse…
O acidente ocorrido com o avião Concorde no dia 25 de julho coloca de maneira dramática a questão da segurança no contexto da liberalização do transporte aéreo. Os cortes nas despesas com salários e manutenção explicam a deterioração dos serviçosBernard Cassen
É nos meses de verão que o congestionamento do tráfego aéreo chega ao máximo, que os aviões viajam mais cheios, que o pessoal de bordo é mais solicitado e quando as tensões do trabalho mais se manifestam. Acrescente-se a esses dados, neste ano 2000, a aceleração das operações ou projetos de fusão entre companhias aéreas (o que em geral implica em impactos negativos em matéria de emprego e condições de trabalho) e, ainda por cima, os projetos de “céu único europeu” da Comissão de Bruxelas. É desse conjunto de fatos que decorrem os inúmeros movimentos sociais destas últimas semanas. [1]
Segurança? É claro que essa é a palavra mais ouvida num setor onde a menor falha pode acarretar conseqüências trágicas e de grande repercussão nos meios de comunicação, embora entre os operadores da torre de controle ela seja pronunciada quase sempre acompanhando rentabilidade e competitividade. E é aí que a coisa pega, pois os custos da segurança são altos e convidam constantemente a tomar riscos calculados. E é nesse contexto que pode ocorrer o acidente que revela erro de cálculo…
Empresas ignoram advertências
De uma maneira geral, o avião é um meio de transporte particularmente confiável — mais confiável que a ferrovia e, sobretudo, a rodovia: em 1999, para 1,5 bilhão de passageiros transportados pelas linhas mundiais de aviação, registraram-se cerca de vinte acidentes com aparelhos de mais de 2,5 toneladas, provocando a morte de 492 pessoas. [2] O número total de vítimas, incluindo todo tipo de aeronaves, foi de 674, o que faz de 1999 um ano recorde em matéria de segurança. Em 1998, esse número foi de 1.945, e em 1997, de 1.235 (a média anual para os últimos vinte anos sendo de 1.491 [3]).Não seria, portanto, o caso de excessivas preocupações, considerando o risco implícito a qualquer meio de transporte — exceto andar a pé num espaço protegido… A realidade, entretanto, é bem diferente.
Isto porque, em 2000 dificilmente se repetirão os bons desempenhos do ano precedente: até o dia 19 de julho já se contabilizavam 19 acidentes com 613 vítimas, o que faz estes primeiros sete meses regredirem ao 14º lugar, se comparados com dados do mesmo período a partir de 1970. [4] Por outro lado, o número de acidentes não é senão o indicador visível da situação de segurança. Não menos significativos são os incidentes e riscos de acidentes, como por exemplo as quase-colisões (aproximação de aviões a distâncias aquém das normas permitidas) que já se tornaram cotidianas em muitos aeroportos. Numa progressão crescente, estes incidentes podem a qualquer momento passar à categoria de acidentes, detonando as estatísticas. O número de casos preocupa cada vez mais os tripulantes — que, além de se encontrarem na linha de frente, recebem um crescente número de avisos e de recomendações, por parte dos sindicatos, para que exijam medidas concretas da direção das empresas. De modo geral, em vão: a concorrência exacerbada e as exigências de rentabilidade financeira — parâmetros que as guiam — acabam levando a ouvidos moucos e palavras elogiosas.
A lógica de cortar nas despesas
Quanto aos meios de comunicação, é pouca a atenção que dão a estas informações: não se deve levar o leitor ao desespero, e menos ainda os anunciantes — tanto de viagens turísticas quanto de transporte de carga. Principalmente no caso da imprensa escrita, que é distribuída nos aviões, à razão de milhares, senão de dezenas de milhares de exemplares. Para as empresas jornalísticas, essa distribuição significa aumento dos números de tiragem, os únicos que contam para obter publicidade — ainda que em termos financeiros o retorno seja mínimo ou mesmo deficitário, em vista dos custos de “colocação a bordo” que as empresas aéreas cobram dos jornais.
A segurança depende de múltiplos fatores, no transporte aéreo: a concepção e a manutenção dos aviões, as políticas das empresas, a formação e as condições de trabalho da tripulação e a administração do tráfego pelo controle de vôo. A utilização de aparelhos “rodando” o máximo (um avião parado representa uma considerável ausência de lucros) seria, logicamente, a exceção à regra — comum a todas as empresas aéreas — de restringir gastos. Mas não é esse o caso. Mesmo nos grandes países industrializados, empresas de terceira categoria — muitas vezes sub-contratadas por outras de segunda categoria (do tipo Air Liberté ou AOM) e até de primeira (como a Air France, Bristish Airways ou Lufthansa) — inspiram pouca confiança aos iniciados. Um piloto de uma empresa importante confessava recentemente que levara seus filhos para aprenderem a pilotar “numa empresa sub-contratada da Air France”: na realidade, ele sabe por seus colegas o modo pelo qual os problemas de “tolerância” técnica são abordados nessas empresas.
