Será que o Brasil vai ter acesso à vacina contra o novo coronavírus?
A Organização Mundial da Saúde (OMS) está registrando e coordenando esforços em âmbito internacional para desenvolver vacinas e medicamentos para prevenir e tratar a Covid-19
É comum agora ver notícias sobre um potencial tratamento ou vacina contra o novo coronavírus. Em meio à pandemia, e com a avaliação de que o retorno à normalidade só será possível após a descoberta de uma forma de imunização, estas informações podem trazer esperança. Mas, infelizmente, tais soluções ainda podem estar muito distantes. Tanto pela dificuldade em se desenvolver tais tecnologias como para acessá-las.
Como se desenvolve uma vacina?
Um medicamento ou uma vacina são produtos difíceis de desenvolver, já que envolvem diversas fases de alta complexidade tecnológica. Dos milhares de compostos testados no processo, poucos de fato trazem benefícios. Eles não têm que ser só efetivos, ou seja, mostrar resultados positivos no tratamento de determinada doença, mas também seguros, não causando efeitos indesejados que piorem o bem-estar do paciente ou aumentem o risco para outras enfermidades.
Explicando de forma bem simplificada, o desenvolvimento se inicia em uma fase chamada pré-clínica. Ela envolve duas partes, a identificação do princípio ativo e de como ele deve funcionar no corpo por meio de modelos laboratoriais. E a realização de testes com animais, para entender como aquela molécula funciona dentro de um organismo vivo, mas ainda não humano.
Tendo mostrado resultados que permitam a aplicação em humanos com certa segurança, são iniciados os ensaios clínicos. Devem ser realizadas três fases clínicas para que o produto possa ser aprovado pela agência reguladora, no caso brasileiro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A fase 1 acontece com um número pequeno de voluntários saudáveis (de 20 a 100), para testar a segurança e ajustar a dosagem. A fase 2, que pode ser empreendida com centenas de pessoas com a enfermidade alvo, testa a eficácia e a presença de efeitos adversos. Por fim, a fase 3 amplia a análise, podendo chegar a milhares de participantes, para comprovar a eficácia e a segurança em uma escala maior. Cada uma dessas fases dura vários meses, podendo se estender por anos. Todo esse processo demora cerca de 10 anos para ser concluído.
Para a Covid-19, os estudos estão sendo acelerados devido a urgência. Para isso, no caso das vacinas, por exemplo, estão encurtando fases ou adaptando vacinas desenvolvidas para outros tipos de vírus. Mesmo assim, ela ainda deve demorar entre um a dois anos para ser desenvolvida.
É mais rápido desenvolver medicamentos?
Com relação aos tratamentos, a maioria das drogas utilizadas ou testadas contra o novo coronavírus passou por esse processo de desenvolvimento, mas para o tratamento de outras doenças. Um exemplo é a cloroquina e a hidroxicloroquina, que são usadas contra a malária, a artrite reumatóide e o lúpus.
O problema é que, de modo geral, os estudos conduzidos até o momento têm um número de pacientes muito reduzido e ainda é arriscado afirmar o que vai funcionar no tratamento da Covid-19. Mais dados precisam ser coletados, de maneira adequada, para haver a certeza de que vai funcionar. É por isso que as vezes temos um vai e vem de informações. O medicamento aparece como promessa no combate ao novo coronavírus, mas à medida que os estudos avançam surgem problemas ou ele não se mostra tão eficaz.
E há questões anteriores ao uso na pandemia, já que nenhum medicamento é totalmente isento de efeitos adversos, e usá-los sem a devida orientação médica leva a riscos. Voltando ao exemplo da cloroquina e da hidroxicloroquina, elas provocam alterações no coração e podem levar à morte. Além disso, a automedicação traz o risco de interação medicamentosa com outros remédios que a pessoa tome regularmente, o que pode agravar a toxicidade destas substâncias.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) está registrando e coordenando esforços em âmbito internacional para desenvolver vacinas e medicamentos para prevenir e tratar a Covid-19. Atualmente, existem dez vacinas em fase clínica, com uma prestes a começar, e cerca de 121 em avaliação pré-clínica, e esse número aumenta a cada dia.
O problema do acesso a medicamentos e vacinas
Depois de passar de forma bem sucedida por todas as fases do desenvolvimento e receber a aprovação da agência reguladora, o medicamento ou a vacina estão prontos para serem colocados no mercado. A lógica do mercado é a mesma para a indústria farmacêutica, que tem como objetivo maximizar seus lucros, como qualquer outra empresa.
