Sistemas de justiça e a heteronormatividade: características e ferramentas para uma perspectiva emancipatória
O sistema de justiça cumpre um papel significativo na formação e manutenção de normas sociais, em especial no que tange à heteronormatividade. Como elemento coadjuvante da norma social heterossexual, ele reforça as expectativas tradicionais relativas à sexualidade e aos papéis de gênero através de leis, decisões judiciais, e da interpretação do Direito
Nos últimos anos, têm aumentado as críticas e questionamentos sobre os sistemas de justiça tradicionais, que, de maneira geral, reproduzem as normas sociais que impõem um regime de heteronormatividade como padrão, cuja consequência é o não reconhecimento de direitos básicos e humanos de pessoas LGBTQAPn+. Assim, o sistema de justiça, através de seus atores, decisões, instituições e normas, ao reforçar estereótipos de gênero, também reforça as desigualdades, e limita a pluralidade de experiências e de falas, inviabilizando que uma pluralidade de sujeitos protagonizem e difundam suas próprias experiências sociais dentro das instituições de justiça.
Portanto, a busca por uma perspectiva emancipatória do Direito passa pela desconstrução dessas normas e pela aplicação de ferramentas de promoção da equidade e de inclusão. Mecanismos como uma análise interseccional, que considera as múltiplas opressões de raça, gênero e sexualidade, e a prática de uma hermenêutica igualitária, libertadora e feminista nos julgamentos, são essenciais para modificar as práticas jurídicas e tornar os sistemas de justiça mais inclusivos e equitativos.
Este trabalho busca evidenciar como os operadores do direito atuam nos dias atuais, e como podem deixar de ser reprodutores da opressão heteronormativa, transformando-se sujeitos da emancipação de gênero, em benefício tanto para indivíduos quanto para estes grupos historicamente marginalizados.

1. Sistema de justiça como elemento coadjuvante para composição do contexto cisheteronormativo
Qual a função do direito na composição de um contexto cisheteronormativo, e como o direito pode auxiliar na transformação da realidade social são questionamentos essenciais para transformar o direito num instrumento em prol da defesa de direitos das minorias como um todo, e das pessoas transexuais, em particular, além de ser de fundamental importância para legitimar a existência de um Estado que se diga Democrático de Direito.
Segundo a filósofa Judith Butler, o gênero é uma construção social binária (macho-fêmea ou masculino-feminino) imposto na vida de todos os seres humanos desde o nascimento, e forjado por várias instituições socialmente construídas, como a família, a educação, e a religião, e que é composto por um ato performativo, e não apenas por uma identidade biológica; a identidade de gênero, portanto, é geralmente consequência de uma imposição social, e é mantida pela repetição de certos gestos, atos e signos que confirmam a construção dos corpos masculinos e femininos.
Nesse sentido, pessoas que ao longo da vida se identificam como o gênero atribuído em razão do sexo biológico são denominadas “cisgêneras”(“cis”), assim como aquelas que não se identificam com a mimese sexo/gênero, a partir de algum momento da vida inclusive na infância, são denominadas “transgêneras” (“trans”), categoria que inclui pessoas não-binárias ou de gênero fluido. Porém, pessoas que correspondem ao duo “cisgeneridade e heterossexualidade” compõem a norma social, sendo colocadas como superiores a todas as outras que não se reconhecem nesse espectro. O sistema normativo sexo/gênero/sexualidade/desejo coloca como dissidência, alvo de preconceito, violência e discriminação as demais expressões de gêneros e manifestações diversas da sexualidade humana (DIAS, 2023, p. 16).
O contexto no qual as normas jurídicas se consolidam é alimentado, então, por uma superestrutura social, econômica e política, sendo o Direito um dos elementos que envolvem as relações de poder-saber, que, por sua vez, definem processos de exclusão de sujeitos a partir de critérios de inteligibilidade, em que pessoas somente têm a sua humanidade reconhecida quando se filiam às normas de gênero.
