Social-democracia alemã: mais uma vítima de seus abandonos
Até a pouco tempo, o maior partido de esquerda do Ocidente, o SPD deve a seus “capitalistas de esquerda”, desfilando em terno Brioni e charutos Cohiba na boca, o desmoronamento do apoio de seu eleitorado e o distanciamento de sua base socialMatthias Greffrath
Quando, em 1987, Willy Brandt abandonou a presidência do Partido Social Democrata (SPD), ele duvidava de que seu partido pudesse ainda ser, vinte anos mais tarde, um partido popular1. Dois anos antes do prazo, aí está: após a cisão verde dos anos 1980, um “partido de esquerda” nasceu este verão, ao qual as pesquisas prometiam em torno de 10% dos votos nas eleições legislativas de 18 de setembro.
Na realidade, o SPD não consegue mais unificar, em torno de um mesmo programa, seus três “clientes”: os assalariados fixos e socialmente garantidos do capitalismo da Renânia; os “pós-materialistas” consumidores, burgueses e liberais, culturalmente abertos; e os desempregados, os perdedores da modernização. Se bem que na Alemanha também se coloque, a partir de então, o problema da união da esquerda.
A crise da social-democracia como partido de massa começou em 1982, quando seu parceiro, o Partido Democrático Livre (FDP), exigiu cortes reais nos orçamentos sociais, para superar a lentidão do crescimento que se deu na República Federal Alemã (RFA) e em todos os países industrializados ao longo dos anos 1970. O memorando Lambsdorff2 (nome do liberal Ministro da Economia) pregava uma “adaptação” à dinâmica da globalização em marcha. Sua receita: redução dos serviços sociais e dos salários, desregulamentação do trabalho, aumento das taxas sobre o consumo, mas redução radical dos impostos sobre as empresas, especialmente sobre os setores exportadores. O chanceler Helmut Schmidt sabia que não poderia impor esse programa à ala esquerda de seu partido – onde os jovens “turcos”, como Gerhard Schröder e Oskar Lafontaine, davam o tom – e provocou sua própria destituição.
Crescimento da desigualdade
A crise financeira pesava muito sobre os social-democratas, que se resolveram por uma política de rigor, fatal para o crescimento
O “documento Lambsdorff” propunha “rearmar” a Alemanha, tendo em vista as batalhas futuras sobre o mercado mundial do trabalho. A coalizão do Partido Cristão Democrata (CDU-CSU) e do Partido Democrático Livre (FDP), dirigido pelo chanceler Helmut Kohl, colocou em obra apenas parcialmente essa modernização radical ? ir mais longe quebraria a capacidade de integração tanto do CDU-CSU como do SPD. A divisão das riquezas não se modificou mais sensivelmente: de 1982 a 1998, a renda das empresas e dos investidores dobrou, enquanto a dos assalariados estagnou. A participação da República Federal Alemã (RFA) nas exportações mundiais subiu de 9% a 12%, mas o consumo interno diminuiu. A arrecadação do Estado mudou: em 1970, a parte dos impostos sobre o capital e sobre a fortuna representava 30%, enquanto a dos impostos sobre os salários e indiretos se elevava a 70%; em 2000, os primeiros não representam mais que 15%, e os segundos 85%.
Nos anos 1990, os desequilíbrios se acentuaram, em razão do financiamento da unificação, pelo crescimento da dívida sobretudo dos planos de previdência e de seguro de saúde (+ 50% entre 1990 e 20003 ). Ao contrário da acolhida aos refugiados, em 1945, o custo da unificação não foi financiado por uma transferência de dinheiro de cima para baixo, mas pelos “pequenos”. Com os investimentos massivos nas infra-estruturas do leste, as filiais dos bancos e redes comerciais do oeste alemão engendraram apenas um boom provisório. Confrontados com a produtividade da indústria do oeste, as empresas do leste ruíram, reduzindo ao desemprego milhões de assalariados.
