Televisão da compaixão
Em tempos de crise, a televisão não é apenas um meio de comunicação que traz informação. É também um palco onde se representam os principais atos da política. Na hora da compaixão e da vingança, discordâncias e diferenças não têm espaço no vídeoEric Klinenberg
Desde 11 de setembro de 2001, os norte-americanos passaram as noites contemplando, na tela da televisão, o desastre ocorrido em sua casa. Dezenas de vezes, viram e reviram, sob todos os ângulos, os aviões se chocando contra as torres do World Trade Center, as ruínas do Pentágono, a busca por sobreviventes, as bandeiras norte-americanas e as entrevistas em que se prometia vingança. Pela primeira vez em sua história, e durante quatro dias, as grandes redes de televisão difundiam informação continuamente, sem qualquer interrupção publicitária. No entanto, mais de uma semana depois do ataque, os norte-americanos, que haviam visto tudo, continuavam sem compreender muita coisa sobre o fato que acabava de abalar suas vidas.
A notícia espalhou-se muito rapidamente, nessa terça-feira 11 de setembro. Por volta das nove horas da manhã. Aviões seqüestrados. Dois explodem contra as torres do World Trade Center. Os edifícios em chamas. O Pentágono atingido por um terceiro avião. Um quarto cai na Pensilvânia, e destinava-se ao Congresso ou à Casa Branca. As “torres gêmeas” desabam ao vivo. Uma após a outra. As televisões apresentam esses fatos sem interrupção, procurando imprimir-lhes sua “marca”: “A América do Norte atacada”.
“Replay” de cenas “espetaculares”
No entanto, uma semana depois do ataque, os norte-americanos continuavam sem compreender muita coisa sobre o fato que acabava de abalar suas vidas
Todos os telespectadores se sentem sitiados e angustiados. Os boatos se multiplicam, divulgados em estado bruto, sem precauções. Não há tempo para verificar. Diz-se que um carro-bomba acaba de explodir diante do Departamento de Estado, que gases letais podem contaminar o ar de Manhattan; a Fox News antecipa um número de 20 mil mortos; edifícios oficiais e escolas são fechados, torres são evacuadas em Nova York, Chicago e Los Angeles; milhões de empregados voltam para casa correndo; o presidente Bush voa para local desconhecido.
Por toda parte, os norte-americanos se reúnem em frente de aparelhos de televisão. Logo disponíveis, as imagens desafiam a imaginação: vítimas perfeitamente identificáveis saltam no vazio, ao vivo. Outras, à espera de um socorro impossível, acenam desesperadas, antes de serem tragadas por uma fumaça negra. Os edifícios desmoronam… Não há refúgio algum contra a violência das imagens. Até as emissoras musicais (MTV), esportivas (ESPN) e de diversão (TNN) entram em rede. Durante vários dias, as televisões vão dividir suas transmissões entre um “replay” das cenas mais sinistramente espetaculares e um tratamento contínuo da informação. A maioria das emissoras chega até a acrescentar às imagens uma faixa-texto que amplia a excitação, relatando os últimos desdobramentos: “O sentimento anti-americano aumenta entre os muçulmanos radicais”; “Os europeus fazem três minutos de silêncio”; “a Wallmart vendeu mais de 300 mil bandeiras desde terça-feira”; “Powell: ?Os países que abrigam terroristas serão tratados como os terroristas?”…
Uma visão esquizofrênica na tela
Durante vários dias, as televisões iriam dividir suas transmissões entre o “replay” das cenas mais sinistramente espetaculares e a informação contínua
Em 13 de setembro, familiares e amigos das pessoas desaparecidas expressam sua emoção. Na NBC, uma psicóloga explica que os familiares das vítimas estão ao mesmo tempo “em estado de choque” e incapazes “de compreender o que acaba de acontecer com eles”. Isso não impede de explorar um pouco mais esse lado emocional. Os ouvintes da rede Fox são estimulados a continuar na escuta de uma hora de programa que incluirá “cerca de uma dúzia de reportagens ao vivo: teremos uma última avaliação da investigação no Pentágono e encontraremos alguns milhares de norte-americanos que ainda esperam que aqueles que lhes são caros tenham sobrevivido”.
Durante um dos espetáculos televisionados da CNN, pessoas em prantos desfilam diante das câmeras, tendo nas mãos a foto de parentes desaparecidos. Informam um número de telefone, suplicam que se entre em contato. “Deve ser difícil para o senhor e sua família”, diz um jornalista ao pai de uma moça de 28 anos dada como morta: “O que o senhor está sentindo?”
Tentando superar o horror, durante uma semana inteira os norte-americanos procurariam retomar o gosto pelas atividades do dia-a-dia. Dormem mal, trabalham pouco, têm medo. Mas, na televisão, o tom dominante não é de medo nem de dúvida. Os apresentadores e as autoridades políticas demonstram muita segurança, respondem com segurança a questões militares e diplomáticas. A tela, dividida em duas, transmite essa visão esquizofrênica que justapõe cenas de destruição e declarações de confiança. Os telespectadores, céticos quando o presidente Bush lhes anuncia que “os terroristas fracassaram”, aliam-se, no entanto, ao seu chamamento às armas.