Já para Michel Foucault, filósofo e historiador, o sexo representa peça central de um bipoder, por estar tanto ligado ao disciplinamento do corpo e à regulação da sociedade, como também ao seu adestramento; pertence, assim, ao mesmo mesmo tempo, ao micropoder, que se impõe sobre o corpo e o indivíduo, quanto ao poder global, que se relaciona com um poder geral, social; assim, regular corpos representa também estabelecer uma forma de poder, tanto individual, quanto social (FOUCAULT, 2010, p. 135-136).
Danner e Oliveira (2009) apontam que o poder em Foucault é compreendido como uma rede de micro-poderes articulados ao Estado e que atravessam a estrutura social, ou seja, como ‘[…] uma rede de dispositivos ou mecanismos que atravessam toda a sociedade e do qual nada nem ninguém escapa (DANNER; OLIVEIRA, 2009, p. 787). Em oposição à noção do poder como centrado no Estado, detido pelos dominantes e imposto aos dominados sob a forma de proibições, punições, opressões, coações e constrangimentos, Foucault afirma que seria um equívoco qualificar e reduzir o poder essencialmente em seu aspecto repressivo’. (DANNER; OLIVEIRA, 2009; FOUCAULT, 1979; MUCHAIL, 2004)’ (FIRMINO; PORCHAT, 2017, p. 53).
Ainda, conforme ensina o autor, foi por volta dos séculos XVIII e XIX, que mecanismos de produção de verdade – como a medicina, a psiquiatria e a legislação – redundaram em formulações que se tornaram, mais adiante, discursos de conformação da sexualidade, com vistas a categorizar conjuntos específicos de “perversões sexuais”, sendo que “em torno do sexo, passou a se consolidar um controle sexual minucioso de cada ato que pudesse ser perigoso à família nuclear e às práticas sexuais consideradas normas” (ROSA, 2020, p. 62). Mais especificamente, em torno no século XVIII, iniciou-se um mecanismo de controle da linguagem, depreciando relações e seres sexuais que estivessem fora dessa condição heteronormativa imposta.
Portanto, em conformidade à criação teórica-normativa da sexualidade, foi cunhado o termo heteronormatividade, com o objetivo de categorizar a marginalização e repressão reiteradas por práticas sociais, políticas e religiosas que se referissem especificamente à sexualidade e ao gênero, práticas estas que tratavam a homoafetividade como um comportamento desviante e antinatural.
Nesse mesmo contexto também se relaciona a teoria de Judith Butler, para quem o poder e o saber se articulam intrinsecamente, e a imposição de um regime de sexualidade categoriza indivíduos, atendendo a estratégicos objetivos de docilização de sujeitos necessários ao bom funcionamento da economia.
A imposição de identidades de gênero atua, portanto, em vários contextos que compõem a estrutura social, e tal interligação entre elementos estruturantes tem de ser considerada ao verificar como o Direito auxilia na manutenção dessa norma heteronormativa.
Há um padrão pressuposto pela heteronormatividade, que valida as relações formadas por papéis tradicionais desempenhados por homens e mulheres, papéis estes compatíveis com as expectativas sociais e as estruturas institucionais; assim, o Direito, ao criar uma legislação que reforça a ideia de uma família nuclear tradicional, age como um mecanismo de validação dessa norma social, reproduzindo essa estrutura familiar, por meio de decisões judiciais, e excluindo e marginalizando outras formas de relacionamento e de organização familiar.
Nesse sentido, as decisões judiciais não apenas narram os fatos, mas os constroem discursivamente, e, em conjunto, formam precedentes e jurisprudência; portanto, a própria compreensão de como os fatos se dão é uma construção social afunilada pelo discurso jurídico-normativo, que estabelece uma narrativa vinculada a um regime cisheteronormativo de verdade (LAGES, 2022, p. 32). Sendo a heteronormatividade o padrão de sexualidade que regula o modo como as sociedades ocidentais são organizadas, todas as ferramentas sociais, incluindo o Direito, servem para engendrar essa arquitetura social, encerrando e constituindo subjetividades.