A era Kohl foi de supressão do imposto sobre a fortuna e de uma parte do imposto sobre o capital, com a diminuição das aposentadorias. Telecomunicações, estradas de ferro e correios foram privatizados e a eletricidade desregulada. Sem contar o desenvolvimento, politicamente rentável, do audiovisual privado? Desemprego, estagnação dos salários e do consumo interno; peso crescente da dívida e transferências para o leste (4% do produto interno bruto); gastos sociais demasiadamente pesados aos olhos da concorrência mundial; miséria financeira das instituições sociais e culturais: isso é o que o Partido Social Democrata (SPD) herdou em 1998.
Dois partidos em um
Uma inflexão, em escala européia, do liberalismo de Bruxelas, em defesa do Estado social, não foram sequer consideradas, enquanto os social-democratas dirigiam onze Estados da UE
No entanto, dois partidos já coexistiam no seio do velho SPD. Oskar Lafontaine e a esquerda tinham discursos inflamados em favor da reconstituição do Estado social, da “sociedade social de mercado”, da redistribuição do trabalho, da modernização ecológica e de uma nova ordem internacional mais justa. Retomando esses grandes objetivos, os teóricos da esquerda não refletiam quase nada das transformações ocorridas nos anos 1990: a aceleração da modernização, os acordos comerciais internacionais e a tempestade de privatizações da Comissão Européia haviam destruído as bases de uma política de redistribuição.
Em plena globalização, os debates sobre uma transformação pós-materialista, ecologista, passavam por luxo. E como ganhar as eleições com o único conceito realista nessas condições: o restabelecimento da “justiça social” sobre a base de um arrocho mais forte das classes médias e dos altos rendimentos? “Eles deverão sangrar”, havia dito o chefe dos Verdes, Joschka Fischer: a frase foi logo esquecida? Em resumo, a esquerda carecia de receitas concretas – e os intelectuais, que o constataram com pavor, não tinham mais nenhuma. Foi então logicamente que o SPD confiou sua campanha eleitoral ao pragmático e comunicativo Gerhard Schröder.
Ao contrário de seu rival Lafontaine, esse grande comunicador não se propunha ressaltar “a oposição entre dois projetos de sociedade fundamentalmente diferentes”: Ele queria “melhorar, sem mudar tudo, o que era possível ser melhorado”. Cercado de heróis da “nova economia”, ele escolheu um alto dirigente do setor energético como ministro da economia, e não hesitou em declarar: “Nós conduzimos uma política industrial muito dura, e os Verdes se encarregam do molho social” Seu “alvo”? O “novo centro”, ou seja, o coração bem pago da classe trabalhadora e os jovens empreendedores dinâmicos, aos quais ele prometeu crescimento e renascimento. Coube a Lafontaine manter os eleitores tradicionais, os perdedores da modernização e os “socialistas de sempre”?
Ofensiva precipitada
Schröder não se interessava nem pela Escandinávia mais igualitária, com seus impostos diretos mais elevados, nem pela França mais estatal, com sua redução do tempo de trabalho
Essa aliança durou apenas quatro meses. O Ministro das Finanças Lafontaine procurou o conselho de um dos últimos keynesianos (Heiner Flassbeck), quando a economia, em vinte anos, havia praticamente produzido apenas neoliberais. Ele reduziu as despesas sociais instituindo um imposto ecológico, anunciou que a seguridade social cobriria novamente o trabalho precário e pretendeu influir sobre a política do Banco Central em matéria de taxa de juros a fim de aumentar a margem de manobra do Estado. E ele o fez de acordo com seu temperamento, com precipitação e sem preparo, o que facilitou a contra-ofensiva dos meios financeiros, que mobilizaram contra ele seus comentaristas comprados. Resultado: o chanceler o desaprova publicamente e Lafontaine se demite ? de suas funções de ministro e de presidente do Partido Social Democrata (SPD). Tendo decapitado a oposição, Schröder acalmou muitos de seus membros distribuindo cargos. Quanto aos deputados, eles só poderiam ser leais aos olhos de um chanceler cuja maioria era muito curta. Estava terminada a “luta entre duas linhas”.
