Teatro, raça e aplausos
Em 2010, o Bando de Teatro Oludum comemora duas décadas de palco, tendo a questão racial como principal temática. Fruto de movimentos sociais locais, da força organizacional e inteligência do negro, a companhia de teatro criou uma linguagem própria para tratar, com humor, do racismo no Brasil
“Por favor, minha filha, você pode chamar a dona da casa?” A mulher negra que abriu a porta e ouviu esta frase era, ela mesma, a dona do apartamento. Fale a verdade: se você é negra ou negro e mora em um bairro de classe média, não estranha essa história. Sabe exatamente por que a visita não esperava que a casa fosse dela. E se você é da cor da Branca de Neve, pode até mesmo ter se reconhecido nesse momento em que o racismo aflora travestido de simples “gafe”.
Foi brincando com situações delicadas como esta e expondo a hipocrisia racial dos brasileiros que o Bando de Teatro Olodum construiu uma de suas peças mais vistas em Salvador, Cabaré da RRRRRaça. Comemorando 20 anos agora, em 2010, o Bando de Teatro Olodum, um grupo de atores negros tendo à frente o talento e a visão dos diretores Márcio Meirelles e Chica Carelli, era chamado, no início, de Grupo Cultural Olodum. Depois de se desligarem do famoso bloco afro, que já seduziu brancos como Paul Simon e Michael Jackson, tomaram seu próprio rumo, sem deixar o nome Olodum para trás. Invadiram o Teatro Vila Velha, na época caindo aos pedaços, e o transformaram em abrigo de diversos grupos teatrais.
A questão racial (e social) é, sim, sua principal temática. Não teria como não ser. E mesmo onde ela aparentemente não existe, o grupo a cria. Foi assim com a montagem de Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare, só com negros. Pela peça, o Bando de Teatro Olodum recebeu o Prêmio Braskem 2006, como melhor espetáculo.
Ao todo, já foram mais de 20 montagens, de Brecht a textos próprios, apresentadas inclusive fora do país, em Portugal, Angola e Inglaterra. A capacidade técnica e o talento da companhia fazem inveja. As peças do Bando têm um cuidado estético apurado: figurinos, cenários e iluminação impecáveis. O som é sempre bem colocado e marcante – palmas para Jarbas Bittencourt. E as coreografias e o trabalho corporal são fora de série.
Aqui, vale o destaque para um nome que ajuda a fazer do Bando de Teatro Olodum o que é: o bailarino e coreógrafo Zebrinha, um dos maiores nomes da dança do Brasil. Zebrinha estudou em diversos países. Recebeu bolsa integral no famoso Alvin Ailey American Dance Theatre (Estados Unidos); deu aulas na Stadeliyk Conservatoriam en dans Academie, em Arnhem (Holanda), na Academie Internationale de Paris (França), no Project Studio, em Munique (Alemanha), e na Federatie Friy Tiyed (Bélgica). Mas preferiu voltar para sua Salvador, onde esse filho de Ogum é responsável pela direção artística do Balé Folclórico da Bahia. E é o coreógrafo que abre os caminhos, fazendo com que os atores do Bando cheguem ainda mais longe.
“Menino, chama seu patrão?”
Em qualquer lista dos maiores atores brasileiros da atualidade, um nome vai aparecer: Lázaro Ramos. Na verdade, difícil é não ler seu nome nos créditos dos principais filmes, novelas e séries dos últimos anos. O onipresente Lázaro, de Madame Satã a Meu tio matou um cara e Cidade baixa, da novela Duas caras à minissérie Decamerão. O Roque de Ó paí, ó já provou a todos que tem talento e capacidade. O rosto negro de Lázaro é a autoimagem que muitos brasileiros não tinham como ver refletida nas telas. E foi no Bando que tudo começou. Ali, Lázaro teve seu talento descoberto e esculpido, como mais de 30 atores atuais, todos vindos de oficinas e seleções do grupo.
Qualquer diretor, hoje, deveria abrir os olhos para Salvador. Mandar para a cidade onde nasceu o Brasil a turma que faz casting. Dali, por entre as ladeiras com seus cortiços abandonados, podem sair alguns Lázaros Ramos, de calça ou de saia. Mas parece que o pessoal de casting não quer ouvir falar de Pelourinho.
Aos poucos, as coisas até têm mudado. Mas o pensamento de décadas, que diz que esses atores só podem atuar onde exista um papel escrito especialmente para o negro, não desaparece de uma hora para outra. E qual é o papel escrito para o negro? Aquele que está no lugar “reservado” para ele: jogador de futebol, músico, empregada doméstica.
“Tem alguém aí que possa me atender?”
Essa discussão não é nova. O Bando de Teatro Olodum é filho ou neto de uma experiência maravilhosa que aconteceu no Brasil nos anos 1940: o Teatro Experimental do Negro (TEN). Quando o intelectual Abdias do Nascimento (rapaz, existem intelectuais negros aos montes, sabia?) fundou o TEN, esses questionamentos já estavam no ar.
A companhia teatral não levava em conta o gosto médio do público e atuou fortemente no nascimento do teatro moderno. Assim como no Bando, ali nasceram grandes nomes. Como um teatro de vanguarda, o TEN sofreu muitas vezes da incompreensão do público e das autoridades, e daquele “ismo” que não existe no Brasil. Mas sua iniciativa gerou repercussão e influenciou muita gente. Ainda na década de 1950, Solano Trindade funda seu Teatro Popular Brasileiro. Em São Paulo, grupos negros passam a estudar e encenar autores americanos. Até um segundo Teatro Experimental do Negro é criado por Geraldo Campos de Oliveira.
“você pode chamar a dona da casa?”
O surgimento do Bando, em Salvador, é fruto dos movimentos sociais locais, da força organizacional e inteligência do negro – que está presente há séculos no Brasil, seja na forma de revoltas como a dos Malês, seja nos terreiros de candomblé. E também nos passos dados nos palcos por pessoas como Ruth de Souza.
A força do Bando está também na linguagem própria que conseguiu criar. Em Cabaré da RRRRRaça, por exemplo, todos os estereótipos e situações constrangedoras decorrentes do racismo estão no palco. De uma forma nada sutil, tudo escancarado. Mas com humor. A peça sacode, faz pensar, coloca todos como vítimas e culpados. E faz rir. Muito.
No seu maior sucesso comercial, Ó paí, ó, o Bando mantém a crítica social e as denúncias de racismo. Nesse caso, elas são mais sutis, e o humor, mais escrachado. Mas mesmo quando foi adaptada para o cinema e a televisão, Ó paí, ó manteve a cara do Bando, literalmente. Muitos dos atores da série televisiva são parte do Bando de Teatro Olodum.
A arte do Bando pode ser vista também por crianças. Um dos seus mais belos espetáculos é uma peça infantil: Áfricas. Não África no singular, como uma coisa só, estereotipada. Mas as diferentes Áfricas que existem no continente ligado a nós por um oceano. Uma viagem na influência africana nos nossos costumes, no nosso dia a dia. Um espetáculo que mostra que não somos descendentes de escravos, mas de pessoas inteligentíssimas que foram escravizadas. Uma diferença que parece pequena, mas que é do tamanho do Brasil. Os termos que usamos, o nosso jeito, a nossa cara que veio de lá. O impacto visual da peça é impressionante. E o texto é essencial, em um país onde professores de escolas públicas ainda levam suas turmas ao Museu AfroBrasil, em São Paulo, para conhecer um pouco do “país da Copa”.
“Mocinha, a patroa está?”
A força do Brasil está na força do negro. E não somente na força física. O corpo negro já foi usado demais. Ele está lá, nos palcos, mas apenas como veículo para que inteligência e cultura sejam mostradas. Alguns de nossos antepassados europeus fizeram nossos antepassados africanos de objetos. Mas muitos desses “objetos” vinham de civilizações mais avançadas que as europeias. Rainhas, sacerdotes, ferreiros, artistas, pensadores, filósofos, generais. Quando o negro, seus orixás, voduns e inquices aportaram no Brasil como “dominados”, acabaram influenciando os “dominantes”. Até nas conversas diárias falamos “africano”. Do banto ao iorubá, do moleque caçula ao acarajé.
Em um país que não é racista, como o nosso, nem um pouquinho, nada racista, o nome Olodum gera preconceito. Vem a lembrança dos tambores do bloco afro, e as pessoas não imaginam que o Bando de Teatro Olodum possa fazer peças de alto nível artístico e intelectual. Mas uma das coisas mais inteligentes que o Bando de Chica Carelli, Márcio Meirelles, Zebrinha, Jarbas e os mais de 30 atores fizeram foi não abandonar o nome Olodum. Porque a força do tambor é, sim, uma das nossas forças. As batidas dos atabaques ancestrais uniram o povo negro, fazem parte do que o Brasil tem de melhor e não estão separadas de cultura e inteligência.
*Luiz Antônio é escritor. E negro, da mesma cor que Pierre Fatumbi Verger.