Só deixo o meu Cariri no último pau-de-arara
Um exilado nunca mais volta à sua terra natal, porque não são mais os mesmos, nem o exilado, nem a sua terra natal. No meu caso, literalmente, ainda que quisesse, nunca poderia voltar, sou um exilado para a eternidade, porque a minha terra natal foi extinta, não existe mais
Quando estive em Shang Hai em 1987, os chineses perguntaram ‘你從哪裡來吗’, de onde você é? Respondi que era do Brasil. Aí eles disseram que eu não tinha cara de brasileiro. Expliquei que meus pais eram poloneses; e eles perguntaram se eu havia nascido no Brasil ou na Polônia, ao que respondi que nascera na Palestina. Já meio confusos, os chineses perguntaram onde afinal de contas eu morava, no Brasil, na Polônia ou na Palestina; e eu, já meio sem graça, respondi que estava morando nos Estados Unidos.

Crédito: Roque de Sá/Agência Senado
Yiddishland
Talvez você nunca tenha ouvido falar na Yiddishland, só na Deutschland, Disneyland, England, Finland, Greekland, Greenland, Iceland, Ireland, Nederland, Russland, Scotland e Switzerland. Mas não se preocupe, a Yiddishland não existe mais, foi extinta na Segunda Guerra Mundial.
A Yiddishland era o milenar lar dos judeus ashkenazim no Leste Europeu, que já no século XVI constituíam a maior comunidade e o centro da cultura judaica no mundo. Esse povo sem estado e sem generais, que falava yiddish, armado de canetas, desenvolveu uma cultura humanista, internacionalista e pacifista, que pode ser conferida em sua vasta e profícua literatura, tanto religiosa quanto laica. Decerto havia judeus não alinhados com a cultura humanista dominante, mas esses eram marginais.
A maior parte dos judeus que habitava a Yiddishland foi exterminada no Holocausto e os sobreviventes foram enxotados, exilados de sua terra natal. Nove a cada dez dos meus parentes foram exterminados, caminharam para o abate tal qual ovelhas para o matadouro. Os nazistas consideravam que os judeus eram vermes, subumanos, passivos, fracos, não tinham honra, não lutavam, não se defendiam, aceitavam ser agredidos sem esboçar a menor resistência, em suma, eram uns covardes. Sartre, no entanto, escreveu que a brandura dos judeus frente às injustiças e à violência era a verdadeira marca de sua grandeza. Mesmo assim, os nazistas conseguiram produzir judeus partisans, terroristas que participaram ativamente da resistência, inclusive do suicida Levante do Gueto de Varsóvia.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a maior parte dos judeus era contra os partisans, achavam que a resistência estimularia a escalada da violência, e os alemães nazistas de fato investiam contra a comunidade em represália às ações praticadas pelos terroristas, o que era chamado de responsabilidade coletiva. Os movimentos de resistência nos Guetos, em geral, irromperam somente durante as últimas deportações… Na liquidação do Gueto de Vilna, em setembro de 1943, a Organização Partisan Unida (FPO), da qual faziam parte os poetas Avrom Sutzkever e Shmerke Kaczerginski, que sobreviveram ao Holocausto, julgou apropriado abandonar o Gueto para se juntar aos partisans da floresta, porque considerou que, no caso de um confronto armado com os alemães nazistas, a população judia do Gueto iria lutar contra a FPO.
Meu pai sobreviveu aos campos de concentração nazistas e minha mãe foi deportada para a Sibéria. Munidos por uma força descomunal, não reagiram e se submeteram aos desmandos, à violência, à humilhação e, apesar do aviltamento sofrido, ainda se transformaram em verdadeiros militantes da vida. Eu nasci no exílio, na Palestina, depois fomos para a Alemanha, onde fomos presos como imigrantes ilegais e, finalmente, o destino nos ancorou no Porto de Santos, sem nunca termos ouvido falar que existisse um país com o nome de Brasil. Um exilado nunca mais volta à sua terra natal, porque não são mais os mesmos, nem o exilado, nem a sua terra natal. No meu caso, literalmente, ainda que quisesse, nunca poderia voltar, sou um exilado para a eternidade, porque a Yiddishland foi extinta, não existe mais.
Terra brasilis
Ficamos deslumbrados com o Brasil. Para quem vem do Velho Mundo, a alegria dos brasileiros é contagiante. Todo mundo é bom, comunicativo e afável. O povo nos recebeu de braços abertos, apesar das restrições impostas pela Circular Secreta 1127 de 1937 à entrada de judeus no país, que vigorou praticamente até 1953. Em consonância com a ideologia racial, que dominou o mundo inteiro na primeira metade do século XX, as elites brasileiras, em sua política de imigração, tinham como princípio o branqueamento do país, de modo a “melhorar a raça”, sem manifestar pudor algum em relação à população de origem africana, que havia imigrado compulsoriamente do século XVI até meados do século XIX. De acordo com a ideologia racial, branco era sinônimo de ariano e, portanto, os judeus, por mais pálidos que fossem, nunca poderiam ser considerados brancos, além de que, todo mundo sabia, os judeus eram um bando de socialistas.
Sim, fui preso político durante a Ditadura e, embora absolvido pela Justiça Militar, meu pedido de naturalização foi indeferido. Permaneci apátrida por bons anos, mesmo depois da anistia de 1979, porque a naturalização é uma concessão do governo, e não um direito do estrangeiro.
A Ditadura Militar perseguiu, prendeu e exterminou todos aqueles que se opuseram a seus desmandos. ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’, ame os militares que tomaram o poder constituído em um golpe de estado ou desocupe o país. Uma geração de crianças brasileiras foi banida de sua terra natal. A Carta Editora reuniu as memórias de 46 crianças brasileiras no exílio.
Desterrado da Yiddishland e nascido no exílio, me identifico com todos os expatriados, extraterrestres, cidadãos do mundo. Sempre senti forte empatia com os povos originários dessa terra que acolheu a minha família e com a população de origem africana que até hoje permanece segregada. Em minha militância pelas quotas raciais nas universidades, dizia que meu pai fora escravo e, só depois do olhar incrédulo dos companheiros, é que acrescentava que fora escravo do Terceiro Reich.
Com a internacionalização do capital produtivo que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, os juruás, os invasores, que até então haviam ocupado apenas o litoral do país, resolveram transferir a sua capital à beira-mar para o Planalto Central, de modo a tomar posse do Centro-Oeste e da Bacia Amazônica. O genocídio dos povos nativos, iniciado no século XVI, ganhou então novo ímpeto com a ocupação de terras até então não cobiçadas. O que para os juruás era ocupar um espaço vazio com um museu futurista a céu aberto, para os indígenas foi o grande assalto às suas terras na segunda metade do século XX, que abriu caminho para a Transamazônica da Ditadura Militar e para o pesadelo que atualmente sangra vivo em meio à cobiça que ameaça a Amazônia.
Palestina
O povo palestino foi desalojado de suas casas, aldeias e cidades, expulso de suas terras, para dar lugar aos sobreviventes judeus do Holocausto, afiançados pelos países membros das Nações Unidas, que se recusaram a absorvê-los e acharam por bem alojá-los nas terras do Levante, apesar do protesto da população nativa que vivia há séculos entre o Jordão e o Mediterrâneo.
Jaffa, a minha cidade natal, até de acordo com o despótico Plano de Partição da Palestina, havia sido designada como um enclave árabe em meio ao Estado Judeu. Mas, para evitar a formação do enclave, mesmo antes da criação de Israel em 14 de maio de 1948, as organizações terroristas Irgum e Haganah se apressaram em jogar 45 mil árabes de Jaffa no mar, que ancoraram no Líbano.
O cineasta palestino Mahdi Fleifel, que dirigiu o premiado documentário Um mundo que não é nosso, retrata a miséria a que a população nativa da Palestina foi reduzida pela violência dos sionistas. Fleifel acompanhou o refugiado Abu Eyad desde os seus 10 anos de idade, no campo Ain el-Helweh, no Líbano. Em 2012, produziu o curta-metragem Xenos, com imagem de Abu na Grécia. Em 2020, Fleifel produziu 3 saídas lógicas, em que Abu Eyad diz que os desterrados palestinos podem escolher se envolver no mundo das drogas, juntar-se às milícias armadas ou buscar o exílio.
Qual a relação entre a cultura dominante dos judeus da Yiddishland e a cultura racista, xenofóbica e militarista do Estado de Israel, que ocupou e continua expulsando os palestinos de sua terra natal, e conta com o apoio da maior parte dos judeus da diáspora? Mesmo os militantes do movimento Shalom Arshav (Paz Agora), que denunciam os assentamentos, choram as vítimas enquanto seguem matando os palestinos. Itamar Mann e Lihi Yona estão empenhados em resguardar o judaísmo humanista das garras do sionismo.
Minha língua materna é o agonizante yiddish, mas, como disse Isaac Bashevis Singer ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, “uma mãe nunca está realmente morta”. Fiel à minha herança cultural, já abandonei categoricamente o judaísmo, apesar de meus amigos, tanto judeus como não judeus, me advertirem que, maldito, não serei poupado pelos antissemitas, nem aceito entre os palestinos – mas esse não é meu problema, esse problema é o deles.
Só é meu o país que se encontra em minha alma, em que entro sem passaporte, dizia Marc Chagall.
Do Cariri nos perdemos pelo mundo, com a esperança à frente, carregando nossos mortos, para que ninguém fique para trás.
Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Yiddish.