A crise financeira pesava muito sobre os social-democratas, que se resolveram por uma política de rigor, fatal para o crescimento. O objetivo mesmo da coalizão vermelho-verde – modernizar ecologicamente a economia, transformando o sistema energético e estimulando assim o crescimento interno – se realizou apenas pontualmente. As chances de uma inflexão, em escala européia, do liberalismo de Bruxelas, condição da defesa do Estado social, não foram sequer consideradas, enquanto os social-democratas dirigiam onze Estados da União.
É verdade que, na época, o chanceler enterrava projetos de reforma de esquerda perguntando aos membros de seu gabinete: “Alguém aqui ainda acredita que nós podemos dirigir a economia?” Ele não se interessava nem pela Escandinávia mais igualitária, com seus impostos diretos mais elevados, nem pela França mais estatal, com sua redução do tempo de trabalho, mas dirigia sua atenção para a Grã-Bretanha: o vazio intelectual deixado pela esquerda, ele o preencheu com o documento Blair-Schröder4 sobre a “social-democracia moderna”, cujas fórmulas ressonantes (“otimismo da nova economia”, “responsabilização”, “ativação”) revestem uma economia de liberalização, de desregulamentação, de baixa dos impostos (principalmente sobre o capital) e de assédio dos desempregados. Tudo em nome de esperanças de crescimento irrealistas e de uma redefinição do que é “justiça”: justo seria o que criasse crescimento?
>”Capitalistas de esquerda”
A coalizão vermelho-verde orgulhou-se de realizar “o maior programa de redução de imposto da história do pós-guerra”, diminuindo o imposto dos mais ricos e a taxação das empresas
A coalizão vermelho-verde orgulhou-se de realizar “o maior programa de redução de imposto da história do pós-guerra”. Ela diminuiu o imposto dos mais ricos em 8%, a taxação das empresas em 15%, e fez um agrado às grandes empresas, que cresceram, por baixo, dezenas de bilhares de euros. Paralelamente ao agravamento da crise financeira, centenas de milhares de empregados dos serviços públicos perdiam seus empregos, enquanto as universidades, as bibliotecas e outras instituições lutavam, ano após ano, contra as restrições orçamentárias do Estado. Entre ganhos da exportação e perdas do mercado interno, o número de desempregados ultrapassou a barreira dos cinco milhões em 2004.
Aos seus “capitalistas de esquerda”, desfilando em terno Brioni e charutos Cohiba na boca, o SPD deve o verdadeiro desmoronamento do apoio de seu eleitorado. Os sindicatos tomaram distância do governo. Com sua larga maioria de oposição ao Bundesrat, a segunda Câmara do Parlamento, a oposição conduziu uma campanha de caráter popular contra a liquidação do Estado social ao mesmo tempo em que os patrões e sua imprensa exigiam sempre mais do mesmo: diminuição de 15% nos salários, redução de um terço dos subsídios de desemprego, nova redução dos impostos, prolongamento do tempo de trabalho até 45 ou 50 horas?
Em 2002, Schröder foi reeleito, explorando ao mesmo tempo inundações catastróficas, a guerra do Iraque e o medo de um retorno da direita. Mas na promessa “trabalho, trabalho, trabalho”, ninguém mais acreditava. Com sua Agenda 2010, anunciada em 2003, ele continuou fiel à lógica segundo a qual, quando um medicamento não conseguiu curar a doença, é necessário ministrá-lo em dose ainda maior.
Ordem “turbofeudal”
Esse é o sentido do Plano Hartz IV, que reduz drasticamente, a partir de 2005, o custo da “sobrevivência dos inúteis”: ele priva os desempregados de mais de um ano de seus direitos sociais e os reenvia à assistência social, forçando-os, ao mesmo tempo, a aceitar trabalhar por um euro a hora. Rompendo com a concepção sagrada do pleno emprego, ele reorganiza o mercado de trabalho conforme a nova ordem “turbofeudal”: aqui, as elites privilegiadas do ponto de vista fiscal e protegidas do ponto de vista jurídico, pois elas sustentam a economia exportadora; lá, os supérfluos, os precários, que devem ser mantidos a baixo custo.
