“Somos todos norte-americanos”
Num programa gravado pela France Inter em Nova York, a jornalista de plantão relembrava a cada minuto o horário da Costa Leste. Visivelmente, ela se tornara uma das nossas. Todos norte-americanos, nós vivemos em Nova York e falamos todos inglêsSerge Halimi
Os Estados Unidos da América são o mundo. Foi isso, na verdade, que, numa frase encadeada numa lógica audaciosa, o presidente George W. Bush explicou: “Agora, que a guerra foi declarada contra nós, nós levaremos o mundo à vitória.” De qualquer maneira, no dia 11 de setembro de 2001 os Estados Unidos enfrentaram perdas superiores àquelas provocadas por todas as operações militares desencadeadas sucessivamente durante as duas últimas décadas contra Granada, Líbia, Panamá, Iraque, Somália, Haiti, Afeganistão, Sudão e Iugoslávia. Um acontecimento dessas proporções ? e ainda com a destruição de uma das alas do Pentágono ? talvez devesse ter merecido algo mais que o tratamento quase exclusivamente misericordioso que lhe foi destinado desde o início.
Olho por olho… Diante dos escombros do World Trade Center, 67% de norte-americanos admitiram que a eventualidade de “vários milhares de vítimas inocentes” provocada por um revide militar maciço não aplacaria aplacar sua sede de vingança1. Sem dúvida estarão pensando que essas vítimas deverão se encontrar no campo do adversário. O que não é tão importante. Para eles. E, de certa forma, para nós, já que “somos todos norte-americanos”.
A “cidadania” imposta
“A recusa em cooperar deve significar um adversário da América e implicar em sérias conseqüências, econômicas e militares”, advertiu o Washington Post
Esse tipo de cidadania implica em obrigações. Após reivindicar a liberdade de adotar uma política externa unilateral, ditada por seus interesses, os Estados Unidos exigiram, de fato, naquele momento de adversidade, uma solidariedade incondicional, o apoio de todos os seus aliados: “A cooperação no esforço de guerra”, previne o Washington Post, “deve ser uma exigência absoluta. Qualquer recusa em cooperar […] deveria significar um adversário da América e implicar em sérias conseqüências, econômicas e militares2
.”
No dia 18 de setembro de 2001, em um desses inúmeros programas ao vivo ? “especiais”, na medida em que nada têm a dizer ? realizado em tempo real pela France Inter de Nova York, a jornalista de plantão achou interessante ficar relembrando a cada minuto o horário da Costa Leste. Visivelmente, ela se tornara uma das nossas. Todos norte-americanos, nós vivemos em Nova York e falamos todos inglês. “Os ataques”, explicou o International Herald Tribune, “recolocaram em questão a idéia de que os outros países, em especial da Europa, pudessem ter sistemas de valores e níveis de conforto próximos aos dos norte-americanos, porém recusando o envolvimento num confronto entre os Estados Unidos e as forças terroristas que desafiam o Ocidente.” Ora, era preciso obedecer.
Minutos de silêncio, gritos e luto
Entrevistado pela France Inter, o cineasta Michael Cimino pouco tinha a dizer. Mas fazia-o de Los Angeles, e em inglês. A cientista política-jornalista Nicole Bacharand, fascinada pela conversa, replicou sem hesitar: “Thank you, Michael, and remember this: we are all Americans3.”
No dia 14 foi a vez de France Musiques: “Bom dia a todos. Hoje, ao meio-dia, seremos todos norte-americanos e faremos três minutos de silêncio”
No dia 14 de setembro foi a vez de France Musiques: “Bom dia a todos. Hoje, ao meio-dia, seremos todos norte-americanos e faremos três minutos de silêncio. […] Oitocentos milhões de europeus partilharão mais ou menos dessa mesma atitude, à mesma hora, unidos em seus cotidianos, agora que o primeiro choque passou, e detendo-se por um momento na manhã de hoje para meditar e refletir.” “Refletir”, uma palavra que, no entanto, foi pronunciada durante esses dias um pouco como um exorcismo. Talvez inspirado por esse grande momento de meditação européia, Jean d?Ormesson enviaria, dois dias depois, por intermédio do jornal Figaro, uma “Carta aberta ao presidente Bush”. Escreveu o seguinte: “O senhor sabe do grito que está em todas as nossas bocas: ?Somos todos norte-americanos?.” Mas, para o Journal du dimanche era preciso ir mais longe: “Se são os Estados Unidos que estão de luto, são todas as democracias que foram atingidas. E que estão em perigo. Nesse sentido, sim, somos todos norte-americanos.”
A descoberta do patriotismo
“Nós”, quem? E “todos”, quem? Sem revelar a autoridade em nome de quem o faziam ? seria em nome da informação? ?, muitos comentaristas de renome sentiram-se no direito de “nos” recomendar vínculos coletivos, minutos de silêncio, gritos em nossas bocas. Quando um jornalista, tido por insolente, defendeu que fosse imposto “não três minutos, mas uma semana de silêncio4
“, a democracia atacada chegou a desencadear uma avaliação da imprensa involuntariamente esclarecedora: “Leia Jean-Marie Colombani, na primeira página do Monde. Leia Serge July, do Libération, Michel Schifres, em Le Figaro. Leia a crônica de Jacques Julliard e o editorial de Jean Daniel no Nouvel Observateur. O de Claude Imbert, em Le Point e o de Denis Jeambar, em L?Express. Leia essas dezenas de páginas, essas centenas de artigos, que, no fundo, explicam todos a mesma coisa5.” Exatamente: a mesma coisa. Mas, então, por que ter que ler todos eles?
O Journal du dimanche foi mais longe: “Se são os Estados Unidos que estão de luto, são todas as democracias que foram atingidas. E que estão em perigo”
E aí voltou o Estado. Os mercados já o exigiam. Pois, como anunciava um de seus mais fiéis intérpretes, “a única resposta por que espera o mundo dos negócios, o mundo da economia, é, evidentemente, uma resposta política muito forte, pois foi o próprio sistema capitalista que foi atingido em seu coração6
“. No dia 17 de setembro, talvez para tranqüilizar os acionistas apavorados, foi divulgado, equivocadamente, que tinha sido sustada a baixa nas cotações em Wall Street. Imediatamente, o correspondente da France Inter explicou: “Trata-se de não oferecer uma segunda vitória aos inimigos dos Estados Unidos7
.” E o mercado descobria o patriotismo.
Uma interrogação pairava no ar: em que caldeirão intelectual e político pode ferver tanto ódio e determinação? A resposta não tardou: “Os primatas barulhentos e vândalos da anti-globalização, os herdeiros abandonados do maoísmo condenam, na realidade, os Estados Unidos, sinônimo do capitalismo. Essa obsessão leva a uma verdadeira desresponsabilização do mundo8
.” Alegremente citado por um jornal diário, e advertido de que esse era um filão que iria render frutos, um dos pesos-pesados da crônica econômica, mantido em silêncio por um longo tempo, liberou finalmente a caneta: “Atacando um símbolo dessa envergadura [o World Trade Center], os terroristas justam-se ao discurso dos anti-globalizantes, cuja palavra se tornou onipresente9
.” Com efeito, muito presentes na mídia durante o verão, os “anti-globalizantes” viam-se agora forçados a devolver a bola; Nova York iria permitir apagar Gênova. Foi o que fez um jornalista norte-americano, correspondente em Paris, que escreveu estas linhas: “O horror dos aviões seqüestrados espatifando-se contra o símbolo do World Trade Center salienta o absurdo dessa violência descabida contra a globalização e endurece as posições das autoridades que a devem enfrentar. Satanizar, de forma violenta, os Estados Unidos e as organizações do comércio mundial, equivale, na prática, a uma empreitada potencialmente assassina10
.” Não é que o World Trade Center significava Centro do Comércio Mundial…?
Provocações e sangue-frio
Um dócil jornalista disse que “a resposta por que espera o mundo dos negócios é uma resposta política muito forte”: o mercado descobria o patriotismo
Quando se diz que, alguns dias antes do atentado, Osama bin Laden talvez tivesse investido de forma a se aproveitar da possível reação dos mercados a um acontecimento de que ele teria tido conhecimento antes das outras pessoas, ninguém teve a idéia sacrílega de questionar o sistema capitalista e a delinqüência de seus seguidores. Em outros lugares, leprosos já haviam sido descobertos. Em entrevista a um diretor da entidade Attac-France, por exemplo, para a rádio Europe 1 (grupo Matra-Hachette-Lagardère), a jornalista perguntou: “O que é que você responde a quem lhe diz: ?Quem rouba um tostão, rouba um milhão?? Traduzindo: quem arranca um pé de milho transgênico seria, um dia, capaz ? nunca se sabe ? de colocar uma bomba?” Efetivamente, isso é uma coisa que nunca se sabe…
Sabe-se, entretanto, que o pudor que seria recomendável, no sentido de não tirar proveito da morte de milhares de civis nova-iorquinos, não durou muito. Comentaristas imaginaram rapidamente alguma forma de futuros trunfos, mais prosaicos. No dia 17 de setembro, por exemplo, com um sangue-frio louvável, Franz-Christoph Zeitler, membro do conselho do Bundesbank (banco central alemão), avaliou que “nesta situação psicológica e economicamente difícil, a prioridade deve ser a de manter o bom funcionamento e a liquidez dos mercados financeiros. A discussão sobre uma nova taxação dos mercados internacionais de capitais, como a Taxa Tobin, é extremamente contraproducente”. Não seria, simplesmente, criminosa? (Trad.: Jô Amado)
1 – Pesquisa do New York Times realizada entre 13 e 14 de setembro de 2001. A pergunta era a seguinte: “Devem os Estados Unidos adotar medidas militares contra os autores dos atentados mesmo que isso signifique que milhares de civis inocentes podem ser mortos?”
2 – Editorial do Washington Post reproduzido na edição de 14 de setembro de 2001 pelo International Herald Tribune.
3 – “Obrigada, Michael, e lembre-se que somos todos norte-americanos.”
4 – Daniel Mermet, que revelou pessoalmente a idéia, na France Inter, a 17 de setembro.
5 – France Info, 13 de setembro de 2001.
6 – Jean-Marc Sylvestre, na TF1, 12 de setembro de 2001.
7 – Frase pronunciada num flash, às 18 horas. Nesse dia, a queda da Bolsa em Wall Street foi superior a 7%.
8 – Ler, de Jean-François Revel (da Academia Francesa), “Pourquoi tant de haine?”, Le Point, 14 de setem
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).