Desse modo, o termo heterocisnormatividade é entendido como um conjunto de normas sociais em que a orientação heterosexual e a identidade de gênero cis são reconhecidas como as principais, quando não as únicas passíveis de legitimação em um determinado espaço de convívio, não excluídos outros critérios de análise de discriminação social (BAGGENSTOSS, 2021, P. 111).
A tecnologia de gênero, que representa qualquer mecanismo que crie estereótipos de gênero, atua em conjunto com outras epistemologias institucionalizadas inseridas no cotidiano e que interferem na auto-representação do sujeito, sendo o sistema de justiça apenas uma delas; assim, a heteronormatividade, como norma social, encontra no Direito uma ferramenta para proteger e constituir específicas individualidades, alienando o sujeito de si mesmo e induzindo-o a conformar-se dentro de um molde identitário, fora do qual ele não será digno de proteção.
O direito, portanto, como regime de verdade, resulta de variáveis relações de poder, em que são silenciados diversos modos de existir e coexistir. Como saberes sujeitados, muitos desses modos de existir são hierarquizados, discriminados e refutados ao não se enquadrarem na lógica do sujeito universal. Sob um prisma biologizante e binário, tanto a heteronormatividade quanto a cisnormatividade produzem sentidos com pretensões exclusivas e de legitimação de práticas, sobre o que deveria ser um homem e do que deveria ser uma mulher a partir da sua dimensão biológica, (re)dimensionando semanticamente a subjetividade e organizando os corpos de modo social e político (BAGGENSTOSS, 2022, p. 32).
O direito, então, é instrumento para uma eloquente omissão: a inexistência de normas protetivas de pessoas LGBTQIAPN+ não vem ao acaso, e decorre, isto sim, de uma deliberada decisão política em não salvaguardar sujeitos que transgridam a heteronormatividade; nesse ponto, é simbólico o contexto no qual a constituinte de 1988 foi conduzida, com não aprovação, pelo Congresso Nacional, da inclusão da expressão “discriminação por orientação sexual” no art. 5º, da Constituição Federal; trata-se de uma lacuna, diante da possibilidade, colocada à apreciação do constituinte, de previsão de um mandado constitucional de criminalização através do qual já haveria uma imposição ao legislador ordinário de estabelecer tipos penais específicos relativos a violências direcionadas a esses grupos.
Nesse cenário, é possível destacar a presença marcante do discurso e de ideologias pautadas no fundamentalismo religioso cristão em espaços que deveriam atuar, idealmente, como promotores de igualdade de direitos e de condições de grupos sociais subalternizados, a exemplo da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e do Senado Federal. Em consequências de tais fatos, é visível a morosidade do Estado brasileiro na criação e na aprovação de dispositivos legais que visem a promover a cidadania de sujeitos dissidentes, bem como a moralizar simbolicamente a sociedade em relação às violências perpetradas contra eles, segundo o clamor dos movimentos sociais ligados à pauta LGBT, a exemplo do Projeto de Lei n. 122/2006 – de autoria da Senadora Iara Bernardi, do Partido dos Trabalhadores de São Paulo, o qual estabelece a criminalização da homofobia – que se arrasta por diversas instâncias legislativas há mais de 11 anos sem, até então, ter sido aprovado (SILVA, 2019, p. 30).
Assim, a “aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero” (ADO 26/DF) hoje é objeto somente de salvaguarda pontual, resultante de estratégias de advocacy, que consistem em “ações coordenadas para influenciar decisões no campo legislativo ou jurídico em torno de uma determinada temática” (BAGGENSTOSS, 2022, fl. 34), e, embora icônica a decisão do Supremo Tribunal Federal no sentido de incluir a homofobia e a transfobia como formas de manifestações de racismo, a necessidade de decisão judicial com efeito vinculante (ADO 26/DF) é resultante da intencional omissão legislativa em proteger pessoas deste grupo.
Adicionalmente, em que pese a tentativa de criminalizar condutas homo ou transfóbicas, a decisão dada pelo Supremo Tribunal Federal corresponde àquilo que se convencionou designar no meio jurídico como “criminalização de plástico”, porque representa uma pseudo solução que apenas aumenta o cardápio de tipos penais, sem que, no entanto, acarrete qualquer mudança social, seja porque não inibe a prática de condutas que caracterizam a violência de gênero, seja diante da manutenção da perspectiva heteronormativa dos agentes que atuam nas vias de atendimento aos usuários de serviços públicos (autoridade policial, assistência social, agentes de saúde pública, etc.), revitimizando os sujeitos considerados dissidentes, seja ainda, diante na ausência de políticas públicas focadas à proteção destes grupos.
Exemplificativamente, em uma potencial subnotificação, foi produzido por meio do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTQIAP+, um Dossiê, segundo o qual, em 2020, o total de mortes registradas foi de 237; já em 2021, foi de 316, e, finalmente, em 2022, foram 273 os casos de crimes de ódio, sendo destes, 228 homicídios, representando 83,52% do total dos casos.
Ainda, segundo relatório produzido pelo Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras, da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o Brasil é o país com mais mortes de pessoas trans e travestis no mundo pelo 14º ano consecutivo, surgindo logo após o México e os Estados Unidos em segundo e terceiro lugar, respectivamente.
Tais números correspondem a enredos que nada têm de novo no Brasil, porque não representam em nada situações isoladas, mas, ao contrário, “integram uma lógica social naturalizada, ritualizada e performativizada culturalmente, através de inúmeras práticas sociais – dentre elas, as linguísticas – que subalternizam determinadas formas de vida” (SILVA, 2019, p. 22-23); suas vítimas
(…) gozam de uma invisibilidade social extrema, (…). Tal invisibilidade lança ao esquecimento nomes, rostos, corpos e histórias de vida e de morte dessas pessoas. Um exemplo dessa realidade foi o transfeminicídio da travesti Madona, assassinada com golpes no paralelepípedo, na madrugada do dia 19 de outubro de 2012, no centro de Aracaju, Sergipe, Brasil, caso que segue sem esclarecimento ou resolução (SILVA, 2019, p. 23).
Não bastasse, além de não alterarem a realidade social como um todo, as decisões judiciais são suscetíveis a oscilações políticas, porque condicionadas a contingências externas conforme alterem as decisões políticas de Estado, simbolizando aquilo que João Manuel de Oliveira designou como sendo uma mera “cidadania de consolação” (BAGGENSTOSS, 2022, p. 36).
A vulnerabilidade desses grupos é potencializada por outros elementos que interagem entre si e se sobrepõem, tais como a raça, a classe econômica, a orientação religiosa, etc.; a discriminação interseccional é complexa e muito difícil de ser dimensionada e enfrentada, tão mais em contextos onde as forças econômicas, culturais e sociais definem, de forma subreptícia, o pano de fundo da análise, colocando as pessoas vulneráveis em vários outros sistemas de subordinação. Assim, “para aprender a discriminação como um problema interseccional, as dimensões raciais ou de gênero, que são parte da estruturam, teriam de ser colocadas em primeiro plano” (CRENSHAW, 2002, P. 176).
A associação de sistemas múltiplos de subordinação tem sido descrita de vários modos: discriminação composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou trilha discriminação. A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras (CRENSHAW, 2002, P. 177).