Entre ganhos da exportação e perdas do mercado interno, o número de desempregados ultrapassou a barreira dos cinco milhões em 2004
O pragmático Schröder tornou-se assim o executor social-democrata do projeto com o qual o conde Lambsdorff havia, há vinte anos, vencido a resistência do último chanceler? social-democrata. Com uma diferença: a infra-estrutura pública não foi ampliada, mas privatizada – e não por razões estratégicas, mas a fim de satisfazer necessidades financeiras agudas.
Contrariamente a seus opositores, o SPD sempre foi um partido de massa. Ele perdeu um terço de seus filiados desde 1990, dentre os quais 175.000 na era Schröder – não restam mais que 600.000. Apenas 2,8% dos militantes restantes têm menos de trinta anos. Além disso, desde as eleições de 2002, 8% de seu eleitorado trabalhador o abandonou, para juntar-se ao CDU ou se abster5. E sete estados lhe escaparam?
Aliança quebrada
Após as eleições de 18 de setembro, ou o partido retornará à oposição, ou entrará em uma “grande coalizão”. Mas, se isso acontecer, será com uma influência eleitoral sem dúvida mais reduzida. Ele não terá os meios financeiros de seus adversários burgueses, que, nas mídias, batem o tambor em favor de uma economia de mercado reforçada. Mesmo os sindicatos lhe farão falta: seu presidente declarou publicamente que as organizações de trabalhadores “perderam definitivamente seu parceiro”.
No fundo, o que está se quebrando é a aliança entre as camadas médias e os “pequenos”, aliança graças à qual, em quarenta anos, o SPD pôde tornar-se majoritário
No fundo, o que está se quebrando é a aliança entre as camadas médias e os “pequenos”, aliança graças à qual, em quarenta anos, o SPD pôde tornar-se majoritário. De um partido popular preocupado com o interesse do Estado, o chanceler Schröder fez um grupo de defesa dos interesses do “novo centro”, com os profissionais bem pagos e os quadros intermediários trabalhados pelo medo do declínio, mas que esperam que o partido não deixe as coisas se agravarem ainda mais. Com tal perfil, a diferença entre SPD e CDU é cada vez menor.
Depois de sua derrota na Renânia do Norte-Vestfália, em maio passado, o chanceler Schröder decidiu provocar as eleições legislativas, para que a esquerda de seu partido não se rebele ou que a situação geral não seja ainda mais grave um ano mais tarde. Sem dúvida esses dois motivos se combinam com a esperança, um pouco machista, de que o “grande comunicador” virá, em um duelo televisivo, a bater-se com a “patroa” do CDU, Angela Merkel, menos experimentada inclusive do ponto de vista midiático.
Crise de representação parlamentar
Mas será preciso fazer suas contas. Seu rival, Lafontaine, que ele considera um “traidor” desde que criticou sua política “neoliberal”, quebrou o último tabu tomando frente em uma aliança social-democrata de esquerda. Ela agrupa o Partido do Socialismo Democrático (PDS), partido – essencialmente implantado no leste – dos perdedores da modernização e dos nostálgicos do socialismo e a Alternativa Eleitoral por Trabalho e Justiça Social (WASG), onde se encontram – sobretudo no oeste – os sindicalistas e social-democratas decepcionados.
A social-democracia da era Brandt-Schmidt está, portanto, verdadeiramente dividida em três partidos: o dos trabalhadores abastados e dos funcionários (SPD); o dos desempregados, precários e vítimas da modernização (aliança de esquerda); o dos liberais de esquerda esclarecidos das grandes cidades (Verdes). Essa fragmentação reflete as conseqüências de uma globalização econômica não controlada politicamente, o que inclui as novas divisões sociais que ela amplia. Mas, principalmente, essa fragmentação destrói a capacidade de integração do SPD e torna mais difícil a representação parlamentar de diferentes grupos de assalariados pela defesa de um Estado social reformado e pela formulação de uma alternativa poderosa. Temos aí o que vai reforçar a deriva em direção à submissão do mercado. E, de um só golpe, a crise do SPD constitui um sinal premonitório da crise da representação parlamentar.
(Trad. : Carolina de Paula)
1 – Albrecht von Luc