SUS, o grande aliado da Saúde Única
Ao contrário dos princípios do SUS e indiferente às premissas da Saúde Única, a Saúde Privada desconsidera o colapso ambiental e a vida animal, maximiza lucros, atende mal e se torna hegemônica na economia nacional
No Brasil, são quase 52 milhões de usuários de planos privados de saúde, com aumento de mais de 850 mil novos beneficiários no mês de outubro de 2024 em relação ao ano anterior, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS. Ainda de acordo com a ANS, o lucro líquido dos planos de saúde quintuplicou em relação a 2023 (R$ 1,9 bilhão), atingindo R$ 11,1 bilhões em 2024 com receita total de aproximadamente R$ 350 bilhões. Considerando apenas operadoras médico-hospitalares, o lucro foi de R$ 10,2 bilhões.
Lucros bilionários, mas ainda é pouco
Mesmo com tais resultados, o setor da saúde privada e a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) consideram baixo o lucro de “apenas” 3,16% em relação ao faturamento. Somente a Rede D´Or alcançou R$ 3,9 bilhões,[1] quer dizer, 35,14% dos R$ 11,1 bilhões e 38,24% dos R$ 10,2 bilhões das operadoras médico-hospitalares. As 27 empresas de grande porte – que possuem 500 mil beneficiários ou mais – foram responsáveis por R$ 9,2 bilhões dos R$ 10,2 bilhões de lucro líquido. Logo, das 1.113 operadoras (dados da ANS em janeiro de 2025), 1.086 (97,57%) constituem as de médio e pequeno porte. Estas ficaram com apenas 9,8% dos lucros. Há uma evidente e brutal concentração que está em contradição com os fundamentos do capitalismo: concorrência, livre iniciativa e mercado. Nada disso é real: poucos conglomerados se sentam à mesa e decidem o que vão fazer. O restante das empresas apenas obedece. O que não dizer dos usuários e trabalhadores? Os profissionais da saúde, nos planos privados, estão contentes com seus salários e condições de trabalho?

SUS como salvação econômica
Para efeitos de comparação, o Sistema Único de Saúde (SUS), teve orçamento de R$ 218,5 bilhões (para atender a uma população de 203 milhões) no ano de 2024, ou seja, 60% menor do que a receita de R$ 350 bilhões da saúde privada. Além disso, como se sabe, o SUS não faz apenas consultas, exames e tratamentos, mas também realiza um longo complexo de ações que a saúde privada nem passa por perto. Salvo exceções, ou o faz de forma residual ou é simples peça de marketing institucional.
Entre os exemplos daquilo que o SUS executa, estão o acompanhamento de doenças, surtos e epidemias (vimos o papel essencial do SUS na pandemia da Covid-19); a fiscalização da qualidade tanto de serviços laboratoriais quanto de alimentos, medicamentos, cosméticos e produtos de limpeza; vacinações em massa; inúmeros tipos de campanhas educativas; o premiado Programa de Saúde da Família; a formação e a valorização de profissionais da saúde com programas permanentes de educação, estágios e residências; um amplo conjunto de pesquisas científicas e tecnologias inovadoras; oferta de serviços de saúde de alta complexidade; indutor, por meio de seu poder de compra, da consolidação do Complexo Econômico-Industrial da Saúde; entre vários outros tipos de planos e ações.
Esse quadro, por si, nos diz bastante, principalmente quando sabemos que a maior parte dos planos de saúde deixa muito a desejar na qualidade do pouco que fazem: atendimentos e relação com clientes e trabalhadores. Isto é, com muito menos, o SUS faz muito mais, e com muito mais qualidade. Cabe muito bem à saúde privada a clássica frase neoliberal: o negócio do negócio é o negócio. Indo direto ao ponto: o que buscam é o lucro. As demais questões ou são secundárias ou apenas são feitas se contribuírem para o retorno financeiro.
Atendimento ruim convive com extrema concentração de riqueza
Um dos principais resultados da dedicação ao lucro é o recorde de reclamações e ações judiciais que pesam sobre as operadoras[2]: nos últimos cinco anos as queixas contra os planos de saúde quase quadruplicaram; entre 2018-2023, as reclamações aumentaram 263%, indo de 97.336 para 353.784; em 2023, a Notre-Dame colecionou 49 mil queixas (ANS), acumulando um aumento de 778% desde 2018, o que a tornou líder a partir do ano de 2021 na ANS; na mesma agência, quem liderou as queixas entre 2018 e 2023 foi a Amil; e a Hapvida, entre 2018-2023, teve um aumento de 488% nas queixas, totalizando 28.067. Em geral, as ações judiciais contra reajustes, entre 2021-2023, aumentaram 137%, o que representou 32.325 demandas. As ações por reivindicações de tratamentos, no mesmo período, aumentaram 83%, atingindo a marca de 115.669. Isso, sem considerarmos os casos de ruptura unilateral de contratos, para pacientes crônicos, por parte das operadoras.