Quando o piloto também é acionista…
A verdade é que um avião pode voar sem qualquer risco mesmo que todos os seus instrumentos não funcionem. É o construtor que determina as “tolerâncias” adotadas no manual técnico da empresa conhecido como minimum equipment list (MEL). O piloto decide decolar ou não em função do quadro de “tolerâncias” que lhe é proposto, bem como das restrições suplementares em termos de procedimentos a adotar que esse quadro exige. É aí que começam a ser exercidas pressões, explícitas ou não. Normalmente, a lógica da empresa é: “Pode ser evitado o conserto?”, adiando ao máximo o estacionamento para reparo através de uma argumentação sutil sobre a normatização. Os pilotos aceitam, em geral, essas “tolerâncias” quando se trata de “voltar com o avião para casa”, mas há exceções. Num vôo recente de Biarritz para Paris, um piloto avisou sua empresa que se recusaria a decolar se não fosse consertado um defeito. Ao chegar à pista, foi informado, para sua surpresa, que um outro piloto havia sido designado para o substituir. Este último, no entanto, ratificou a avaliação de seu colega e o conserto teve que ser feito, com o estacionamento da aeronave.
Há outros fatores que devem ser ponderados: ao se recusar a decolar, por exemplo, para um vôo de longo curso, o piloto perde uma gratificação substancial (primes horaires de vol — PHV) que, no fim do mês, pode corresponder ao dobro do seu salário-base. Uma escolha difícil, quando tem que ser feita… Em muitas empresas — principalmente médias ou pequenas — tanto o pessoal de bordo quanto da cabina têm contratos de trabalho temporários, que podem não ser renovados. Muitos deles, que pagaram por sua formação profissional de seus próprios bolsos, ficam bastante endividados e, consequentemente, não só fazem vista grossa às exigências da direção comercial da empresa como aceitam trabalhar além da carga horária legal por mês: 57-58 horas de vôo, podendo chegar a 62-63 em casos excepcionais. Um piloto cita o caso de um colega que voou 97 horas em 27 dias, sendo que 19 horas e 45 minutos num único desses dias. “Tem gente que voa noite e dia e fica completamente esgotado”, diz ele. Quando são acionistas da companhia o que é o caso da Air France desde 1998 — os pilotos ficam numa situação esquizofrênica, divididos entre a preocupação com a segurança e as perspectivas de crescimento de dividendos. Alguns compram até 40 mil francos de ações por ano (aproximadamente R$ 10 mil), chegando a tomar dinheiro emprestado para o fazer.
Irresponsabilidade criminosa
Nem todos os pilotos aceitam trabalhar nesse ritmo infernal — que é pior nos percursos de médio curso, devido à rápida rotação que encurta o período de descanso. O semanário especializado Air et Cosmos revela que, nesses percursos, a Air France tem dificuldades em recrutar candidatos ao cargo de comandante: “Os co-pilotos que podem se candidatar a esse posto preferem permanecer no setor de longo curso, ainda que isso signifique esperar mais tempo pelos galões de captain.” [5]
Aquilo que é válido para as empresas de primeira e segunda categorias, também o é, naturalmente, para as outras. O acidente ocorrido em 9 de fevereiro de 1994 no Senegal é um caso exemplar. O Clube Méditerranée havia resolvido enviar cerca de 50 sócios para o balneário de Cap Skirring, naquele país, confiando o transporte à Air Sénégal, empresa que detém a exclusividade nos vôos domésticos. A Air Sénégal sub-contratou, por sua vez, a empresa Gamberset, da República de Gâmbia, que se encontrava quebrada. O avião Convair que transportava os passageiros não estava no seguro, os pilotos (um norueguês e um russo) tinham o hábito de beber em pleno vôo, os cintos de segurança não fechavam, as portas eram amarradas com cordões de bicicleta e dezesseis dos equipamentos de emergência não funcionavam. O balanço do desastre era previsível: 30 mortos e 26 feridos [6] — o que, no dia 7 de julho deste ano, valeu a Gilbert e Serge Trigano, dirigentes do Clube Méditerranée na época do acidente, uma condenação de oito meses de prisão com direito a condicional (anulada pela lei de anistia de 1995), por “homicídio involuntário”, transformados numa multa de… 30 mil francos (cerca de R$ 7,5 mil).
A guerra das tarifas e as fusões
Um outro acidente bastante significativo foi o do DC-9 da empresa norte-americana ValueJet, que, no dia 11 de maio de 1996 caiu num mangue infestado de crocodilos nos Everglades, na Flórida, levando à morte de 110 passageiros e tripulantes. Tudo se disse sobre essa empresa, um típico sub-produto da desregulamentação desenfreada que varria os Estados Unidos: um modelo para “promoções” de tarifas, que seria imitado por uma centena de outras empresas. O inquérito iria revelar os bastidores desse “sucesso” — que não deixa de ser comparável ao de muitas dessas empresas start-up da atual “nova economia”: a não verificação, pela empresa ValueJet, da validade de seu contrato sobre regras de manutenção, de formação profissional e de obrigações e práticas no caso de transporte de produtos perigosos (o avião também transportava, de forma totalmente ilegal, geradores de oxigênio). A autoridade encarregada de fiscalizar a segurança do transporte aéreo — a Federal Aviation Administration (FAA) — foi severamente advertida por sua atitude tolerante com relação à ValueJet.
A “liberalização” norte-americana não serviu de lição à Europa que, impulsionada pela Comissão de Bruxelas, fanática pela concorrência, trilha o mesmo caminho. Os resultados dessa “concorrência” são, no entanto, bastante conhecidos: depuração das linhas rentáveis e abandono ou imposição de tarifas astronômicas para as restantes (nos Estados Unidos, 172 pequenas cidades ficaram sem transporte aéreo); contrato de trabalho precário para tripulantes de bordo e de cabina; sub-contratação de serviços de manutenção, a qual já vem sendo feita por substitutos. E, dentro de alguns anos, sumiço das pequenas empresas arruinadas pela guerra das tarifas e pela concentração crescente do setor.
Euforia da liberalização
Resumindo, a concorrência levou à criação de monopólios ainda mais poderosos, à deterioração da segurança no transporte aéreo, à degradação da qualidade do serviço e da higiene a bordo, a um rebaixamento do nível de contratação, de formação e de treinamento de pessoal. [7] E, na outra ponta, ao descontentamento dos passageiros, cujas atitudes de indisciplina — e mesmo de violência — aumentam cada vez mais, representando já várias centenas de ocorrências por mês, no caso da Air France. Segundo revela William Pfaff, no International Herald Tribune, “seria muito difícil encontrar um grupo representativo de passageiros convicto de ter sido beneficiado pelas megafusões no setor aéreo, e mais difícil ainda seria encontrar um grupo de usuários ingleses achando que a privatização do sistema ferroviário tenha sido minimamente lucrativa”. [8]
E no entanto é justamente em nome da segurança que a Comissão Européia — apesar da argumentação oficial — pretende privatizar o pouco que sobrou do setor da aviação civil, à exceção da rentabilidade, é claro: a administração do tráfego aéreo por serviços públicos. É bom frisar que o Conselho Europeu, reunido no mês de março em Lisboa e sob a batuta da dupla Aznar-Blair (co-autores de um artigo que seria publicado, algumas semanas mais tarde, no Financial Times, de Londres, e El Mundo, de Madri), já havia dado, por unanimidade — ou seja, com o aval de Lionel Jospin e Jacques Chirac — apoio total a essa nova liberalização. [9]
Segurança é combate à ganância
O projeto que a comissária encarregada dos Transportes, Loyola de Palacio, se apressou a redigir logo após a reunião de Lisboa refere-se à criação de uma autoridade européia de segurança aeronáutica para reduzir o congestionamento de um tráfego que aumenta de 5 a 6% ao ano, e, principalmente, para separar as funções de regulador (que elabora as regras) e de operador (que as aplica), entendendo-se que esse prestador de serviços, atualmente público, poderia ser ou passar a ser privado.
E é precisamente isso que se recusam categoricamente a aceitar os despachantes de vôo franceses, para quem a lógica liberal do lucro e a da segurança não são compatíveis. “O objetivo de uma empresa aérea é o transporte, sendo a segurança uma das exigências para se exercer essa atividade. Para o controle do tráfego aéreo, porém, a segurança é a sua própria razão de ser”, declara Jean-Michel Richard, secretário-geral do Sindicato nacional dos controladores de tráfego aéreo (SNCTA), [10] ao mesmo tempo que a União Sindical da Aviação Civil (USAC) propõe que as empresas transportadoras sejam responsabilizadas pelos atrasos e congestionamentos do tráfego aéreo: a concorrência desenfreada faz com que haja um número excessivo de aviões voando, e de baixa capacidade, para a demanda de passageiros — na última década, observa-se que o tráfego aéreo cresceu em cerca de 60%, enquanto o número de passageiros embarcados aumentou de apenas 40%. [
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.