Só que um medicamento não é, ou não deveria ser, uma mercadoria. E isto é pior no caso de novas tecnologias, protegidas por patentes que conferem um monopólio ao fabricante. A ideia por trás da patente é que ele possa recuperar o alto volume de recursos que a empresa investiu no processo de desenvolvimento. Mas, na verdade, os preços são tão abusivos que em alguns casos, como os medicamentos para câncer, a empresa recupera o custo dos investimentos em cerca de três anos, enquanto a patente dura vinte. E a estimativa de receita de alguns produtos é superior a 1 bilhão de dólares por ano, que continuam faturando alto, mesmo depois da perda da patente. Quando a saúde é tratada como mercadoria e os pacientes apenas como compradores, a vida fica em risco.
É importante ressaltar que para as doenças que não têm potencial de lucro alto, as pesquisas não são nem realizadas e os tratamentos disponíveis ou não existem ou são obsoletos e com efeitos adversos severos. São as chamadas doenças negligenciadas, como a doença de Chagas, esquistossomose, hanseníase, dentre outras.
Em outros casos o tratamento existe, mas o preço é tão elevado que nem o governo é capaz de fornecer o medicamento, muito menos as pessoas de pagar por ele. Esse é o caso do medicamento sofosbuvir: uma cápsula pode custar quase mil reais, e o gasto total do tratamento passa de R$ 300 mil reais. O que acontece então é que estes medicamentos são prescritos apenas para os casos mais graves. Enquanto isso, os outros pacientes têm que continuar convivendo com a doença ou com uma piora de seu estado de saúde.
Quanto vai custar a vacina para Covid-19?
As vacinas e os tratamentos para o novo coronavírus seguirão a mesma lógica. O secretário de saúde dos Estados Unidos afirmou que não há garantia de que a vacina seja acessível a todos os estadunidenses, já que não podem controlar o preço porque, na sua opinião, é preciso que o setor privado invista. E eles são uma das maiores economias do mundo. Imagina para os outros países, que dispõem de menos recursos.
O problema de acesso é mais grave para produtos inovadores ainda protegidos por patente. Ou para outros produtos de maior conteúdo tecnológico e mais complexos de produzir, como é o caso de respiradores para UTI. Mas durante a pandemia, governos e profissionais da saúde estão tendo dificuldade para conseguir até os produtos mais simples, como máscaras de proteção. E há dificuldade também de disponibilizar testes para diagnosticar a população de forma ampla e adequada.
Isto ocorre porque, além da demanda altíssima, a capacidade produtiva dos insumos necessários para a sua produção está concentrada na Índia e na China, que fecharam seus mercados ou tiveram queda de produção durante a pandemia. A escassez provocou até atitudes de “pirataria moderna” por parte dos EUA, que desviou cargas de material médico originalmente destinadas ao Brasil, Alemanha e França e chegou a oferecer o triplo do valor para produtos que outros países já tinham pago e estavam contando com sua chegada. Ou seja, na hora do aperto, o espírito de solidariedade internacional foi para o lixo.
A capacidade produtiva também será um gargalo no caso de uma nova vacina. Como será preciso um número muito grande de doses, pode ser simplesmente impossível produzi-la em quantidade suficiente, já que são necessárias plantas produtivas especiais. Como a produção de bilhões de doses pode demorar, isso irá gerar competição entre os países ou mesmo dentro deles. De novo, provavelmente terão vantagem os países europeus ou os EUA, onde as grandes indústrias farmacêuticas estão instaladas ou, no caso das disputas internas, as elites de maior renda.
E o Brasil?
Se já existe disputa predatória entre as grandes economias mundiais, como ficará o Brasil e os outros países na hora de receber a tão valiosa vacina contra a Covid-19?
A situação brasileira preocupa, primeiro devido ao desgoverno da esfera federal durante a pandemia. Apenas 30% do recurso federal destinado ao Ministério da Saúde para combater a Covid-19 foi efetivamente gasto. À Fiocruz – que executa diversas ações na linha de frente do combate à pandemia, como a produção e realização de testes, gestão de um centro hospitalar especializado e colaboração em ensaios clínicos internacionais de medicamentos e vacinas – foram destinados R$ 1,2 bilhões, porém, apenas R$ 378 milhões foram pagos.
Mas também por sua posição de distanciamento no cenário. Antes protagonista de diversas iniciativas para acesso a medicamentos, defendendo os interesses dos países em desenvolvimento, o Brasil ficou de fora de iniciativas internacionais neste sentido, desconsiderando as agências multilaterais, que agregam a posição de vários países. Seja porque nem chegou a ser convidado, devido ao descrédito internacional do governo Bolsonaro, ou porque decidiu acompanhar os EUA, que também adota uma posição de isolamento , mas para defender seus próprios interesses.
