Sedes vacans: Conclave
O filme nos lembra que, por trás das vestes eclesiásticas e dos votos de castidade, há homens com ambições, medos e estratégias. E se a história da Igreja nos ensinou algo, é que a fé pode inspirar a escolha de um papa, mas os caminhos que levam até essa escolha são pavimentados com política, cálculo e, às vezes, até conspirações
O termo latino sedes vacans (trono vazio) anuncia o interregno entre a morte ou renúncia de um papa e a escolha de seu sucessor[1]. Esse é um dos períodos mais enigmáticos da Igreja Católica. Entre paredes e rituais seculares, cardeais de todo o mundo se reúnem no Conclave, um evento que carrega não apenas a dimensão espiritual da escolha do novo líder da Cristandade (que ultrapassa 1 bilhão e 390 milhões de fiéis, segundo o último levantamento do Annuarium Statisticum Ecclesiae) mas também as tensões políticas e intrigas que podem redefinir os rumos do Vaticano e suas relações com o mundo. É nesse cenário que se desenrola Conclave (2024), um thriller político e religioso que, mais do que um simples suspense, oferece uma reflexão sobre poder, fé e os bastidores de uma das instituições mais antigas e influentes do mundo.

A película, dirigida por Edward Berger, adapta o livro de Robert Harris (2016) e nos conduz pelos corredores do Vaticano, onde segredos, alianças e traições se entrelaçam. A morte do papa dá início a uma sucessão permeada por interesses conflitantes, demonstrando que a política vaticana não se diferencia tanto dos jogos de poder secular. Algo muitas vezes deixado de lado é que o Vaticano é um Estado soberano (o menor do mundo), com suas próprias dinâmicas de poder e estratégias, que se entrelaçam com as questões espirituais da Igreja. Se, na Idade Média, os conclaves eram marcados por disputas entre famílias nobres e pela influência dos monarcas europeus, hoje as tensões residem em disputas ideológicas internas, rivalidades entre setores conservadores e progressistas e no próprio papel da Igreja em um mundo em transformação (Duffy, 2006).
Desde os tempos de Gregório X, que instituiu o formato moderno do Conclave no século XIII, a eleição papal tem sido um momento de máxima expectativa e mistério (Duffy, 2006). O filme retrata com fidelidade os ritos do evento: os votos secretos, o isolamento dos cardeais, a queima das cédulas e a emblemática fumaça preta ou branca que sinaliza o resultado. Contudo, é nos bastidores desse espetáculo sagrado que a trama de Conclave brilha, explorando personagens complexos, cada um com sua agenda, ambições e dilemas morais.
O protagonista, o cardeal Thomas Lawrence (Ralph Fiennes), assume a função de decano do Colégio Cardinalício, e torna-se nosso guia nessa jornada de intriga e revelações inesperadas. Sua atuação carrega o peso da responsabilidade e da dúvida, colocando o espectador no centro das tensões da escolha do novo papa. A cinematografia acentua a atmosfera tensão do Conclave, utilizando ângulos fechados, iluminação dramática e uma trilha sonora sutil, porém inquietante, que reforça a sensação de que cada gesto e cada olhar podem mudar o curso da sucessão papal.
A reclusão dos cardeais na Capela Sistina, simbolicamente fechada “com chave” – origem etimológica da palavra conclave –, impõe um ritmo claustrofóbico à narrativa. São 108 cardeais eleitores, mas a chegada de um último nome, Vicent Benítez (Carlos Diehz), diretamente de Kabul no Afeganistão (um país predominantemente islâmico), sacode a disputa. Apresentado como um nome nomeado in pectore (em segredo) pelo papa falecido, sua presença já carrega uma carga de mistério e imprevisibilidade.
O embate ideológico entre conservadores e progressistas estrutura a disputa. De um lado, o cardeal Goffredo Tedesco (Sergio Castellitto), italiano de postura tradicionalista e Joshua Adeyemi (Lucian Msamati), nigeriano e conservador; do outro, o norte-americano Aldo Bellini (Stanley Tucci), representante da ala reformista. No meio-termo, Joseph Tremblay (John Lithgow), um franco-canadense de postura ambígua. Cada um desses nomes reflete os desafios contemporâneos da Igreja: o peso da tradição, a necessidade de renovação e os dilemas éticos que transcendem a fé.
A película não se limita a descrever o jogo de xadrez político dentro do Vaticano; ela expõe as contradições internas da instituição. A invisibilidade das mulheres, a perda do foco no acolhimento e na compaixão, e a tensão entre dogma e modernidade são questões que emergem ao longo da trama. O personagem da irmã Agnes (Isabella Rossellini), uma das raras presenças femininas na história, ilustra como as mulheres orbitam ao redor do poder clerical sem jamais ocupá-lo.
Um dos momentos mais marcantes do filme é o sermão de Lawrence sobre a incerteza como essência da fé. O discurso, que remete ao próprio Cristo na cruz – “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” –, sintetiza a mensagem subjacente da narrativa: a dúvida não é fraqueza, mas o que torna a fé genuína.
À medida que as votações avançam e os segredos vêm à tona, a narrativa adquire contornos de thriller político. O passado de Tremblay ressurge em documentos escondidos nos aposentos papais; a revelação de que Adeyemi guarda um segredo íntimo desestabiliza o cenário. A conclusão é arrebatadora e surpreendente: Benítez é eleito papa, mas sua identidade provoca um questionamento radical sobre as estruturas imutáveis da Igreja.
