Sob o signo do “direito de sangue”
Quase um em cada dez habitantes da Alemanha é estrangeiro. Indispensáveis na economia, eles são, porém, privados de direitos sociais e desestimulados de desenvolver sua identidade culturalAlbrecht Kieser
Alguns dias depois das eleições legislativas de 18 de setembro de 2005, que viram a derrota da “coalizão vermelha e verde”, o ex-ministro do Interior Otto Schilly ainda celebrava as virtudes da lei sobre a imigração que passara a vigorar em 1º de janeiro de 2005, descrevendo-a como “um salto qualitativo na promoção da integração”. Segundo ele, por meio desta lei o governo federal havia introduzido uma “mudança de paradigma”.
Mas o que vem a ser essa mudança? A Alemanha acolheu milhões de pessoas: algumas delas já vivem no país há trinta anos, mas até hoje não se tornaram seus cidadãos. Será que elas conseguirão obter esta nacionalidade em virtude do novo “paradigma”? Terá sido a elas que se dirigia a campanha de 30 milhões de euros, que, no final de 2005 invadiu as programações da televisão alemã, martelando o bordão: “A Alemanha, é você!”?
Na realidade, esta propaganda não teve como alvo os 4,4 milhões de “estrangeiros” que moram na Alemanha há mais de dez anos. Nem mesmo os 2,4 milhões que nela trabalham há mais de vinte anos. A lei só fala em reunir “forças alemãs para a Alemanha”, em “estrelas alemãs”, em “pesquisadores alemães”, em “mulheres alemãs” e em “homens alemães” . Enquanto isso, os estrangeiros devem se submeter a “cursos de língua e de integração [1]” que a lei sobre a imigração tornou obrigatórios.
A “mudança de paradigma” na política migratória da Alemanha se inscreve dentro de uma longa tradição de fracassos e de meias-medidas. Fracasso de Heins Kühn, primeiro comissário designado pelo governo federal para tratar da questão dos estrangeiros: ele viu todas as suas propostas liberalizantes, apresentadas no início dos anos 80, acabarem na cesta de lixo. Fracasso para a segunda comissária, Liselotte Funke, que escreveu em 1991, na sua carta de demissão: “A falta de apoio por parte do governo e dos partidos políticos torna o trabalho particularmente difícil”. Em 2001, a “comissão Süssmuth” propôs um projeto ainda mais liberalizante, que exigia até mesmo proteção jurídica para os que estão em situação irregular (ver o texto “Uma lei tímida demais”). Em vão, mais uma vez. Essas exigêcias progressistas não constam da atual legislação.
O Conselho para a Imigração e a Integração, que foi implantado na primavera de 2003, pelo ministro Otto Schilly, tampouco obteve sucesso. Consideradas como excessivamente abertas, as suas propostas conduziram, em 19 meses à sua dissolução. Aliás, apesar das advertências das instituições européias, a Alemanha não se dotou das legislações previstas ? nem contra as discriminações, nem em prol de uma melhor proteção dos estrangeiros.
Aprovada em votação no ano de 2000, por iniciativa da “coalizão vermelha e verde”, a lei sobre a nacionalidade representa um progresso significativo. Pela primeira vez, crianças nascidas na Alemanha de pais estrangeiros podem obter a nacionalidade alemã. Segundo as mais recentes estatísticas disponíveis, no final de 2003, 150 mil recém-nascidos foram beneficiados com esta nova disposição. Entretanto, 180 mil pedidos foram arbitrariamente indeferidos. Os pais eram considerados pessoas que não preenchiam as condições requeridas para uma permanência de longa duração. Este foi o caso dos filhos de refugiados, mesmo que os seus pais estivessem estabelecidos há muito tempo na Alemanha. Ora, o fracasso ou a implementação tímida demais das tentativas de estabelecer maior igualdade entre migrantes e nacionais atingem milhões de pessoas, na Alemanha. Entre a queda do muro de Berlim e 1996, o ano recorde, o número de estrangeiros recenseados passou de 4,5 milhões para 7,3 milhões [2]. Permanece, desde então, neste nível (ver o texto “).
O mito da “comunidade nacional”
No total, mais de um habitante da Alemanha em cada três é um “migrante” de primeira ou de segunda geração. E ainda assim, a Alemanha recusa-se até hoje a se definir como um país de imigração. A nova legislação sobre os estrangeiros, que vigora desde janeiro de 2005, baseada no compromisso que havia sido firmado, em 2004, pelos partidos de governo [3] simboliza esta abordagem: ela intitula-se à lei sobre o controle e a restrição da imigração”.
Há muito, perdeu-se a conta dos sucessivos programas de estímulo ao retorno que foram oferecidos aos estrangeiros; durante os anos 70 e 80, aos imigrantes que estavam no país para trabalhar e, desde os anos 90, aos refugiados de guerras civis e aos solicitantes do direito de asilo que viram o seu pedido ser rejeitado. Esses programas objetivavam restringir o número de estrangeiros e manter a fantasia da “unidade nacional” da Alemanha. Nas “Notas de aplicação transitórias” que acompanham a lei de 2005, o ministro Otto Schilly incitava os serviços encarregados dos estrangeiros a tomar contra os imigrantes, caso fosse necessário, “disposições visando a incentivá-los a deixarem o território”. Em contrapartida, os esforços visando integrar imigrantes trabalhadores e refugiados, e até mesmo a outorgar-lhes a igualdade dos direitos com os cidadãos alemães, permaneceram marginais. O mesmo aconteceu com as medidas que foram tomadas, desde os anos 80, em favor da integração escolar ou profissional dos imigrantes da segunda geração – aqueles que, nascidos na Alemanha, amargam o peso esmagador de um modelo de sociedade que rejeita a coabitação de cidadãos de diferentes culturas [4].
Essa insistência obsessiva em salvaguardar o mito de uma “comunidade nacional” alemã não corresponde necessariamente a um pensamento econômico racional. Diante da carência cruel de mão-de-obra qualificada no campo das tecnologias da informação, o país não teve outra saída a não ser implantar, em 2000, uma “carteira verde” destinada a recrutar imigrantes altamente qualificados. Contudo, esta medida veio tarde demais. Da mesma forma, as advertências dos economistas e dos demógrafos a respeito das conseqüências assustadoras do envelhecimento dos alemães na ausência de uma imigração maciça suscitaram apenas reações passageiras e tímidas. Na sua maioria, a classe política não quis levá-las em conta.
Na realidade, as classes dominantes sempre estiveram divididas entre o seu interesse econômico ? estreitamente associado, na Alemanha, com as correntes culturais abertas para o mundo ? e o recuo rumo a uma política de ordem com tendências marcadas para a xenofobia. Martelada como um slogan desde os anos 80, a idéia de uma necessária integração, entendida como sendo uma assimilação ao “pensamento alemão”, acaba se materializando na lei sob a forma de exigências unilaterais, agravadas com possíveis processos judiciários. A lei ameaça de expulsão os estrangeiros que não obtiverem os resultados esperados nos cursos obrigatórios de língua e de civilização; os que não comparecerem as esses cursos podem se ver privados de auxílios sociais. O tribunal administrativo federal recusou até mesmo a naturalização de um estrangeiro que vive no país há vinte anos e fala bem alemão, alegando? que ele é analfabeto.
Visão utilitarista do estrangeiro
Se, desde os anos 50, a Alemanha nunca debateu de verdade a questão da imigração, é porque ela não considera os oito milhões de “expulsos” da Polônia e da Checoslováquia que chegaram à ex-RFA (Alemanha Ocidental) como migrantes. Eles continuam sendo vistos como alemães que foram forçados injustamente a abandonar sua residência no exterior. Reticente a admitir plenamente sua responsabilidade na guerra que perdeu em 1945, a sociedade alemã teve dificuldades para assumir essas expulsões em sua dimensão não só econômica como também cultural e social [5]. Resumindo, a maioria dos alemãos agarrava-se à idéia de uma nação e de um destino comuns.
Durante os anos 60, o relatório utilitarista e exclusivamente econômico das elites sobre os Gastarbeiter (“trabalhadores convidados”) ocultou a transformação definitiva da Alemanha numa terra de imigração. A sociedade era totalmente incapaz de considerar os migrantes como pessoas desejosas de viver neste país, isso porque ela não havia refletido a respeito do precedente dos Fremdarbeiter, aqueles sete milhões de “trabalhadores estrangeiros” que haviam sido explorados pelo 3º Reich.
A lei sobre os estrangeiros de 1990 ainda refletia a idéia segundo a qual é preciso se premunir contra os estrangeiros e recusar a igualdade dos direitos. Mas, ainda assim ela incluía um avanço: permitiu que alguns migrantes privilegiados que moravam há muito tempo na Alemanha pudessem perenizar sua autorização de permanência, e até mesmo obter sua naturalização.
Mas a ideologia da “comunidade nacional” ? própria, como nós já vimos, da Alemanha, e que impede uma percepção realista do fenômeno da imigração ? perdura até mesmo nos relatórios oficiais do Estado a respeito dos refugiados e dos solicitantes do direito de asilo, que chegaram em grande número durante os anos 80, e maior ainda na década seguinte [6]. Esta terceira “onda” de imigração nem sequer a abalou. Mais do que nunca, proibições de trabalhar, intimações a permanecer em centros de atendimento, e restrições à liberdade de circular, se opõem à integração dos refugiados, os quais ainda se vêem excluídos do sistema de saúde e dos benefícios sociais de base. Vale mencionar também a propaganda racista, que foi criando progressivamente, dentro do governo, um ambiente propício a estigmatizar os solicitantes de asilo, transformando-os em gente aborrecida, que abusa do direito e do sistema social. Esta campanha de difamação dos estrangeiros” explica também a persistêcia, num nível felizmente menos elevado do que aquele que foi verificado logo depois da unificação, das agressões racistas: 50 mortos entre 1990 e 1993 (principalmente na ex-RDA, Alemanha Oriental); e, desde então, 81 [7].
Nos últimos quinze anos, em duas ocasiões, a Democracia-Cristã (CDU/CSU) opôs-se ao reconhecimento da Alemanha como país de imigração, travando, em nome da “identidade nacional”, uma batalha ideológica contra a dupla nacionalidade (1998), e em prol da “dominação da cultura alemã” (2002). Com isso, essas forças lograram, mais uma vez, excluir do debate social os migrantes ? em particular os mais novos, cuja consciência de si está em processo de afirmação ? e manter fora das discussões a maior parte das reivindicações de igualdade social, política e cultural.
Apesar dos obstáculos, integração e lutas
E mesmo assim, apesar da sua rejeição no cotidiano, e a despeito tanto da exclusão praticada pelo governo quanto da hostilidade de uma grande parte da classe política e dos meios de comunicação, os migrantes estabeleceram-se de longa data na Alemanha, e assumiram o controle da sua vida. A segunda geração está até mesmo começando a engatinhar nos estudos superiores, formando-se em profissões que lhes eram até então proibidas, inclusive na política e na mídia. Os casamentos mistos (inter-raciais) passaram a representar cerca de 20% das uniões. E, longe da uniformização tão prezada pela mídia, os “estrangeiros” vêm exibindo sua personalidade, principalmente nos campos da arte e da cultura [8].
Mas a integração realiza-se também por meio das lutas. Desde a segunda metade dos anos 60, a simples presença dos imigrantes do trabalho, e a sua resistência alternadamente tranqüila ou barulhenta fizeram explodir o quadro que havia sido imposto. Os imigrantes abandonaram os barracões e os campos de onde eram intimados a não sair, e se rebelaram abertamente contra a mera dimensão de “força de trabalho” à qual as autoridades queriam reduzi-los. Os movimentos de protesto nos centros de atendimento, os conflitos sociais contra os baixos salários e a exploração desavergonhada nas fábricas contrariam os cálculos que pretendiam levá-los a desempenhar o papel de amortecedores de crise. A sua participação foi decisiva nas greves “selvagens” de 1968-1969, que mostraram ao patronato ? e aos sindicatos, que não raro perderam o controle sobre os eventos ? seu potencial de luta e a ilusão que representaria a esperança de dominá-los manejando a cenoura e o bastão.
A histórica greve da Ford
Esses conflitos, que tiveram seu ápice na célebre greve dos operários da Ford em Colônia em 1973, transformaram por completo o modelo alemão.. O ministro do Interior da Renânia do Norte-Vestfália, Willi Weyer (SPD), declarou então que as empresas em greve seriam “parcialmente vigiadas pela polícia judiciária e por funcionários da Direção da Segurança do Território”. O governo federal, que vem mantendo reuniões de crise com os dirigentes dos sindicatos e do patronato, estimou, ele também, que era preciso agir. Numa alocução televisiva, em 28 de agosto, o chanceler Willy Brandt apelou aos grevistas para retornarem à esfera de influência dos sindicatos, porque, “quem mais, além deles, ao preço de lutas que duraram dezenas de anos, logrou conquistar os direitos dos assalariados e os estendeu?” Mas os grevistas permanecem surdos a tais discursos.
Após menos de uma semana, a direção da Ford pôs fim brutalmente à greve. Contando com a proteção de uma “contra-manifestação” de pretensos anti-grevistas trajando blusas de contramestres, as forças de polícia penetram na fábrica e começam prendendo os “líderes”. Entre eles estava Baha Targün, eleito pelos turcos à frente do comitê de greve. Ele foi expulso do país e o seu rastro será perdeu em algum lugar da Turquia. Na parte da tarde, os anti-grevistas da manhã, promovidos a membros da “patrulha de defesa dos operários”, circulavam para dispersar as reuniões. Mais de 1.000 operários turcos foram demitidos sem aviso prévio, uma medida que 600 dentre eles aceitarão transformar em “partida voluntária”. Muitos, de tanta raiva e frustração, seja por medo ou porque não mais conseguiam suportar a humilhação, não voltaram a comparecer ao seu posto. Ninguém nunca ouviu dizer que o comitê de empresa tivesse apresentado em momento algum qualquer objeção a essas demissões [9].
Apesar de tudo, os imigrantes conseguiram suscitar certa solidariedade, que conduziu uma parte da população a defender sua dignidade. A realidade das suas condições de vida, a reivindicação da igualdade dos direitos e a sua obstinação, finalmente impuseram mudanças legislativas que abalaram a ideologia da “comunidade nacional”: o golpe desferido contra o direito do sangue pela lei de 2000 sobre a nacionalidade ? com o direito à naturalização, sob certas condições, dos filhos de migrantes nascidos na Alemanha ? é um exemplo mais do que evidente dessa reviravolta.
Se comparados com a contribuição dos imigrantes para a economia alemã, assim como com a sua capacidade de construir sua vida ? ou sua sobrevivência ? na Alemanha, os problemas provocados pela sua chegada como trabalhadores ou como refugiados parecem secundários.
Esses problemas caracterizam-se por dificuldades lingüísticas, discriminações específicas das mulheres que são próprias de certos países de origem e são transplantadas na Alemanha, pela concorrência, e até mesmo por conflitos “de coloração étnica” que opõem certos grupos entre eles (por exemplo, “turcos” e “russos”), e ainda pela hierarquização entre diferentes grupos, particularmente entre imigrantes vindos para trabalhar e refugiados. Todas estas questões podem ser tratadas de maneira adequada.
Será que os a