Setor financeiro e trabalho escravo
Desde 2010, o Conselho Monetário Nacional proibiu que seja concedido crédito rural a qualquer empregador que figure na “lista suja do trabalho escravo”, criada pela fiscalização do trabalho no Brasil em 2004
Neste início de 2023, têm pipocado no Brasil denúncias sobre trabalho análogo ao escravo, muito provavelmente porque agora os auditores fiscais do trabalho (servidores públicos federais que são) se sentem novamente livres para exercer as atribuições que lhes competem: fazer valer as normas de saúde e segurança do trabalho previstas, bem como outros direitos básicos de trabalhadores, garantidos pela legislação brasileira.
O trabalho análogo ao escravo constitui crime no Brasil, previsto no artigo 149 do Código Penal, e se caracteriza por uma série de condutas que violam direitos relacionados à liberdade ou à dignidade básica de trabalhadores, abarcando retenção de documentos, cobrança de valores abusivos por moradia ou alimentação, seguida de retenção de salários, situações em que trabalhadores são coibidos a morar, se alimentar ou satisfazer necessidades de higiene em condições que ferem a sua dignidade.
Essas situações não são excepcionais e estão integradas a diferentes cadeias produtivas, muitas vezes exportadoras, inclusive. O caso das vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, em que, além do trabalho escravo, foram identificados crimes de tortura e lesões corporais, demonstra que o problema está espalhado em diferentes setores econômicos. Na mesma região Sul, logo vieram à baila situações semelhantes em plantações de arroz, mostrando que o setor agrícola continua sendo o mais problemático nesse tema.
Lista suja do trabalho escravo
E, como a maior parte da economia passa pelo setor financeiro, seja pelo recurso a crédito bancário, seja pelo acesso ao mercado de capitais, seja pela subscrição de riscos via seguros, também nesse tema a regulação e o mercado financeiro possuem um papel a desempenhar. No Brasil, desde 2010, o Conselho Monetário Nacional (Resolução 3876) proibiu que seja concedido crédito rural a qualquer empregador (pessoa física ou jurídica) que figure na chamada “lista suja do trabalho escravo”, criada pela fiscalização do trabalho no Brasil em 2004.
Entretanto, o problema está longe de se restringir ao setor agrícola, como demonstrou o escândalo mais recente no festival Lollapallooza – historicamente, construção civil e indústria têxtil – envolvendo diversas grifes – também são setores em que diversos casos foram flagrados. Uma das associações da construção civil (Abrainc), assim como a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) chegaram a ajuizar ações diretas de constitucionalidade para retirar a lista suja do ar, alegando que as empresas não teriam direito à defesa, quando na realidade a inclusão na lista somente se dá após decisão final tomada em processo administrativo em que elas têm oportunidade de apresentar suas provas e argumentos, razão pela qual o cadastro foi considerado perfeitamente constitucional e legal pelo Supremo Tribunal Federal.
O problema é que a regulação em questão, infelizmente, ainda vale apenas para o crédito rural, muito embora diversas instituições financeiras acabem estendendo a vedação voluntariamente para outras formas de crédito e o tema seja mencionado também em outras normas, mas não de forma a vedar terminantemente o financiamento. Além disso, nem todas as empresas se financiam via crédito bancário, podendo estar fazendo uso de capital próprio ou obtido como adiantamento pelas empresas que adquirem seus produtos, por exemplo.
E essas empresas podem ser grandes corporações, com acesso ao mercado de capitais, de modo que, em nível global, iniciativas de autorregulação como o Pacto Global, criado em 2000, já incluem entre os compromissos a serem assumidos pelas empresas signatárias o dever de combater o trabalho análogo à escravidão.
Por ser iniciativa do próprio mercado, porém, não existe fiscalização efetiva sobre se as signatárias cumprem o compromisso, sobretudo em suas cadeias de produção – algo que deve ir muito além de fornecedores, abrangendo também clientes.
Assim como bancos podem e devem negar crédito a pessoas e empresas que já são seus clientes, fornecedoras de insumos agrícolas, por exemplo, também devem fazê-lo, se de fato levam a sério sua responsabilidade empresarial.
O mesmo vale para seguradoras, que também podem se negar a subscrever riscos de empresas que estejam no tal cadastro. E investidores em geral, mas sobretudo os de caráter institucional, como as próprias seguradoras e as entidades de previdência abertas e fechadas, podem e devem exigir que as empresas que recebem seus investimentos monitorem os riscos de trabalho escravo em suas cadeias de valor, recusando-se a adquirir ou fornecer produtos e serviços para empresas que não respeitem a condição humana de seus empregados.
Se isso fosse uma realidade generalizada no setor financeiro, esses empregadores criminosos já estariam excluídos do mercado. Por enquanto, o que vemos são muitas políticas apregoando que não se concede crédito ou se realiza investimentos em empresas envolvidas com trabalho escravo, mas enquanto o tema não for levado a sério para toda a cadeia de produção, o problema não será eliminado.
Luciane Moessa é diretora executiva e técnica da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).