Todavia, temendo ficar por último na fila quando uma vacina for descoberta, o Brasil começou a rever sua posição, e resolveu participar de iniciativas da OMS de compartilhamento de tecnologia e informação para acelerar o desenvolvimento de vacinas e tratamentos contra a Covid-19. Mas, no fim dia, trocamos uma posição de líder mundial para uma de capacho, que nem chega a ser convidado para as ações mais importantes.
De toda forma, o Brasil já começa a ficar de fora, devido à estratégia excludente da indústria farmacêutica. A Gilead é dona de um dos medicamentos que vem se mostrando promissor contra o novo coronavírus. Ela assinou acordos de licenciamento voluntário da patente com fabricantes de genéricos, para que eles possam fornecê-lo para países de baixa renda. A questão é que vários países de renda média ficaram de fora, incluindo o Brasil e a maioria dos países da América do Sul.
A lógica da empresa não é altruísta, e sim de lucratividade. Sabendo que ela não terá capacidade de atender a alta demanda pelo medicamento, ela faz um acordo para atender os países mais pobres, que não tem condições de pagar, e assim focar esforços para venda nos países de renda relativamente mais alta, onde ela poderá praticar preços altos sem impedimentos, já que a patente lhe confere monopólio. Ela é detentora também do medicamento sofosbuvir e usou a mesma estratégia com ele. Aconteceu o abuso de preços, como relatamos acima.
A capacidade científica brasileira
Mas nós também temos boas notícias, apesar do descaso do atual governo com a saúde e a ciência. O Brasil tem uma capacidade científica nacional relevante, sendo referência internacional nas áreas de pesquisa da saúde. Além disso, nós temos um parque industrial interno, com empresas farmacêuticas e de equipamentos médicos. Se destacam os laboratórios públicos de medicamentos, que além de medicamentos essenciais são capazes de produzir substâncias mais complexos, como as vacinas. A notícia ruim é que faltou investimento sustentado e políticas públicas coordenadas para aproveitar todo o potencial instalado no país.
A indústria nacional consegue produzir para dar certo alívio na demanda, e é crucial para políticas de acesso amplo e gratuito à medicamentos, como foi o caso do HIV/AIDS, elogiado internacionalmente. Mas ela é muito dependente da importação de princípios ativos de medicamentos e outras matérias primas e não tem a mesma capacidade tecnológica na fronteira do conhecimento como os outros países.
A falta de investimento já acontece há muitas décadas, principalmente após a instauração das medidas de austeridade fiscal. Mas é inegável que a gestão do governo atual é desastrosa, irresponsável e custa vidas. Tanto pelo desprezo pela ciência, chamando o novo coronavírus de “gripezinha”, ignorando as recomendações de isolamento social, e cortando substancialmente os investimentos em ciência, tecnologia e educação, em especial de nível superior. Quanto pela falta de coordenação e liderança do Ministério da Saúde, que, em meio a trocas de gestão no meio da pandemia, não consegue dar respostas e o apoio necessário aos estados e municípios.
Mesmo assim, temos esperança. A ciência nacional mostra sua força em casos como o da USP, que desenvolveu um respirador muito barato e rápido de ser construído e das universidades atuando para produzir materiais e equipamentos, realizando testes diagnóstico, dentre outras atividades. Pesquisadores brasileiros também participam de diversas redes internacionais relacionadas ao novo coronavírus, buscando alternativas para os países mais pobres.
E ações vêm sendo tomadas buscando reduzir as barreiras ao acesso. Tramita na Câmara o Projeto de Lei 1.462/2020 que propõe a suspensão temporária de patentes sobre toda e qualquer tecnologia em saúde que possa ser usada contra a pandemia de Covid-19. Esse PL segue a ação de países como Alemanha, Canadá, Israel, Chile, Equador e Colômbia que tomaram medidas legislativas para promover o acesso a tecnologias para a contenção da pandemia. E a Universidade Federal de Pelotas irá licenciar patentes e transferir tecnologias relacionadas à COVID-19 de forma gratuita.
É necessário que essas iniciativas se concretizem e se multipliquem. E que a garantia de acesso chegue também, e principalmente, às pessoas em dificuldade financeira e as regiões mais carentes do país. Mas para além do combate a esta pandemia, é imprescindível que o Brasil amplie sua produção local, em especial de fármacos e outros insumos e adequem suas instituições científicas e produtivas para estarem na fronteira do conhecimento tecnológico. E com isso possa aumentar sua independência em relação ao mercado internacional, fortalecer o SUS e proteger a vida de todas (os) suas cidadãs (ãos). Para isso, é necessário investimento público adequado e uma política nacional de inovação voltada para a promoção do acesso e realização do direito à saúde.
Luiza Pinheiro é farmacêutica e assessora política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos).