Silenciamento de mulheres negras, trans e grupos sub representados
A violência política e eleitoral é um fenômeno cada vez mais preocupante, quanto mais se amplia a consciência pública sobre o seu caráter estrutural
Antes, durante e após as eleições, a violência política ergue sérios obstáculos para que grupos sub representados exerçam seus direitos políticos, especialmente mulheres negras. O processo eleitoral de 2020 encerrou-se como um dos mais violentos dos últimos anos, marcado por um crescimento assustador dos atos de violência em todo o país. A violência política e eleitoral é um fenômeno cada vez mais preocupante, quanto mais se amplia a consciência pública sobre o seu caráter estrutural. Trata-se de um fenômeno que não se limita aos anos eleitorais, não se restringe a alguns partidos políticos e que compromete e elimina não apenas a vida e a integridade de indivíduos, como também o exercício de direitos políticos de coletividades inteiras. Nos últimos quatro anos, as ocorrências de violência política e eleitoral atingiram índices alarmantes. As pesquisas Violência Política e Eleitoral no Brasil e Violência Política Contra as Mulheres Negras, realizadas, antes e durante as eleições de 2020, pelas organizações Terra de Direitos, Justiça Global e Instituto Marielle Franco, mostraram que este tipo de violência não é episódica e vem, ano a ano, sendo utilizada como instrumento para a obtenção e manutenção do poder, barrando o acesso de grupos sub representados, especialmente mulheres negras, aos espaços de poder e decisão, atacando a legitimidade de suas reivindicações e pautas políticas.
Na forma de assassinatos e atentados, ameaças, ofensas, agressões, invasões e criminalização, a violência política e eleitoral consolida um cenário de gravíssimas violações de direitos humanos. A pesquisa realizada pela Terra de Direitos e Justiça Global aponta que a instrumentalização da violência para obter benefícios políticos, para eliminar a oposição e para lidar com diferenças políticas, expostas e acirradas após a última eleição presidencial em 2018, só se ampliou. Assim, o ano de 2020 registrou pelo menos um episódio de violência política a cada dois dias. Somente entre 2 de setembro e 29 de novembro deste ano foram contabilizados 14 assassinatos e 66 atentados contra candidatos/as a prefeituras e câmaras de vereadores em todo o Brasil. Um crescimento de 296% no número de atentados e assassinatos registrados entre setembro e novembro, comparado aos primeiros oito meses do ano – em que foram registrados 13 assassinatos e 14 atentados. No ano de 2020, o número de assassinatos e atentados mapeados é 3,7 vezes maior do que a quantidade de casos de 2016.
Essa violência, quando ocorre contra representantes de grupos sub representados, assume características diferenciadas. Assim é com as mulheres negras, brancas e LBTs, e as pesquisas registraram igualmente um crescimento vultuoso nos casos de violência política contra mulheres. Com a conclusão do pleito eleitoral de 2020 surgem ainda mais desafios para essas mulheres que, mesmo eleitas democraticamente através do voto – considerando outros diversos obstáculos, continuam sub representadas e têm sua atuação limitada nos espaços de poder. Com as mulheres essa violência é seletiva e se coloca como forma de inviabilizar sua atuação política. Em relação às mulheres negras, que ampliaram sua representação nas casas legislativas do país, mesmo que timidamente, os casos registrados demonstram a urgência de implementação de políticas de proteção por parte do Estado brasileiro, com garantias para que elas exerçam seus mandatos e usufruam de seus direitos políticos de forma plena.
O caso de Ana Lúcia Martins (PT), primeira mulher negra eleita vereadora na cidade de Joinville (SC) é um exemplo disso. A comemoração do “feito histórico” foi dividida com uma série de ameaças racistas em redes sociais, incluindo ameaças de morte e o hackeamento de suas redes. Depois desse episódio, Ana Lúcia vem tentando garantir a apuração dessas denúncias, a punição dos responsáveis e a proteção para que não seja vítima de novas violências. Uma campanha com mobilizações em âmbito nacional e internacional liderada pelo Instituto Marielle Franco, com apoio de várias organizações da sociedade civil, foi lançada recentemente para exigir justiça no caso da vereadora eleita. A campanha visa mobilizar a sociedade civil para exigir do Ministério Público e do Governo de Santa Catarina que garantam à Ana tanto proteção, quanto o seu direito a exercer o mandato.

