Sem par neste 12 de junho? Lembre-se, a solidão pode ser um bem…
Solo, solitária, sozinha. São palavras evocativas da falta de companhia, do exílio de um grupo ou comunidade de pertencimento, remetendo também à punição por algum comportamento inadequado, não aceito ou julgado moralmente incorreto.
Inicio este breve ensaio convidando leitoras e leitores a uma incursão em torno da problemática da solidão. O momento é conveniente, pois datas existem para várias finalidades e uma delas é nos provocar. No Brasil, o Dia dos namorados é o 12 de junho, em outros países, o 14 de fevereiro, não importa. Trata-se de uma invenção cultural e, sobretudo, estratégia comercial que, como em outras manifestações do calendário consideradas comercialmente relevantes – Dia das Mães e Natal devem continuar sendo os principais – produz efeitos nas pessoas, cujo filtro pode ser mais ou menos frágil. Datas geram ansiedades e expectativas – presentes, presenças, trocas, exibições públicas de status e prestígio. Como é, então, estar só no dia celebrado como o mais romântico do ano?
Não pretendo ratificar a separação entre solidão, supostamente negativa, e solitude, supostamente positiva1. Para os fins desta reflexão, e pelo uso consagrado do termo solidão, tanto para a boa quanto para a ruim, considero a distinção ineficaz. Minha aposta é na sua ressignificação, distanciando-o do uso que o torna sinônimo de desajuste, tristeza, incapacidade e sofrimento.
Solo, solitária, sozinha. São palavras evocativas da falta de companhia, do exílio de um grupo ou comunidade de pertencimento, remetendo também à punição por algum comportamento inadequado, não aceito ou julgado moralmente incorreto. Lamentavelmente, estão fora dessas definições tornadas habituais, o sentido de distanciamento eleito voluntariamente e de recolhimento como recurso imprescindível ao autoconhecimento e ao cuidado de si, como descreveu, entre outros, Michel Foucault (1985) em sua genealogia do sujeito ético a partir das técnicas de si na antiguidade. Desde a mais remota filosofia, alguma forma de estar consigo mesmo e ouvir “a voz que vem de dentro” é um estado de alma não apenas necessário como apreciado e desejado por muitos. Até mesmo o Dicionário Aurélio (1986, p.1607) concede ao verbete significados que ultrapassam “o estado de quem se encontra ou vive só” para incluir “a situação ou sensação de quem vive isolado numa comunidade” e “a solidão a dois: estado de casados ou amantes que, embora vivam juntos, dir-se-ia viverem sós, por não haver entre eles nenhum entendimento”. Nas paisagens do início do século XX a palavra cidade ou urbano refletia (ou escondia) uma condição intrínseca: a solidão na multidão.
Pessoas solteiras – em estado provisório ou mais ou menos permanente – são percebidas socialmente como sozinhas. Este tipo particular de solidão está associado à ideia de que para cada pessoa há um par e que se uma mulher está só, há algo de errado com ela. A premissa está equivocada, porque, primeiro, não há um par para cada, por razões que não vou ter tempo de expor aqui. Segundo, porque as disposições e motivações individuais para estar com alguém variam enormemente e estão sujeitas a regulações sociais que afetam tais disposições. Terceiro, porque a sensação subjetiva de solidão, em companhia ou não, é afetada por outros tantos fatores: privações, desamparo (como o que enfrentamos agora na pandemia da Covid-19), saudade, pensamentos profundos, análises existenciais etc., um rol de possibilidades ao qual se acrescenta a vulnerabilidade por uma doença, pelo envelhecimento, pela perda de alguém.