Vitor Nunes Lages, num estudo específico sobre as narrativas judiciais relativas à homofobia e transfobia no Brasil, aponta a classe social como um fator relevante para ampliar a vulnerabilidade das vítimas de homofobia e transfobia, verificando-se “nas narrativas que a vulnerabilidade das pessoas LGBT pode estar associada, de forma sobreposta, às violências relativas à identificação racial, à classe econômica e às deficiências” (LAGES, 2022, p. 56).
Tamanha é a hostilidade com esses grupos, que mesmo quem não se identifique como pessoa transexual, travesti ou gay, acaba por se submeter a violências a eles direcionadas, e mesmo quando há a judicialização de situações de violência – quando então as vítimas decidem que seus direitos devem ser protegidos pontualmente por meio da demandas judiciais – tais circunstâncias, demonstram que a narrativa assume “as dimensões contundentes do poder conformador da cisheteronormatividade no cotidiano” ( LAGES, 2022, p. 50).
Nas redes sociais, por sua vez, o uso intencional da fala violenta também fomenta essa cultura heteronormativa; na expressão cunhada por Danilo Pereira Silva, trata-se de um continuum de violências, do qual a fala/escrita é concausa e resultado, retroalimentando e atualizando os contextos sociais que ritualizam a violência de gênero, e que, direcionadas a um ou a outro sujeito, tendem a nomear todo um grupo social da qual o sujeito é pertencente; assim, este processo de adjetivação compõe a própria nomeação, produzindo “uma identidade social no dicurso para as pessoas trans que se realiza mediante a atualização de contextos de violência” (SILVA, 2019, p. 154, p. 153), e o uso de expressões pejorativas para alcunhar pessoas trans pode representar o
Modo de funcionamento de uma sociedade cisheteronormativa que relega às pessoas dissidentes de gênero uma zona inferior ao nível de uma cidade, ao nível de uma vida em seus termos civis, localização essa, numa cartografia urbana, desprovida de reconhecimento social, e por vezes jurídico, desvalidada de direitos básicos, (…) (SILVA, 2019, p. 154).
Essa fala transfóbica ecoa na realidade de forma concreta, reverberando nas estatísticas já mencionadas, colocando o Brasil no primeiro lugar como país que mais viola a integridade física das pessoas trans.
Percebe-se, então, que a criminalização de condutas homofóbicas e transfóbicas não só não supre a necessidade de adotar medidas sociais e políticas globais de prevenção a condutas criminosas com motivação de gênero, como também tem como efeito secundário desonerar o Estado do dever de adotar outras medidas, possivelmente mais eficazes, de conscientização social sobre a importância do respeito às distintas identidades de gênero.
Para arrefecer a violência transfóbica que compõe o contexto social, seria fundamental produzir visibilidade e permitir o protagonismo de sujeitos aptos a ” ‘denunciar violências que as populações travestis, transexuais, transgêneras e não binárias estão submetidas por não se adequarem à normalidade suposta, esperada e compulsória'” ( LAGES, 2022, p. 33).
Como exemplo, em 2014 apenas 21 pessoas autodeclaradas LGBT candidataram-se a deputadas estaduais por todo o país, sendo somente 12 para deputadas federais, nenhuma senadora, governadora, ou presidente da república ( LAGES, 2022, p. 76) .
O que se pode concluir levando em conta tais números é que, embora um crescimento de representantes LGBTQAPn+, e mais especificamente, de mulheres trans, a equidade ainda está muito distante, e essa população segue sendo marginalizada e esquecida.
Então, a busca por metodologias alternativas para identificar integrantes desses grupos e produzir informações sobre os padrões de discriminação social seria relevante, visando incentivar o debate público, sensibilizar a sociedade e aumentar a participação dos governos e agências de fomento à pesquisa.