A prefeita eleita na cidade de Bauru (SP) Suéllen Rosim (Patriota) rompeu com um ciclo de administrações protagonizadas por homens brancos da cidade paulista e tornou-se a primeira mulher negra prefeita da cidade. Mesmo representando um partido considerado de ideias conservadoras, a cor da pele de Suéllen foi definitiva para que ela também fosse vítima de ofensas racistas e ameaças de morte logo que se confirmou sua eleição. As ofensas vão desde a animalização dessas mulheres, comparadas com bichos, à repetição de insultos sobre os seus cabelos e sua aparência até ameaças explícitas de morte. A violência carrega uma mensagem e o autor da violência manifesta-se em nome de grande parte da sociedade brasileira. A mensagem dirige-se à eliminação dessas mulheres. Uma eliminação que utiliza o insulto e ameaça para criar um ambiente que coloca em suspensão a vida e os direitos dessas mulheres, dando a uma sociedade racista a ilusão do poder, do qual não abrem mão. Os ataques são constantes. Estão presentes antes, durante e após o processo eleitoral, estando elas eleitas ou não. Para as eleitas, a violência eleitoral fica para trás e assume outro nome, violência política. As intimidações, ameaças de morte, ataques virtuais, verbais e físicos irão acompanhar essas mulheres, mesmo antes da posse e por todo o exercício do mandato. Uma ferramenta eficaz de intimidação utilizada para interditar corpos e impedir o debate sobre temas, que por muitos anos não estiveram presentes na “ordem do dia”, em defesa do interesse de uma “maioria” hegemônica nos postos de poder. A negação do racismo, a certeza da impunidade e um sistema político composto, quase que majoritariamente, por homens brancos, fazem com que esses atos sejam invisibilizados, e que essas mulheres sejam obrigadas a viver expostas a uma violência e ódio racial sistêmicos que a qualquer momento podem transbordar e retirar-lhes a vida.
A denúncia se torna a única forma possível de buscar a proteção do Estado, mas a não responsabilização de quem comete esse tipo de violência faz com que as mulheres não vejam motivos para realizarem a denúncia, e ficarem ainda mais expostas aos agressores. Dados da pesquisa “A violência política contra mulheres negras: Eleições 2020”, desenvolvida pelo Instituto Marielle Franco em parceria com Terra de Direitos e Justiça Global, mostram que 29% das mulheres negras candidatas entrevistadas não querem denunciar a violência política e 17% afirmam não se sentirem seguras para realizar uma denúncia.
O coro dos que exibem por meio virtual suas ameaças e ofensas racistas contra mulheres políticas caminha ao lado do silêncio daqueles que relutam em mapear, analisar e combater a violência política e eleitoral no Brasil. É preciso entendê-la como um fenômeno que interfere no processo democrático e, justamente por isso, exige urgência de respostas. O ineditismo da eleição de Ana Lúcia é utilizado para justificar as ameaças. Uma mulher negra, professora, a primeira a ocupar um espaço historicamente designado aos homens brancos, tudo isso em uma sociedade que tem como pilar o racismo e a desigualdade social. Se a vitória eleitoral de Ana Lúcia e Suéllen é inédita, as violências que sofreram estão longe de ser uma exceção na experiência das mulheres agentes políticas no Brasil.
Algumas das conclusões apontadas na pesquisa da Terra de Direitos e Justiça Global, mostram que, enquanto os homens agentes políticos estão mais expostos à violência por meio de assassinatos e atentados, as mulheres são as maiores vítimas de ataques que buscam a intimidação, a deslegitimação dos seus corpos enquanto agentes políticas e a exposição a situações vexatórias. As mulheres representam 76% das vítimas em casos de ofensas e em mais da metade desses casos as ofensas são motivadas pelo crime de racismo e por misoginia. A pesquisa sobre violência política contra mulheres negras do Instituto Marielle Franco mostrou que quase 100% das candidatas ao pleito eleitoral de 2020 consultadas sofreram mais de um tipo de violência política. E 60% dessas mulheres foram insultadas, ofendidas e humilhadas em decorrência da sua atividade política nestas eleições.
Ainda sobre os dados acerca da violência política contra mulheres negras, a principal violência apontada pelas mulheres negras na pesquisa foi a virtual, representando quase 80% do total dos ataques sofridos por essas mulheres. Uma média de 8 em cada 10 das entrevistadas que foram submetidas a essa violência receberam comentários e mensagens de cunho racista em suas redes sociais, e-mail ou aplicativos de mensagens, sendo que quase 10% desses ataques foram feitos em eventos públicos virtuais. Em 62% dos casos essa violência foi moral e psicológica e mais de 50% dessas mulheres foram vítimas de violência praticada por órgãos públicos, instituições, agentes públicos e ou privados.