Sete Irmãs e a Saúde Única
Inspirados no artigo A Rede de Controle Corporativo Global, publicamos, há dois anos, “Quem está no comando?” – estudo no qual investigamos o poder das 200 principais corporações que atuam no conjunto da economia do Brasil. Representando 63,5% do PIB, esse grupo de holdings é constituído por 6.235 empresas e fundos. Estas significam 0,03% dos CNPJs existentes no país e possuíam em 2019 uma receita bruta de 69,7% maior do que o orçamento da União. Esses números, por si, demonstram o gigantismo e o poder concentrado por uma ínfima porção em nosso território. Entretanto, a concentração verificada em nossa pesquisa é ainda muito maior. A investigação não se baseou nos dados econômicos e financeiros tradicionais, como lucro, patrimônio, ebitda etc., mas sim no cruzamento de propriedade entre os conglomerados apontados: A controla B, C, D e E, que controlam F, G, H etc. Enfim, trabalhamos com o exame das 7.257 relações de controle corporativo acionário em rede.
Descobrimos que, das 6.235 empresas/fundos, 20% (1.247) concentram 80% do controle acionário: 5.820 vínculos de propriedades cruzadas de ações. Essa super concentração se intensifica ainda mais quando verificamos que 1% (62 holdings) acumula ¼ das propriedades de relações acionárias da rede corporativa no Brasil. Nesse 1%, os três setores mais poderosos são o de energia (principalmente elétrica), finanças e, para nossa surpresa, o da saúde privada: Rede D´Or, Dasa, Eurofarma, Notre Dame, Amil, Aché e Hapvida. São o que chamamos de as Sete Irmãs da Saúde. Nos critérios econômicos habituais, as Sete Irmãs estão igualmente no topo. Dos R$ 10,2 bilhões de lucro líquido dos planos de grande porte referidos acima, R$ 5,14 bilhões pertencem a elas, as Sete Irmãs. A realidade de elevadíssimos lucros, somados à péssima ou má qualidade nos serviços prestados, são acompanhados pela geração de alguns dos mais notórios bilionários brasileiros.
Segundo a revista Forbes Brasil, em 2024 tínhamos 240 bilionários no país. Desses, 11 são da saúde privada e, todos eles, vinculados às Sete Irmãs. Juntos, possuem um patrimônio pessoal de R$ 46,8 bilhões, em outras palavras, 21,42% do orçamento federal do SUS. Essencial ressaltar que as Sete Irmãs são hegemônicas não só no setor de saúde privada, mas participam do seleto grupo mais poderoso da economia corporativa brasileira, em outros termos, da própria economia nacional. Repetimos para salientar: as Sete Irmãs integram o 1% de corporações que concentram ¼ das propriedades acionárias em um pequeno aglomerado que representa 63,5% do PIB. Não é pouco. Outro agravante nesse cenário: os dados dessa pesquisa refletem a economia nacional no ano de 2019. De lá para cá, ocorreram, como acompanhamos, várias outras fusões que podem ter elevado ainda mais a concentração: Hapvida com Notre Dame em 2021; Rede D´Or com Sul América em 2022; Rede D´Or com Bradesco Seguros, também em 2022; Eurofarma com Genfar em 2023 e Dasa com Amil em 2024.
Se a saúde privada tem como foco o domínio do mercado e o lucro e não a saúde pública e a população, há alguma possibilidade de efetiva preocupação com a saúde animal e o meio ambiente, isto é, com o que representa o conceito de Saúde Única? A resposta nos parece óbvia. Na área da saúde, não há nada mais contrário ao conceito de Saúde Única do que eufemisticamente chamam de Saúde Suplementar. Esta, hoje, é sim um obstáculo para o crescimento e o desenvolvimento do SUS, bem como da Saúde Única. Até porque sociedades saudáveis vão necessitar de menos cuidados médicos, consultas, remédios e exames, justamente o ganha-pão da saúde privada: quanto mais doença e doentes, melhor. A saúde ambiental e animal simplesmente não integram o escopo da saúde privada e nem de seu grupo mais representativo, as Sete Irmãs.
Assombrosamente fantasioso
Sempre com raras exceções, os relatórios de sustentabilidade das grandes corporações – e, nesse caso, não incluímos apenas o setor de saúde, seja no Brasil ou no mundo – possuem visual atraente, são impressos no melhor tipo de papel e em cores sedutoras, além de serem ricamente ilustrados e enaltecerem avanços “espantosos” nas áreas social e ambiental. Entretanto, uma dúvida se impõe: por que, com tantas e fabulosas realizações, o mundo continua se aproximando, em velocidade cada vez maior, da catástrofe climática? Recordemos que o ano de 2024 foi o mais quente da história e que, desde a década de 1950, quando começaram as medições diretas, a concentração de CO2 na atmosfera nunca teve, na média, uma queda, apesar dos inúmeros encontros globais para o tema. Estamos nos referindo a Estocolmo 1972, Rio 92 (também chamada Eco 92); 29 COPs – Conferências da ONU sobre Mudanças Climáticas (a primeira em 1995, e a próxima, COP30 será em novembro no Brasil), Protocolo de Kyoto em 1997; Rio+20 em 2012; Acordo de Paris em 2015 etc. Por que, com tantos admiráveis projetos sociais, mais de 80% da humanidade se encontra em estado de pobreza e miséria? O Estado é basicamente gestor, quem mais produz, altera a natureza e paga salários são justamente as empresas e corporações. As mesmas que elaboram os tais primorosos relatórios de sustentabilidade.
No caso das operadoras dos planos de saúde privada, nem mesmo sua missão essencial – prestar serviços de saúde decentes aos que pagam mensalmente por isso – parece dar certo.
Há como a Saúde Privada se aproximar da Saúde Única?
A convergência entre saúde humana, animal e ambiental está fora e continuará fora dos propósitos da saúde privada, desde que a prioridade continue sendo apenas o lucro e o negócio em si. Contrária às bandeiras do SUS, a saúde privada é ainda mais avessa à tríade holística da Saúde Única. A lógica sistêmica e integradora da Saúde Única, bem como seu caráter preventivo e de longo prazo nada tem a ver com os interesses da saúde privada. Uma sociedade com proteção e vigilância de doenças na relação humana-ambiental-animal é uma sociedade que compreende a saúde de forma mais ampla. Se entendemos que o bem-estar humano vai além da dimensão puramente biológica e que, a saúde das pessoas somente pode existir em equilíbrio com a saúde animal e a qualidade dos ecossistemas, em que a saúde privada, principalmente no atual cenário, pode contribuir para o sentido integral promovido pela Saúde Única? Aliás, sentido esse em plena harmonia com a definição de Determinantes Sociais de Saúde (DSS), onde a saúde individual-coletiva depende de uma série de fatores como escolaridade, cultura, renda, saneamento, moradia, relações comunitárias etc. Pode-se alegar que a saúde privada possui apenas um papel suplementar, mas, como é notório, nem mesmo essa função cumpre devidamente. O que importa para a saúde privada é a existência de uma sociedade doente, que dependa de tratamentos, comercialização de medicamentos e uso intensivo de tecnologia. É exatamente esse o modelo biomédico exclusivista que caracteriza a saúde privada, oposto à essência da Saúde Única.
Eduardo Magalhães Rodrigues e Silmara Conchão são professores universitários, pós-doutorandos em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), membros do Observatório da Saúde e do Bem-Viver do ABC e pesquisadores no Centro de Estudos de Saúde Coletiva (CESCO), do qual Silmara é a presidente.
[1] Sobre o lucro da Rede D´Or, ver: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/rede-dor-tem-lucro-liquido-de-r-8795-mi-no-4o-trimestre/#:~:text=na%20mesma%20compara%C3%A7%C3%A3o.-,No%20ano%20de%202024%2C%20por%20sua%20vez%2C%20o%20lucro%20l%C3%ADquido,%2C1%25%20frente%20a%202023.
[2] Os dados sobre queixas e ações judiciais estão compilados pela jornalista Daniela Madureira, do jornal Folha de São Paulo, em matéria de 29 de outubro de 2024. Link: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/10/energia-financas-e-saude-sao-os-setores-com-mais-conexoes-acionarias-indica-estudo.shtml.