A proteção de direitos humanos no sistema de justiça para pessoas LGBTQAPn+ deve abranger várias ferramentas que visem garantir sua dignidade, igualdade e proteção contra a discriminação. Faz-se necessário, portanto, a realização de pesquisas que considerem o impacto das políticas públicas, não só no campo da saúde, mas também no campo jurídico, dentro das instituições de defesa dos hipossuficientes, como a Defensoria Pública, o Ministério Público e os Tribunais de Justiça; da mesma forma, os agentes atuantes no sistema de justiça devem ser capacitados, através de um treinamento adequado que assegure sua qualificação para compreender as questões que afetam especificamente as pessoas LGBTQAPn+, garantindo um tratamento justo e igualitário; sugere-se, ainda, a implementação e difusão de ferramentas de acesso direto a denúncias de abusos e discriminações, tanto no ambiente público, quanto no privado, e, claro, a capacitação do corpo policial, para assegurar a aplicação de leis como a Lei Maria da Penha e outras normas que possam proteger essas pessoas de violências física, psicológica e moral.
Quanto ao sistema penitenciário, um dos elementos mais infestos dentro do sistema de justiça, no que concerne à garantia de direitos humanos, os órgão de justiça devem se comprometer a alocar as pessoas transsexuais segundo a sua identidade de gênero, garantindo sua segurança através de medidas que visem prevenir a violência sexual e a discriminação de gênero institucionais.
Por fim, considera-se necessária a aplicação de ações afirmativas com o objetivo de incluir pessoas LGBTQAPn+ em ambientes do trabalho e dentro do próprio sistema de justiça, combatendo, assim, a marginalização social e econômica que são enfrentadas por tais grupos.
É fundamental dar voz à pluralidade de sujeitos, com vistas não só a fazer com que o sistema de justiça represente, de fato, a sociedade, como também para enriquecer o sistema com outras perspectivas de gênero, raça, e cultural.
Tais medidas são as mínimas consideradas para a promoção da equidade e têm por fundamento combater a histórica marginalização enfrentada por pessoas transsexuais e, de forma mais abrangente, por pessoas LGBTQAPn+. O avanço legal de tais direitos vai depender da constante mobilização social e de interpretações progressistas de todos os atores que compõem o sistema de justiça.
O sistema de justiça pode ser um elemento à concretização da perspectiva emancipatória das pessoas LGBTQAPn+, ao desempenhar um papel essencial à promoção da igualdade material. Os atores que integram este sistema têm a importante função de interpretar e aplicar leis que reconheçam direitos fundamentais, como, a exemplo, o casamento igualitário, a adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos, a proteção contra crimes de ódio, entre tantos outros.
Sabe-se, no entanto, que a emancipação depende também de outros fatores que não se restringem à interpretação e criação de normas legais, exigindo uma mudança estrutural, cultural e social que afaste os preconceitos e promova a diversidade.
Assim, para que o sistema de justiça seja uma ferramenta efetiva, é fundamental um esforço contínuo para assegurar que as decisões judiciais sejam inclusivas e progressistas, mas é necessário, concomitantemente, a promoção de uma educação inclusiva, e a conscientização social sobre direitos humanos e a equidade. O objetivo desses mecanismos seria não apenas garantir a igualdade formal, mas uma real emancipação vivenciada na prática, com dignidade, segurança e liberdade para toda a comunidade LGBTQAPn+.
O uso do direito como uma ferramenta emancipatória depende, então, da capacidade de transformar normas jurídicas em proteção real contra discriminação, violência e exclusão social. O Direito emancipatório é um Direito inclusivo, e não há Estado de Direito que sobreviva a uma democracia meramente formal.
Dymaima Kyzzy Nunes é formada em Direito, pós-graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil, analista judiciária no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, membro do Coletivo Valentes, do Sindicato dos Trabalhadores de Santa Catarina – SINJUSC, e do grupo de estudos sobre “Protocolo para julgamento com perspectiva de Gênero e o direito das Famílias”, objeto do Edital no 01/2024, do Instituto Brasileiro de Direito de Família de Santa Catarina – IBDFAM/SC.
Referências
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