Seres humanos enquanto seres sociais interdependentes é uma das máximas filosóficas e sociológicas. Logo, a pergunta “é possível ser feliz sozinho?” é inadequada e soa como uma armadilha a ser problematizada. Ela não se dirige à totalidade dos seres humanos em sociedade, mas às pessoas consideradas sozinhas, em particular as mulheres, porque não casadas ou sem par e cuja tradução é incapacidade de realizar o ideal do amor romântico. Esta pergunta ardilosa diz, portanto, respeito não ao estar junto ou separado, mas a um dos pilares da norma social: a conjugalidade, seja ela formal ou não, temporária ou mais ou menos estável. Quem mora sozinho ou está sem par [namorado, namorada] não está isolado do mundo, já que a vida social inclui um sem número de relações significativas em arranjos ignorados ou, por preconceito, desprezados. Estar solteira é uma combinação de escolha, oportunidade e circunstância/contingência e pode-se decidir – mais do “escolher” – estar só/solteira por toda a vida e, assim, ser capaz de sê-lo, como um modo de vida durável.
O que quero dizer é: estar solteira – lembrando que nenhuma escolha é realmente livre e autônoma exatamente pelo caráter social e, portanto, coercitivo da experiência de viver – pode, sim, ser uma escolha legítima, consciente e planejada. Esse modo de vida, também muito variado em termos de arranjos, reafirma uma motivação para um comportamento “idiorrítmico” (do grego ídios = próprio e rhythmós = ritmo) que é, digamos, a não contradição entre viver só e viver junto; a capacidade de manter o equilíbrio entre proximidade e distância e de “uma solidão interrompida de modo regrado” . Estabelecida esta equação cuja conquista se dá pela experiência, a solidão se torna uma fábrica de singularidades onde o cuidado de si ganha relevância.
Esse tempo para si engendra outra singularidade: o tempo para o outro. Numa espiral de boas consequências, se a pessoa não é avara de seu tempo, ela destina parte deste bem precioso ao cuidado com outras pessoas, elemento crucial para a sobrevivência da amizade, outro elo social em geral sagrado para as pessoas sós e pouco valorizado quando comparado aos arranjos que priorizam o casal. Em vários estudos (e não apenas no meu), mulheres “sozinhas” referem grande apreço ao tempo que podem dispor para ofertar a outros. Pode não ser regra geral (e qual é?), mas iluminar aspectos da sociabilidade das pessoas sós pode ser útil e edificante para muitas de nós.
Como sinalizei em meu trabalho, há algumas décadas as formas de vida nas grandes cidades começaram a apresentar mudanças significativas com o progressivo aumento no número daqueles e daquelas que moram sozinhas/os. A tendência pode ter começado lá atrás no início da revolução industrial e expansão do capitalismo e se acentuado com a globalização dos últimos cinquenta anos. Certamente agora está mais em evidência, em especial nos países mais ricos e industrializados, independente de ser o “ocidente” ou o “oriente”, uma vez que as megacidades, para usar uma expressão de Saskia Sassen, estão em todos os continentes. E esta evidência se acentua na medida em que as formas de vida na solidão estão sendo objeto de exposição na mídia quando historicamente vivemos um momento sem precedentes.
O distanciamento ou isolamento social vivido agora na pandemia da COVID-19 poderia ser um momento de intensificação da solidão (boa). Mas, o indivíduo não está só, e sim cercado de aparelhos cujas funcionalidades o colocam 24 horas em conexão, se quiser ou permitir. Nesta nova solidão, a experiência de si é atravessada tanto pelos dispositivos de comunicação e suas lógicas quanto pelas pessoas que neles, ou por meio deles, encontramos. Não seria capaz de dimensionar suas implicações à subjetividade, mas posso assegurar serem modos de vida e de relações que não recuarão no pós-pandemia. Nós seremos, de qualquer forma, seres conectados e os significados da solidão precisarão ser redefinidos, assim como o que compreendemos ser o “dentro” e o “fora”, com e sem parceiro/a etc. A pandemia do século XXI nos convida a rever as formas de sociabilidade de que dispomos. Desafia nossa imaginação e criatividade para pensar novas formas de contato, outras linguagens, outras expressões afetivas. Como na era do Hiv/aids fomos confrontados com a exigência de praticar sexo mais seguro, esta nos convida a praticar contatos sociais igualmente mais seguros, o que quer que isso signifique empiricamente.
Ciente da dimensão social da desigualdade que impera em nossa sociedade, seria irresponsabilidade falar da potência da solidão como cuidado de si para todos indistintamente. No entanto, a solidão não precisa ser autocentrada, focada na intimidade e na privacidade, mas um exercício constante de comunicação consigo e com o outro, de contato intenso com a vida pública e com a política. Penso que, como prática social, há lições que a experiência feminista ensina. O feminismo é, há mais de um século, um solo importante de figuras de mulheres solteiras que tiveram vidas significativas seja reivindicando para si mesmas a liberdade incompatível com o casamento, seja construindo laços de companheirismo e amizade sem os quais boa parte de suas conquistas não teriam se efetivado. Esta face do feminismo é pouco divulgada, mas quem acompanha de dentro os movimentos sabe que sem redes e sem solidariedade nenhuma conquista é possível. Isso continua válido para os feminismos transnacionais do século XXI onde a coexistência de muitas gerações o torna um movimento rico e multifacetado em todos os sentidos.
Hoje já não é mais necessário, como o foi no passado em certa medida, renunciar ao namoro ou casamento para estudar, trabalhar e lutar politicamente, como provam os vários exemplos ao nosso redor. Esse equilíbrio nem sempre é fácil. Para aquelas que estão felizes com suas companhias e conseguindo equilibrar tudo, parabéns! Nenhuma relação, no entanto, é capaz de suprir tudo. Um tempo para si é um recurso muito valioso e nutrir-se dele pode ser muito transformador. Por fim, para aquelas que estão “sozinhas” porque ainda não encontraram sua “cara metade”, parabéns também, porque isso não existe! A fantasia da fusão e da consequente dissolução de si no outro é mais uma das armadilhas do amor romântico à qual devemos estar atentas. Como atentas igualmente devemos estar para dizer não às convenções que atribuem valor inferior à experiência de estar só ou a formas de amor não inscritas na norma conjugal.
Tendo tudo isso em conta, se neste 12 de junho você não tiver aquele jantar romântico, não importa se virtual ou presencial, e lhe chamarem “solitária”, considere a possibilidade de que seja um elogio. Sua solidão pode estar povoada de mil amores aos quais só você tem acesso.
O livro Senhoritas do Século XXI: leituras e narrativas sobre mulheres “sós” publicado pela Editora Appris (2019) é fruto da tese de doutorado Vidas no Singular: Noções sobre mulheres “sós” no Brasil Contemporâneo defendida na Unicamp em 2007. Do projeto que foi se modificando ligeiramente, retive a ideia central de que o feminismo como movimento social e coletivo espraiado pelo mundo nos últimos cem anos, havia moldado a sociedade e, com isso, a subjetividade de mulheres e de homens (em escala menor, mas cada vez mais) de maneira irreversível.
Referências:
BARTHES, Roland. Como Viver Junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade III. O cuidado de si. Rio: Graal, 1985.
CALLIGARIS, Contardo. Ser sozinho é um charme. Entrevista concedida a Mariana Sgarioni. São Paulo: Cult, n. 97, nov. 2005.
Eliane Gonçalves é cientista social, professora associada e pesquisadora do Ser-Tão – Núcleo de ensino, extensão e pesquisa em gênero e sexualidade da Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás. É feminista co-fundadora do Grupo Transas do Corpo em Goiânia, Goiás (1987-2019), espaço de amor, amizade e luta política e de aprendizagem do feminismo como um modo de vida transformador. É autora de Senhoritas do século XXI: leituras e narrativas sobre mulheres “sós” (Appris, 2019). A autora agradece a Liz Cosmelli e Beatriz Brandão o convite a esta publicação e a Tatiele Pereira de Souza, responsável pelo encontro entre as três. Agradece a Lenise Borges pela leitura em primeira mão e por suas críticas sempre pertinentes.
1 A distinção existe também em outras línguas, como no inglês loneliness (a tal solidão ruim) e solitude (a tal solidão boa) e alone (“fisicamente” só, distanciado e consigo mesmo) e lonely (“subjetivamente” só, triste). Em português diz-se estar “só” ou sozinho, mas não vejo muita diferença, pois sempre temos de nos explicar de que tipo é a nossa “solidão”.