Como frear uma onda de violência que atinge as mulheres agentes políticas, principalmente as negras, e responsabilizar os perpetradores? Esse é o outro grande desafio para a nossa sociedade. Enquanto a violência política for vista no Brasil como problema episódico que desaparece depois das eleições, o compromisso com a responsabilização pelos atos de violência será carregado por apenas uma parcela da sociedade, quando deveria ser uma preocupação de todos. Se a violência retira de determinados grupos o direito legítimo a disputar e ocupar espaços de poder, se mulheres negras eleitas e candidatas sofrem ameaças e ataques que comprometem suas chances de sucesso eleitoral e o sucesso dos seus mandatos, a violência política é um problema da democracia brasileira.
Não pode ser considerado normal que um país onde quase 30% da população é formada por mulheres negras, trate como “feito histórico” a presença dessas mulheres em espaços de poder. Em uma recente entrevista, a deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL/SP), ao analisar o avanço no número de mulheres trans candidatas e eleitas em 2020, considerou como gravíssimo o fato de ela, em 2018, ter sido a primeira mulher trans negra a assumir um cargo eletivo no Brasil. A parlamentar afirma que essa é uma realidade que deve ser tratada como uma denúncia e chama a atenção para “um pacto construído”, que não se escandaliza com a ausência de corpos como o dela em lugares de poder, enquanto naturaliza a presença desses mesmos corpos em espaços como postos de trabalho precários, de baixa remuneração e nas ruas.
A eleição da deputada Erica Malunguinho, da deputada Benedita da Silva, da deputada Talíria Petrone, da vereadora Ana Lúcia, da vereadora Marielle Franco – interrompida em um assassinato que traz todos os significados da violência política – e tantas outras mulheres negras que ousaram romper as barreiras do racismo e estar na política, não pode ser vista como “feito histórico”, ainda que, de fato, o sejam. Estas mulheres ousaram estar nesses espaços contra a invisibilização de suas lutas e violação constante dos direitos da população negra, além de uma total ausência de representação do seu povo.

A responsabilidade para mudança desse cenário e avanço na luta antirracista cabe a todas as entidades com atribuições relativas a defesa dos direitos políticos no país. Trata-se de uma agenda que deve ser encarregada de forma prioritária também por partidos políticos. As cotas de representatividade e de recursos partidários não serão suficientes para o combate dessas desigualdades e modificação dessa estrutura, que carrega em seu imaginário qual o perfil das pessoas que devem ser mantidas, a qualquer custo, na base da pirâmide social.
A vereadora mais jovem eleita em Belém, Beatriz Caminha (PT), é mais um exemplo de como essa violência ocorre de forma generalizada e se reproduz de forma rotineira como parte de um cotidiano racista. Ela foi alvo de um ato de violência durante a coletiva do prefeito eleito da cidade de Belém (PA), Edmilson Rodrigues (PSOL), quando não foi reconhecida como vereadora eleita e foi impedida de entrar no evento. A vereadora, que é uma jovem negra, utilizou as redes sociais para denunciar o ataque. Ela definiu como “humilhante” a situação e relatou que chegou a ser carregada por seguranças da campanha, classificando esse ato como o “racismo e machismo puro”. É preciso que os partidos políticos olhem para os seus quadros, identifiquem agressores e dinâmicas de violência institucional e punam essas violências criando primeiramente dentro dos seus espaços um ambiente seguro para acolher a denúncia essas mulheres.
Após sofrer inúmeras ameaças, inclusive de morte, a deputada Taliria Petrone (PSOL-RJ) foi obrigada a solicitar escolta da polícia legislativa e tem denunciado essa violência em busca de proteção e responsabilização dos agressores. O tema precisa ser tratado com seriedade, inclusive, pelo Congresso Nacional. O PL 5295/2020, apresentado por Taliria recentemente, foi uma das formas encontradas por ela para pautar esse tema na Câmara. Uma proposta de legislação que busca garantir o direito às mulheres de exercerem seus direitos políticos livres de ataques, ameaças e intimidações. O projeto propõe a criação de mecanismos para coibir, prevenir e punir a violência política contra as mulheres, independentemente da motivação e de quem sejam os agressores.