A unidade pela radicalização
Durante um dos espetáculos televisionados da CNN, pessoas em prantos desfilam diante das câmeras, tendo nas mãos a foto de parentes desaparecidos
Em tempos de crise, a televisão não é apenas um meio de comunicação que traz informação. É também um palco onde são interpretados os principais atos da política, um palco utilizado pelas autoridades governamentais para se comunicarem tanto com os protagonistas, quanto com seus eleitores. “Pessoas como eu, que vão à televisão”, declarou um ex-diplomata ao New Yorker, “talvez desempenhem um papel necessário. Somos as vozes da autoridade explicando que tudo vai dar certo. Mas, na verdade, não sabemos de nada […]. O que me deixa mais furioso é que, graças a uma mistura de surpresa, de talento tático, de sorte e de um simbolismo totalmente excepcional, eles [os autores dos ataques] obtiveram um grande sucesso. Mas isso, eu não posso dizer no ar.” Nesse caso em particular, as autoridades não se permitiram, no entanto, dizer o que a maioria dos norte-americanos já sabia e esperava que fosse confirmado. Em vez de dissimular o que quer que seja e de tranqüilizar, o procedimento produziu um pouco de desconfiança e de distanciamento.
Em tempos de crise, discordâncias e diferenças são evitadas na televisão. Jornalistas e autoridades insistem na necessidade de unidade. Essa doutrina não escrita facilitou a transição rápida entre o reconhecimento da catástrofe e a declaração de guerra informal e consensual1. Alguns minutos depois do atentado, as autoridades norte-americanas o qualificaram de “ato de guerra”. Rapidamente a questão da pertinência de outras definições ? crime, por exemplo ? foi deixada de lado. Quando, no sábado 15 de setembro, o presidente Bush anunciou: “Foi declarada guerra aos Estados Unidos e nós responderemos à altura”, a televisão já havia preparado a opinião pública para essa avaliação. Até um jornalista considerado progressista, como Juan Williams, opinou que a única escolha possível era entre a utilização pelos Estados Unidos de mísseis nucleares táticos ou de armas mais convencionais (e ele preferia a primeira opção). Quase nunca foi levantada a hipótese de aprofundar a discussão antes de eventuais respostas diplomáticas, ou não militares. Foram raras as reflexões sobre o problema de “declarar guerra” a uma rede, e não a um Estado.
O “salvador do mundo”
“O que o senhor está sentindo?”, perguntou um jornalista da CNN ao pai de uma moça de 28 anos, dada como morta
Por outro lado, a televisão foi pródiga nas exibições de fervor nacionalista e nas promessas de vingança, sobretudo quando estas tinham como autor o presidente Bush. O cientista político Michael Rogin enfatizou que o presidente Reagan havia governado usando, para se comunicar, os recursos de velhos roteiros cinematográficos2. Já o presidente Bush, também recorreu aos ganchos dos filmes de faroeste, anunciando por exemple que exigia que lhe entregassem Osama bin Laden “vivo ou morto” (Wanted, dead or alive). Frases desse tipo alimentam o novo discurso político; a retórica que divide o mundo entre “bons e maus” proíbe qualquer possibilidade de mediação e de conhecimento.
Na sexta-feira, 14 de setembro, Bush foi a Manhattan e apareceu no meio dos escombros. Reuniu em torno de si as equipes de resgate, usando um megafone: “Estou ouvindo vocês, o resto do mundo está ouvindo vocês e as pessoas que demoliram estes edifícios logo irão nos ouvir.” Todos retomaram então o grito que se tornou familiar nos Jogos Olímpicos: “USA! USA! USA!” Os editorialistas da televisão adoraram a cena. Na Fox TV, Fred Barnes a qualificou de “dia importante para o presidente Bush: foi magnífico; acho que Bush tornou-se de fato um presidente de guerra”. Morton Kondracke fez coro: “Bush é capaz de inspirar. Ele assumiu a dimensão de sua posição. A partir de agora, tem um objetivo em sua vida, o de salvar o mundo desta ameaça”.
A vitória jornalística do rádio
Em vez de dissimular o que quer que seja e de tranqüilizar, o procedimento da televisão produziu um pouco de desconfiança e de distanciamento
As condições das transmissões ao vivo explicam esse tipo de exagero. Comentaristas e jornalistas não estavam preparados para ocupar o vídeo muito mais do que o fazem habitualmente. Embora os repórteres de televisão digam muitas vezes que fariam um trabalho melhor se tivessem mais tempo disponível, mostraram seus limites muito depressa. Para que a audiência não se dispersasse muito, os produtores tiveram que prometer constantemente um “novo fato” ou “outras imagens surpreendentes”. Os telespectadores esperaram, passivamente, consumindo mil e uma vezes as mesmas imagens de aviões que se chocam, as mesmas cenas de pânico e de fuga. Esperando, relativamente frustrados, o inédito que lhes tinha sido prometido…
Ao contrário dos canais de televisão, as principais emissoras de rádio, como a National Public Radio, souberam interromper a cobertura ao vivo dos ataques e do socorro, e substituí-la por reportagens longas e minuciosamente preparadas sobre as principais questões levantadas pela crise. Sem se desligar do fato, esse tipo de análise permitiu que fossem questionadas as motivações dos atacantes (inclusive, mas não somente, sobre as motivações de Osama bin Laden), que fossem questionadas as eventuais conseqüências de uma operação militar, que se refletisse sobre o papel desempenhado pelos Estados Unidos nos países pobres, onde residem muitos dos terroristas. O que o rádio perdeu, em matéria de tratamento da notícia minuto a minuto, ganhou em profundidade. Não há nenhuma razão para que a televisão não possa fazer a mesma coisa.
A partir de 19 de setembro, centenas de veículos militares deixaram os Estados Unidos em direção ao Golfo. Represálias maciças pareciam inevitáveis. Os norte-americanos, em nome de quem serão travadas as próximas batalhas, não sabem quais são os alvos, nem quais são os objetivos da campanha. Têm uma única certeza: a próxima violência será televisionada. (Trad.: Regina Salgado Campos)
1 – Só uma parlam