O grande plot twist – a revelação de que Benítez é uma pessoa intersexo (ver imagem 1)[2] – desafia não apenas os personagens, mas também o próprio espectador. O impacto se sustenta pela atuação de Diehz e pela sutileza da direção, que opta por deixar o subtexto falar por si. No enredo, o religioso, que sempre acreditou ser homem, passou pelo seminário e foi ordenado sacerdote. No entanto, durante uma apendicectomia, o médico que o atendeu descobriu sua anatomia interna feminina, algo que ele jamais soubera. Desolado e convicto de que sua ordenação era inválida, ele planejou uma histerectomia e enviou uma solicitação à Roma para se desvincular do sacerdócio – um pedido que precisava da aprovação do papa. Surpreendentemente, o papa falecido, considerado progressista, decidiu mantê-lo, em vez de acatar sua solicitação.
Imagem 1 – Ilustração de indivíduos intersexo[3]

O filme também estabelece paralelos com eventos históricos e políticos recentes. A renúncia de Bento XVI, a ascensão do Papa Francisco e as divisões internas dentro da Igreja são ecoadas nas disputas entre os cardeais fictícios, representando não apenas um embate teológico, mas também geopolítico. A influência de potências internacionais, o papel do Vaticano em temas globais como a pobreza, a migração, as mudanças climáticas, e até mesmo o impacto das redes sociais e da mídia sobre a imagem da Igreja são questões que permeiam o enredo.
Como exemplo do jogo político real, o jornalista espanhol Javier Martínez-Brocal publicou no ano passado o livro El Sucesor: Mis recuerdos de Benedicto XVI, no qual o Papa Francisco (na época Jorge Bergoglio) revela que, durante o conclave de 2005, quando Joseph Ratzinger foi eleito Papa Bento XVI, ele foi manipulado para impedir sua eleição. Francisco explicou que obteve 40 dos 115 votos na Capela Sistina, o que foi crucial para bloquear a candidatura de Ratzinger nas segunda ou terceira rodada, já que, se os cardeais continuassem a votar nele, Ratzinger não conseguiria atingir os dois terços necessários para ser eleito. No entanto, essa movimentação não funcionou, e o pontífice foi finalmente eleito. Segundo o Papa, o objetivo era usar seu nome para barrar Ratzinger e, depois, negociar a escolha de um terceiro candidato. Posteriormente, Francisco foi informado de que os cardeais não queriam eleger um Papa estrangeiro.
Assim Conclave nos lembra que, por trás das vestes eclesiásticas e dos votos de castidade, há homens com ambições, medos e estratégias. E se a história da Igreja nos ensinou algo, é que a fé pode inspirar a escolha de um papa, mas os caminhos que levam até essa escolha são pavimentados com política, cálculo e, às vezes, até conspirações. Como observa o historiador Eamon Duffy (2006), a história do papado está repleta de intrigas políticas, disputas de poder e manobras para alcançar o controle da Igreja, muito além da ideia de uma eleição puramente divina.
O desfecho do filme, surpreendente e ao mesmo tempo plausível, reforça a ideia de que a Igreja, apesar de sua aparência imutável, está sempre em um delicado equilíbrio entre tradição e renovação. Conclave nos leva a refletir sobre essa continuidade histórica e sobre os desafios de uma instituição que, séculos após séculos, continua a exercer um papel central na sociedade.
Ao final, a fumaça branca sobe, e um novo papa é eleito. Mas a pergunta que Conclave nos deixa é: o que realmente mudou?
Bruno Fabricio Alcebino da Silva é bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Ciências Econômicas e Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Pesquisador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).
Referências
DUFFY, Eamon. Saints and Sinners: A History of the Popes. Yale University Press, 2006.
FAUSTO-STERLING, Anne. Sexing the Body: Gender Politics and the Construction of Sexuality. Basic Books, 2000.
[1] O conclave é o processo de eleição papal, que ocorre quando a sede vacante do papado é aberta, seja por morte ou renúncia do papa. Durante o conclave, os cardeais da Igreja Católica se reúnem no Vaticano e, sob voto secreto, escolhem o novo pontífice. A palavra “conclave” vem do latim clavis, que significa “chave”, indicando que os cardeais são trancados em uma sala para deliberar sem interferências externas. Como destaca o historiador Eamon Duffy (2006), o conclave é uma das poucas instâncias em que a Igreja Católica mantém uma prática de exclusividade e segredo absolutas, refletindo seu próprio mistério e poder institucional.
[2] O termo “intersexo” refere-se a uma pessoa cujas características sexuais, como cromossomos, gonádios ou genitais, não se encaixam nas definições típicas de masculino ou feminino. Isso pode ocorrer devido a variações genéticas, hormonais ou anatômicas que resultam em uma combinação de características sexuais masculinas e femininas. Como explica a pesquisadora Anne Fausto-Sterling (2000, p. 15-18), intersexo é um termo guarda-chuva que descreve uma ampla gama de condições naturais em que a anatomia ou a fisiologia não se ajusta aos padrões típicos de masculino ou feminino.
[3] “Pseudo-hermafroditas” possuem ovários ou testículos combinados com genitália do sexo “oposto”. “Hermafroditas verdadeiros” possuem um ovário e um testículo, ou uma gônada combinada, chamada ovo-testículo. No entanto, esses termos não são mais utilizados, sendo “intersexo” a designação correta (Fausto-Sterling, 2000, p. 38).