Tempos modernos (versão hot line)
As tecnologias da informação e da comunicação significam bem mais freqüentemente fontes de intensificação do trabalho que de enriquecimento profissional. O tempo liberado graças ao trabalho na rede é absorvido por restrições cada vez mais fortesMartine Bulard
Internet, intranet, computador portátil e telefone celular: esse é o arsenal perfeito para o trabalhador plugado no seu tempo. Essa convergência inédita entre as telecomunicações e as redes de informática permitem trocar informações, compartilhar conhecimentos, comunicar-se de um ao outro canto do planeta ou simplesmente de um escritório a outro… Uma revolução que muda as relações entre os indivíduos e abala o modo de produção do valor e dos lucros. “Os bens trocados se tornam serviços”, explica o economista norte-americano Jeremy Rifkin, tomando o exemplo do telefone: antigamente, o aparelho era vendido com uma garantia de dois anos ao cliente. Hoje “se dá o aparelho (como brinde) se (o cliente) fizer uma assinatura para o serviço durante dois anos”.Ler, de Jeremy Rifkin, L’Age de l’accès, ed. La Découverte, Paris, 2000. Não é “o fim do trabalho”, que ele havia previsto há alguns anos, mas um transtorno de suas condições de exercício. Vendem-se competência e tecnologia, tanto quanto (às vezes mais) produtos. O universo quotidiano dos assalariados iria ficar, no fim, completamente de pernas para o ar.
De momento, as tecnologias da informação e da comunicação (as TIC, como são chamadas na França) significam bem mais freqüentemente fontes de intensificação do trabalho que de enriquecimento profissional. “As cadências de trabalho”, nota o Commissariat général du plan, “são cada vez mais restritas: longe de diminuir, o trabalho (por posto) aumenta.” [1] Este último fez até sua aparição em setores até então poupados: o número de assalariados do setor terciário com normas quantitativas a observar diariamente passou de 19%, em 1984, para 43% em 1998. O trabalho não é forçosamente menos qualificado. Pelo contrário. Na maior parte dos casos, exige conhecimentos múltiplos para dominar as novas ferramentas; uma maior capacidade de iniciativa para fazer face ao monte de informações a tratar. Mas o tempo liberado graças à automação de certas tarefas e ao trabalho na rede é literalmente absorvido por restrições cada vez mais fortes.
Criar laços com o cliente
De fato, precisa a socióloga Danièle Linhart, [2] que conduziu estudos na indústria, mas também nas grandes empresas de telefonia e nos centros de subvenções familiares, [3] “os empregados sofrem o impacto de duas lógicas incompatíveis: o apelo à responsabilidade e a submissão aos controles. Eles têm de resolver os problemas que se apresentam, fazer os diagnósticos de base, mas ficam submetidos à pressão temporal. As duas lógicas estão inscritas no trabalho e cabe aos assalariados tratar dessa contradição. Senão, tornam-se inempregáveis”. Isto é, vão para a ante-sala do desemprego.
Se a Internet não inventou o fenômeno, pelo menos acelerou-o. Com efeito, estes novos instrumentos de comunicação e de tratamento da informação permitem efetuar mais trabalho em menos tempo. Sua utilização exige competências polivalentes, iniciativa, trabalho em comum e tempo… principalmente para administrar os repetidos enguiços. Sua existência permite igualmente criar laços mais diretos, mais rápidos, com o cliente ou usuário. É necessário ainda que os empregados sejam numerosos, e suficientemente formados, para atender aos pedidos. É preciso ainda que tenham tempo para isso. “As pessoas quase sempre sofrem menos pelo que lhes é imposto”, precisa Danièle Linhart, “do que pelo que são impedidas de fazer.” As frustrações são mais vivas, e o stress mais forte, na medida em que os clientes exijam uma resposta, uma entrega ou um serviço num prazo mais curto. A tal ponto que a direção das empresas recorre cada vez mais raramente a ordens autoritárias. A pressão da clientela basta. Uma só palavra de ordem: é preciso re-a-gir. Todo o tempo e em qualquer lugar.
Operário vira “operador”
Desta forma, vemos desenhar-se uma “sociedade da urgência”, que força o parcelamento das tarefas, a instalação de horários atípicos, enfim toda a parafernália da flexibilidade. Entretanto, as mesmas tecnologias poderiam oferecer a possibilidade de trabalhar juntos, de levantar as paredes entre os diferentes serviços e ter uma visão mais global dos casos tratados. A famosa “horizontalidade” poderia dar um novo sentido ao trabalho. Mas isso pressupõe formar pessoas, rever a organização da empresa e reconsiderar os sistemas hierárquicos. Senão, é o fracasso.
