Tecnologia a favor dos migrantes
Aplicativos desenvolvidos sem a colaboração dos próprios migrantes, que coletam dados individuais de usuários e/ou não garantem a segurança desses dados podem pôr em risco populações que são vulneráveis não apenas a ataques xenofóbicos, como a mudanças políticas. Os migrantes temem que seus nomes sejam usados contra eles caso haja uma mudança radical na política migratória do país de destino.
Migrantes, solicitantes de refúgio e deslocados internos raramente dispõem de canais confiáveis de informação e comunicação. Chegar em um novo destino pode ser frustrante, e a tecnologia pode oferecer alívio. Como afirmou um migrante venezuelano na fronteira do Brasil, “ter uma conexão de celular não é só útil pelas aplicações práticas, como acessar informações ou determinar nossa localização – também serve para reforçar nossa dignidade”.
Uma vez no destino, mesmo migrantes com alta qualificação podem ter dificuldade em se adaptar a instituições, leis e costumes diferentes dos seus países de origem. Isso ocorre principalmente em sociedades altamente burocratizadas que exigem a posse ou a atualização de uma série de documentos para acessar serviços. Migrantes também sofrem com barreiras linguísticas, que vão desde expressões cotidianas até terminologias jurídicas.
A ampla disponibilidade de smartphones e o acesso à internet vêm gerando uma onda de otimismo com relação à capacidade das tecnologias de tornar as experiências migratórias mais seguras e humanas. Aplicativos de celular e bots que respondem perguntas frequentes podem facilitar o acesso à informação. O aplicativo DoNotPay, descrito pelo seu desenvolvedor como “o primeiro advogado-robô do mundo”, vem ajudando recém-chegados aos EUA e ao Canadá no preenchimento de solicitações de visto e, no Reino Unido, na obtenção de auxílio financeiro do governo.
Contudo as plataformas também têm limitações e acarretam riscos. Alguns analistas pedem cautela no crescente entusiasmo em torno de sua criação (“tecnoforia”). Surgem questões de privacidade, segurança e desigualdade.
As disparidades podem surgir quando desenvolvedores dão como certo o acesso à tecnologia. Muitas vezes, faltam aos migrantes equipamentos elementares como celulares e computadores, assim como planos de dados ou conexões de internet. Em Roraima, na fronteira entre Brasil e Venezuela, os pesquisadores do Instituto Igarapé se depararam com migrantes que haviam vendido os seus smartphones para financiar a travessia até o Brasil. Os que ainda não haviam sido vendidos eram simples, com o mínimo de memória, geralmente compartilhada entre múltiplas pessoas.
A maioria dos migrantes que possui celular não tem condições de pagar por um plano de dados. O acesso é limitado ou distribuído de forma desigual. Alguns campos de refugiados, abrigos e outras instalações para migrantes oferecem espaços exclusivos com wi-fi, mas estes geralmente são limitados. As áreas do entorno dessas instalações também costumam sofrer com a falta de infraestrutura adequada. Pacaraima, a cidade na fronteira entre Brasil e Venezuela que vem acolhendo a maioria dos venezuelanos, recebeu a primeira conexão 4G apenas em 2018.
Aplicativos desenvolvidos sem a colaboração dos próprios migrantes, que coletam dados individuais de usuários e/ou não garantem a segurança desses dados podem pôr em risco populações que são vulneráveis não apenas a ataques xenofóbicos, como a mudanças políticas. Os migrantes temem que seus nomes sejam usados contra eles caso haja uma mudança radical na política migratória do país de destino.
Novas tecnologias também podem ser usadas para disseminar notícias falsas sobre cidades de destino e para aliciar migrantes para o tráfico humano e o trabalho escravo. No Brasil, o processo de interiorização de migrantes, atualmente coordenado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) e pelas Forças Armadas do Brasil, vem enfrentando grandes obstáculos devido à disseminação de fake news sobre as cidades de destino oferecidas pelo programa. Em alguns casos, migrantes chegaram a desistir na data da viagem após terem recebido informações falsas sobre a nova cidade de residência através das redes sociais. Também ocorreram incidentes em que residentes do entorno utilizaram o livre acesso à internet e às mídias sociais para organizar ataques xenofóbicos contra migrantes.
Os riscos podem ser reduzidos. Desenvolvedores devem coletar dados apenas no nível agregado e garantir a integridade e a segurança de toda a informação coletada. Notícias falsas podem ser combatidas através de filtros qualitativos e atualizações das informações fornecidas. Para que produzam resultados, as inovações devem ser acompanhadas por medidas e políticas mais abrangentes. A tecnologia pode ser um facilitador, mas ela não é capaz de resolver todos os desafios. Para que riscos possam ser minimizados e os problemas dessas populações, efetivamente resolvidos, é necessária cautela especialmente através da incorporação das experiências, perspectivas e demandas dos próprios migrantes.
Essas foram lições tiradas das entrevistas e dos grupos de discussão com migrantes organizados pelo Instituto Igarapé, um think tank sediado no Rio de Janeiro. Com base nesses diálogos, o Igarapé desenvolveu o OKA, um aplicativo para celular gratuito que, uma vez baixado, não necessita de conexão de internet.Para proteger a privacidade dos usuários, o Igarapé não coleta dados individuais, embora analise padrões de uso com vistas a contribuir para o aprimoramento das políticas migratórias do Brasil e da região.
Por enquanto, o app também fornece informações sobre serviços a nível municipal e estadual no Rio de Janeiro e em Boa Vista, Roraima. O instituto vem trabalhando para levar o aplicativo para outros lugares do Brasil e da América do Sul. Para atender às necessidades dos migrantes de diferentes nacionalidades, o OKA está disponível em português, espanhol, francês e, em breve, inglês. Essas tecnologias não resolverão todos os problemas. Mas, se forem construídas com a participação dos migrantes, podem apontar o caminho de algumas soluções e garantir mais autonomia.
Adriana Erthal Abdenur é coordenadora da área de Paz e Segurança Internacional do Instituto Igarapé e Lycia Brasil é pesquisadora do Instituto Igarapé.