O aumento no número de casos de ofensas contra mulheres em 2019 sinaliza que esse tipo de violência tende a crescer nos próximos anos. O Estado brasileiro precisa avançar muito no desenvolvimento de políticas e protocolos de acompanhamento dessa violência. De acordo com os dados levantados por Terra de Direitos e Justiça Global, em todos os tipos de violência verifica-se que a maioria dos agressores é do sexo masculino. Dados do Instituto Marielle Franco apontam que, nos casos de violência contra mulheres negras, 45% das agressões partiram de indivíduos não identificados, quase 30% de indivíduos ou grupos militantes de partidos políticos adversários, além de várias denúncias que apontam para a ação de grupos neonazistas e anti-feministas.
Os casos mapeados pelas pesquisas e as investigações de algumas das situações indicam a consolidação de um cenário de violência organizada, exercida em atos planejados, premeditados e impulsionados por grupos criminosos associados a ideologias de supremacia branca e ódio baseado em raça, sexo e identidade de gênero. A violência que se dissemina e fortalece por meio de discursos de ódio implementa uma cultura política que divide a sociedade e transforma alguns grupos em alvos preferenciais de episódios de brutalidade, ofensas e ataques massivos. No caso brasileiro, o discurso de ódio é fortalecido na medida em que é uma ferramenta de discurso político das autoridades públicas. O levantamento Quilombolas contra racistas, da Conaq e da Terra de Direitos, demonstrou que, de 2019 para 2020, o número de discursos racistas proferidos por autoridades públicas mais que dobrou (106%), saindo de um total de 16 para 33 casos. No ano de 2020, se considerarmos apenas os casos de grande repercussão mediática, todo mês ocorreu pelo menos um caso de discurso racista entre as autoridades brasileiras.
As pesquisas que realizamos neste ano propõem ações urgentes a serem adotadas para que essa violência seja controlada e punida. E para que grupos vulnerabilizados tenham condições igualitárias de disputa e representação no sistema político brasileiro.
Para a efetivação de uma política pública é preciso reconhecer a sua necessidade e disponibilizar recursos para a implementação de suas ações. São necessárias ações por parte dos órgãos de gestão eleitoral, do poder legislativo, do judiciário, dos partidos políticos, das forças de segurança e das instituições de direitos humanos. Todos esses órgãos e instituições têm um papel essencial no combate à violência política e somente um trabalho integrado trará respostas eficazes a esses episódios. É urgente a criação de um Programa nacional de monitoramento da violência política, com recursos para ações emergenciais de atendimento e proteção às vítimas. Além da elaboração de estudos e a implementação de pesquisas e campanhas sobre esse tema.
É preciso reconhecer que a proteção integral dessas mulheres não está garantida em nenhum Programa de Proteção do Estado. O Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos não dá conta de proteger essas mulheres. São inúmeras as ineficiências na política de proteção, vários estados não contam com programa de proteção e não existe protocolo específico de proteção para representantes de cargos eletivos.
Preocupadas com as graves violações de direitos humanos que as candidatas eleitas negras vêm sofrendo, a Terra de Direitos, a Justiça Global, o Instituto Marielle Franco e Criola, encaminharam ao TSE, à Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados e à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público, ofícios relatando essa situação e pedindo providências.
O custo democrático da violência política é muito alto. A exclusão violenta de outros corpos e perspectivas do ambiente político reforça estereótipos prejudiciais, discursos de ódio e processos de estigmatização que já silenciam e inviabilizam a participação e o exercício de direitos políticos por parte de grupos sub representados e historicamente discriminados. É preciso uma atuação integrada de órgãos do Estado no acompanhamento e na apuração da violência política e eleitoral garantindo que, nas próximas eleições, possamos avançar nesse debate e começar a combatê-la em um estágio mais avançado do que o da denúncia.
Gisele Barbieri é coordenadora de incidência política no Congresso Nacional da Terra de Direitos
Elida Lauris é coordenadora da Terra de Direitos
Marcelle Decothé é coordenadora de Incidência do Instituto Marielle Franco
Fabiana Pinto é pesquisadora do Instituto Marielle Franco
Glaucia Marinho é coordenadora da Justiça Global
Sandra Carvalho é coordenadora da Justiça Global
Lúcia Xavier é coordenadora-geral da ONG Criola