Sobre canudinhos e vacas
A situação do meio ambiente no Brasil e no mundo precisa de atitudes mais elaboradas do que somente substituir o canudo de plástico pelo canudo de inox ou bambu. Quem realmente se preocupa com o meio ambiente precisa mudar hábitos e abandonar o ativismo de sofá.
O ativismo ambiental de sofá é uma estratégia de manifestação de apoio a causas ambientais, através do compartilhamento e “curtição” das notícias nas redes sociais. Tais redes podem ser uma poderosa estratégia de conscientização ambiental e algumas notícias que vêm circulando nelas chamaram a nossa atenção.
O whatsapp entregou um alerta endereçado para mulheres que pintam o cabelo. Teoricamente – como bons internautas, não fomos checar a fonte – é uma indicação de uma médica do Hospital do Câncer que desenvolve um trabalho de prevenção da doença. A oncologista deu uma dica essencial para quem pinta os cabelos: “tomar bastante água antes da tintura e, durante todo o tempo de ação do produto, manter a bexiga cheia. Só esvaziar após lavar os cabelos. O motivo: para que as partículas de chumbo que as tinturas contêm não fiquem depositadas na bexiga que é para onde elas são direcionadas. Com a bexiga cheia, você pode eliminar depois”. E a mensagem ainda enfatiza: “não é corrente, ouvi da boca da oncologista. Vamos prevenir meninas!”.
Outra informação bastante comum e recorrente nas redes sociais vem de especialistas, agora em agrotóxicos, que procuram orientar como retirar o excesso de agrotóxico dos vegetais. “Lave bem” – é a dica – “com bastante água corrente ou deixe de molho com bicabornato ou cloro”. Parece que faz algum sentido tentar tirar parte do veneno dos nossos alimentos, especialmente em tempos de liberação de uso de mais de um agrotóxico por dia no país – 239 desde o início de 2019.
Por conta dessa liberação de venenos sem critérios que faz o nosso presidente se assemelhar ao que o artista Yiftah Peled chama de um “serial killer ambiental”, uma rede de supermercados orgânicos localizada na Suécia comoveu, recentemente, os econautas que festejaram o boicote de produtos alimentares brasileiros por parte dos varejistas suecos em represália a irresponsável e corruptível relação do atual governo com as empresas multinacionais de veneno agrícola.
E a quarta (longe de ser a última) notícia que tem fomentado muitas curtidas dos sofativistas ambientais é a tentativa de proibição de canudos de plásticos que contaminam os oceanos e o meio ambiente, demorando mais de 100 anos para se decompor. Para o deleite do comércio de canudos de bambu, de metais e de papel, já existem estados que proibiram o uso dos famigerados canudinhos de plástico.
Esses alertas, com maior ou menor grau de veracidade e resolutividade frente aos problemas ambientais permitem uma boa discussão – a que realmente interessa aqui. Sobre a relevância.
Em seu Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley confessou que seu maior temor não era o encobrir da verdade – até porque a verdade, relacionada a práticas cotidianas sustentáveis e saudáveis se alargou de um jeito na nossa sociedade reflexiva que não é mais possível acreditar em unicidade e muito menos, validar as verdades somente pela ciência.
Apesar, da ciência ser ainda uma potente e respeitável ferramenta de construção de conhecimento e objetividade, essa musa iluminista não consegue hoje mais comprovar uma verdade que se constrói a partir de parâmetros bem mais diversificados do que as modernas e irrefutáveis evidência e autoridade científicas.
Primeiro porque essa autoridade – junto com a verdade – é contestada hoje por diversos parâmetros como o prestígio da instituição científica e seu fôlego econômico; a origem dos financiamentos e quem patrocinam as pesquisas; os vínculos dos periódicos e o prestígio dos patrocinadores e dos congressos científicos que proliferam as verdades; as incômodas verdades produzidas por não especialistas; a variedade de especialistas que se debruçam sobre as verdades sob diferentes pontos de vistas e nacionalidades. E, para complicar mais, outros atores entraram no palco contemporâneo que valida verdades ambientais.
A mídia, por exemplo. A sua hegemonia e o seu interesse econômico sempre a frente da divulgação de certas verdades em detrimento de outras também complexifica a reivindicação científica. A capacidade de dramatização das verdades em termos simbólicos e visuais e os aspectos religiosos, morais e éticos – alguns altamente subjetivos – também interferem na construção de uma verdade ambiental.
Mas, voltando ao distópico Admirável Mundo Novo, o que seu autor mais temia não era a verdade encoberta, mas o afogamento dessa virtude num mar de irrelevância. E essa profecia Huxleyiana cai, inexoravelmente, sobre nós hoje. Parte da sociedade até enxerga certas verdades ambientais e busca intervir para minimizar os riscos, mas ignora a verdadeira relevância e o real poder de resolutividade dos seus atos. Olhamos para a ponta do iceberg e desqualificamos sua dimensão e profundidade. Somos sempre levados a pensar e agir superficialmente. Voltemos aos fatos.
Não é relevante conhecer a melhor técnica para retirar agrotóxico da comida porque não existe técnica segura para limpar veneno. Nem para eliminar metais pesados. Só não utilizando, porque essas substâncias vão inevitavelmente parar em alguma água que vai para o ralo, para o esgoto, para o rio, mar e oceano. Para algum lugar, perto ou distante. Porque o fora não existe em termos de contaminação ambiental.
Por pensar nesse alcance dos venenos que podem migrar até suas fronteiras vikings – e também por se preocupar com seus próprios riscos a saúde – é que o presidente da rede sueca fez o boicote. É uma potente atitude política, sem dúvida, mesmo que não mobilize nosso inabalável governo ou a bancada ruralista que influencia na flexibilização das leis de controle dos agrotóxicos no país. Mas, certamente, o supermercado sueco manteve em suas prateleiras os produtos alimentares suíços e alemães, sem punir os países que abrigam a Syngenta e a Basf, que vão continuar lucrando ao enviar para cá os venenos proibidos pela União Europeia. A rede sueca esqueceu de relevar o fato de que são os acionistas e consumidores europeus aqueles com maior poder para boicotar suas próprias agroindústrias e exigir delas uma atitude ética ambiental impactante e muito pouco praticada pelo capitalismo colonizador.
Não é relevante fazer a revolução dos canudinhos e manter nossos hábitos de consumo de milhares de produtos a base de estrógenos ambientais implícitos nos produtos de plástico baratos (e caros para o meio ambiente) e duplamente escravizantes. Porque nos escravizam como usuários e também a milhões de trabalhadores do hemisfério sul que os produzem por centavos cada hora trabalhada. Não é relevante (apesar de ser uma boa prática, pois não precisamos deles mesmo) só substituir canudinho de plástico e continuar a sorver com canudos de papelão refrigerantes e outras bebidas que acompanham os pratos diários a base de carne.
O sistema-carne é um dos setores que mais causam impactos ambientais no planeta. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura[1], a pecuária é tida como um dos contribuintes mais significantes para os problemas ambientais mais sérios, em todas as escalas do local ao global, além de ser apontada por alguns estudiosos como a maior fonte setorial de poluição das águas.
Sabemos também, que um quilograma de carne bovina necessita, em média, o gasto de 15.500 litros de água, enquanto um quilograma de cereais gasta cerca de 1.500 litros. Em todo o mundo, cerca de 75% das áreas agrícolas estão em função da produção de carne, seja com pastagens ou com cultivos vegetais destinados a alimentar animais. Apesar disso, a produção de alimentos de origem animal fornece apenas 17% das calorias e 33% das proteínas consumidas mundialmente[2].
Com relação às mudanças climáticas, existem estudos que atribuem de 14,5%[3] até 51%[4] das emissões globais de gases de efeito estufa ao setor pecuário. Aqui no Brasil, por exemplo, cerca de 80% das áreas desmatadas se tornaram pastagens[5]. Além disso, segundo um relatório de 2015[6], para cada 1 milhão de reais obtidos de receita com pecuária extensiva bovina no país são gerados 22 milhões de reais em impactos ambientais, valor que não é contabilizado no custo da carne. Para traçar um comparativo, no caso da soja nacional para cada 1 milhão em receita geram-se 3 milhões em impactos. Logo, na temática ambiental, a questão do consumo de carne é um verdadeiro “elefante na sala de estar”[7].
Certamente, mudanças de paradigmas e práticas cotidianas incorporadas ao longo do processo de modernização são difíceis de alcançar. Para efetuar mudanças estruturais, necessitamos de reflexões mais profundas, raras em tempos de oferta (e procura) de informações rápidas, rasas e prepotentes. Mas parece muito irônico que optemos por manter seguros saúde para garantir o tratamento do câncer ou do autismo das nossas crianças, do que eleger políticos preocupados com a qualidade dos nossos alimentos, abster-se da carne ou diminuir seu consumo na dieta ou comprar orgânicos – quem pode. Nos intoxicamos com metais pesados que vão sair para algum lugar do planeta, através da urina, sobrecarregando nossa função renal, mas não buscamos alternativas menos agressivas para nos embelezar, ou até, quem sabe, para mudar essa cultura de banalização do câncer e assumir os cabelos brancos, a idade e outra forma de encarar os problemas. Olhando pra sua raiz – não só a dos cabelos.
A água carregada de chumbo que detona nosso ureter; a torneira para mudar o veneno de lugar; o boicote de produtos brasileiros e o canudinho para matar nossa sede de consciência ecológica são as anestesias que permitem o desvio das ações ambientais realmente efetivas que implicam em perda de alguns privilégios, relevância de novas prioridades e um pouco de tempo e silêncio para pensar sobre elas.
Elaine de Azevedo é doutora em Sociologia Política, professora do Depto de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo com pesquisa em Sociologias da Alimentação, Saúde e Meio Ambiente.
Ravi Orsini é bacharel em Gestão Ambiental pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) e mestre em Ciência Ambiental pelo Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP).
1 FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS. Livestock’s long shadow: environmental issues and options. (Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2006). doi:10.1007/s10666-008-9149-3
2 ROJAS-DOWNING, M. M., Nejadhashemi, A. P., Harrigan, T. & Woznicki, S. A. Climate Risk Management Climate change and livestock : Impacts , adaptation and mitigation. Clim. Risk Manag. 16, 145–163 (2017).
3 FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS. Tackling Climate Change Through Livestock: A global assessment of emissions and mitigation opportunities. Roma: Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2013.
4 GOODLAND, R.; ANHANG, J. Livestock and climate change: what if the key actors in climate change are… cows, pigs, and chickens? World Watch Institute, p. 10–19, 2009.
5 FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS. El Estado de los bosques del mundo. Roma: Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2016.
6 CARREIRA, D.; RE’EM, A.; TARIN, M. Natural capital risk exposure of the financial sector in Brazil. Trucost, 2015.
7 Informações retiradas da dissertação de Mestrado “Vegetarianismo ambiental: estudo das controvérsias na relação entre vegetarianismo e emissões de gases de efeito estufa” de RAVI ORSINI CAMARGO DE SOUZA, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo.