Sonar de contragolpe
A preservação institucional da atmosfera democrática no Brasil exige monitoramento político permanente das movimentações nacionais e internacionais da extrema direita
Desde antes de 2016, a extrema direita veste farda encaniçada. A inconformidade com a derrota eleitoral em 2022 estimulou a horda civil, militar e miliciana a amarrar o cadarço das botas no orgulho dos porões, para conduzir cantis a jornada de longo prazo. O procedimento visa fazer o campo de centro-esquerda jogar o xadrez político no tablado da “guerra cultural” em curso. Essa tentativa de enquadramento implica, por sua vez, a pretensão de fazer o campo progressista, hoje institucionalizado no Executivo, refém de factoides extremistas em série, obrigando-o a gravitar em torno de pautas de indução de crises e conflitos, escândalos e mexericos, arquitetada em vizinhança hostil. Manter o inimigo ocupado, com sua atenção e percepção apreendidas – lembre-se a banalidade –, materializa conhecido mote de controle behaviorista, às vezes por meio de racionalidade política com sangue nos olhos.
O recente episódio envolvendo alto general de confiança do presidente da República não indica senão que o quadriênio institucional até 2026 será de sabotagem permanente, a exemplo de eventos serpentinos no segundo mandato da ex-presidenta Dilma Rousseff.
Estratégias condicionais de impeachment
Estratégias de combate encontram-se em franca repercussão no âmbito civil das disputas políticas convencionais. Seu objetivo principal, mirado no coração do espectro de esquerda, é enlamear a reputação de pessoas, entidades e empresas alinhadas ao governo de coalização para (1) dividir disposições e propensões afetivas no arco da coalizão, (2) espalhar crise interna e confusão incontrolável na imprensa conservadora, (3) minar a credibilidade da administração federal na visibilidade multimediática e (4) desidratar paulatinamente o potencial eleitoral de seus agentes (executivos e parlamentares), em especial o de vertentes afastadas do centro.
Outro objetivo importante – de fundo – da mencionada estratégia de sabotagem é tentar emplacar, pela enésima vez, na opinião pública e no senso comum reacionário, o mote atabalhoado de que a esquerda inteira é incompetente, corrupta e mentirosa; e de que trabalhadores não têm vocação para assuntos de Estado e de governo. O sociodarwinismo moralizante da elite política e empresarial hegemônica torna a mensagem déjà-vu: “o Brasil é dos tecnocratas brancos, diplomados, engravatados e abastados” – pálido retrato patriarcal e publicitário dos antigos invasores de Pindorama –, os mais “preparados” e “ilibados” (justamente porque calam, na origem, qualquer investigação sobre seus calcanhares). O telos, refundido no ressentimento, é claro: incendiar forçosamente o caminho, pelas beiradas e pelo centro, para condicionar, sem falhas, o impeachment do presidente.
Imagem institucional da política de reparação de danos
A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre os atos terroristas de 8 de janeiro em Brasília corre no centro de uma disputa dicotômica relevante. Qualquer democrata medianamente informado sabe que tal Comissão “solta” no Congresso Nacional – sem controle contínuo da mesa, da relatoria e da maioria por aliados e com eventual predominância de discursos opositores de direita e extrema direita – salpica pó mortal, de descrédito imensurável, sobre a imagem institucional e soberana do poder político hoje responsável pela reparação social de danos provocados pelo perverso desenvolvimento do capitalismo brasileiro e pelo desastroso quadriênio neoliberal anterior. Urge salvaguardar essa imagem de soberania política. Sua eventual ruína simbólica sombreia, em potência, não somente a opinião pública interna, com desidratação de apoio político e de capital de voto. Desdobra-se em escala internacional.
À luz da Carta Magna de 1988, importa pouco, nesse contexto, se, para a extrema direita, a insurreição depredatória no início de janeiro constituiu encenação fustigada por forças governamentais, visando simular progresso de golpe contra elas mesmas, responsabilizar legalmente adversários, chamuscá-los na visibilidade midiática e sair-se bem na ribalta. Essa maquinação conspiratório-dissuasiva, de safa-pele a qualquer custo, não deixa de ser um emblema surrado daquela estultícia pragmática típica da rusticidade voluntária: às cartucheiras amadoras da extrema direita, interessa exclusivamente robustecer decibéis às margens da discussão racional possível, em condições polarizadas.
Sonar de contragolpe
A coalizão federal de centro-esquerda prescinde de conselhos e recomendações. A 10 dias de governo, ela desarticulou, com duas ou três palhetadas, a sanha predatória de um golpe supostamente civil, com apoio militar e policial e fomento milionário de empresários de extrema direita. (A respeito de recomendações e conselhos, a paciência política precisa solicitar à arrogância conservadora-opiniosa da imprensa tradicional que assente a bola no chão.) Quando a matéria se refere à preservação estratégica de poder em nome da democracia, no entanto, lembranças oportunas, mesmo sobre obviedades, ficam, de partida, abonadas. A principal delas gira em torno da sensibilidade política ininterrupta para signos e movimentações de sabotagem extremista e ultraconservadora, não raro iminentes. O aparente paradoxo do (exercício do poder de) Estado de Direito com sonar 24/7 de contragolpe protege – não há dúvida – instituições republicanas e democráticas, entendidas como arranjo político formal de conquistas social-históricas egressas do rastro de pressões populares.
A lenha peçonhenta não deixa equivocar-se quem porventura pilhe o fundamental: tais signos e movimentações de golpe (não necessariamente idênticos aos de 8 de janeiro) se efetivam em – e provêm de – magmas do submundo. Seus sintomas de crosta escancaram-se na visibilidade multimediática – desde media tradicionais, corporativos e conservadores a redes sociais. A peçonha não se nutre exclusivamente no e pelo campo da usabilidade. Às vezes, cúpulas dos próprios media protagonizam o sinistro.
Sem trégua por parte dos derrotados no pleito de 2022, o governo conhece a necessidade premente do serviço não apenas de inteligência alerta (o que já ocorre, por mecanismos intersetoriais), mas de racionalidade política de antecipação técnica (no quanto possível) de cenários críticos, com base na percepção diuturna de informações periculosas, em especial as circulantes em nichos oclusos. Quanto mais sistemático, profundo e preditivo esse trabalho de sismografia especializada (para, se necessário, acionamento de procedimentos de contragolpe), mais dilatado o conjunto mínimo (e, por vezes, precário) de garantias republicanas e democráticas. Em tempos de proliferação acelerada de grupos neonazistas e supremacistas no país, integrados ou não com a extrema direita institucionalizada no parlamento, a prontidão de Estado requerida – isto é, a velocidade institucional como produtividade jurídico-política e tecnológica – prospera doravante em favor dos valores constitucionais. A contradição, estruturalmente objetiva, não é da coalizão de centro-esquerda, mas das próprias tendências políticas e sociais vigentes. De igual modo, a injunção, compulsória ao governo, não representa paradoxo: o princípio da produtividade, compulsivamente demandado pela fase neoliberal do capitalismo, deve, no sem-pulo progressista, ser mobilizado contra o extremismo e o terrorismo de grupelhos que pretendem arruinar décadas de construção republicano-democrática em nome de futuros autoritários.
Controle do campo neofascista
O exercício político da velocidade de contragolpe coaduna-se, em simultaneidade, com a inversão, pelo governo federal, da equação do jogo, com efeitos duráveis no quadriênio. Mais além, o campo de centro-esquerda precisa pautar, política e institucionalmente, o campo adversário, mantendo sobretudo os adeptos do neofascismo acuados, isolados e/ou ocupados com assuntos relevantes de interesse da coalizão, centrados, irremediavelmente, na defesa dos direitos humanos, sociais, civis, trabalhistas e previdenciários.
A necessidade vital dessa subalternização estratégica e permanente faz a banalidade da mencionada equação ser, ainda assim, patenteável: a disputa de pautas é crucial porque significa disputa de horizontes e rumos; a disputa dessas projeções coletivas indicia disputa por hegemonia; a disputa por esse tipo de ascendência e controle traduz disputa de visões de mundo; a disputa dessas cosmovisões e narrativas espelha disputa por modelos societários – e um deles, vigorante, diz, evidentemente, respeito à reprodução social-histórica das estruturas materiais (institucionais inclusas) do capitalismo, na qualidade de dinâmica hierárquica de condições econômicas e estilos segmentados de vida, fincados, por sua vez – direta ou indiretamente –, na exclusão, na segregação e em todas as formas de desigualdade.
A administração federal da judicialização dos terroristas de janeiro representou traslado fundamental em prol dessa inversão definitiva de pautação. Mas não basta. Vale – em tempo – assestar melhor as ações democráticas de monitoramento do neofascismo e quejandos, bem como sincronizá-las, com o concurso de diferentes setores jurídico-políticos e segmentos de inteligência do Estado.
O final de dezembro de 2025 dirá, em balanço, se o período de governança, mais além do cumprimento de promessas eleitorais, foi, especialmente para o Executivo, também o do alerta pleno, com foco no desarme de bombas no terreno.
Eugênio Trivinho é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.