Na década de 90, uma grande firma automobilística francesa mudou seu sistema de manutenção, alegando a vontade oficial de enriquecer as profissões. Certas funções antes reservadas a técnicos qualificados foram delegadas a operadores — novo nome dos operários — deixando tempo aos primeiros para fazer a prevenção e trabalhar para evitar as panes. “A possibilidade dos operadores intervirem em suas instalações (poderia) ser percebida como uma abertura para um domínio mais completo de seu trabalho”, nota Marie-Noëlle Picout, que faz o doutorado na Universidade de Evry e estudou o “sistema de manutenção ativa” deste grande grupo industrial. [4] No final, os profissionais da manutenção acabaram vivendo esta mutação como uma perda de identidade e não ganharam nenhum poder de intervenção em outros domínios (a escolha de equipamentos, por exemplo). Os operadores da produção enxergaram aí uma carga de trabalho suplementar, já que o corte entre as diferentes categorias ficou sempre muito nítido. E Marie-Noëlle Picout conclui: “As inovações assinalam menos uma superação da divisão taylorista do trabalho do que uma modificação das formas que esta toma.”
As “incertezas do comportamento”
A lógica taylorista leva em conta a elevação das competências e qualificações de pessoal, mas permanece profundamente ancorada. Marca também a concepção dos sistemas de tratamento da informação. Alguns programas permitem automatizar a leitura de documentos, e gerenciar seu fluxo, sem que os assalariados possam intervir, enquanto as redes permitem uma autonomia geográfica. Estes sistemas, nota a Agência Nacional para a Melhoria das Condições de Trabalho (ANACT), “têm conseqüências importantes ao mesmo tempo para o volume de postos e a proletarização das classes médias”. [5]
“Proletarização”: uma expressão que não viria espontaneamente à boca de Nadine Cussion, executiva de uma grande companhia de seguros, até agora convencida da necessidade dos avanços tecnológicos. Mas ela não está longe de pensar nela. Encarregada do setor de risco automobilístico, Nadine Cussion se acha desqualificada. “Eu me sinto canalizada”, desabafa. “Não tenho mais margem de manobra, enquanto antes podia discutir com os agentes sobre os destinos a dar a alguns casos ou sobre o tratamento de situações particulares.” São, justamente, as “incertezas do comportamento”, segundo os termos dos novos gurus da administração, que os sistemas automatizados e parcelados procuram reduzir.
Cada um por si…
As ordens continuam. A tela substitui o contato humano e acontece até — paradoxo dos paradoxos — que os empregados se sintam ainda mais isolados e separados por paredes que antes. Às vezes, é pela intranet, a rede interna, que eles ficam sabendo de seus novos objetivos de produção, mudanças nos eixos de trabalho, até modificações de processos de fabricação ou de organização das tarefas.
A informação chega a todo o mundo ao mesmo tempo. Mas ninguém mais participa das reuniões coletivas (excessivamente “cronófagas”, segundo a expressão preferida dos gerentes) nem do diálogo ao vivo que permitia dar a conhecer suas dúvidas ou problemas sem ser apontado com o dedo. Cada um deve se desdobrar sozinho para assimilar as mudanças. “A gente trabalha sem fios”, avalia um técnico de uma fábrica de automóveis. Antes, bastava conhecer a profissão. Hoje, é preciso desenvolver redes na empresa, saber onde procurar competências, continuar a se manter informado… O contato com os colegas das outras unidades de produção é facilitado. Pode-se mesmo fazer encomendas a empresas sub-contratadas chinesas sem problemas de fuso horário. Mas “é preciso agüentar fisicamente, intelectualmente, tecnicamente”.
Medo do “policiamento”
Yves Lasfargue, diretor dos centros de estudos e de formação para o acompanhamento das mudanças, resume a situação: “Não é porque se dispõe de mais dados que se tem mais conhecimento. As redes permitem, é claro, compartilhar os dados, mas não os saberes, por certo.” [6]
Que dizer, então, da adoção de programas de software de auto-avaliação por algumas grandes empresas, como, por exemplo, o Banco Popular ou a Siemens? Certos empregados vêem aí a oportunidade de fazer pressão sobre a hierarquia para obter (finalmente…) estágios de formação. Mas a maioria das pessoas entrevistadas receia o exercício. Têm medo de um “policiamento” por parte dos diretores. Estes se defendem. Mas as garantias são quase sempre muito formais. E a multiplicação de demissões por uso abusivo e pessoal da Internet prova que se pode, a qualquer momento, “entrar” em qualquer computador.
“Analfabetos” em informática
Os empregados entendem esses testes como uma pressão para obrigá-los a se adaptarem às novas exigências da diretoria. Para se adequarem à norma, alguns chegam até a se auto-instruir… fora das horas de trabalho. Segundo especialistas, atualmente 37% dos assalariados trabalham mais de seis horas e meia por semana em casa, com seu micro pessoal. O que faz Danièle Linhart dizer que “o trabalho tem o braço cada vez mais longo, atingindo até a esfera doméstica”. Além disso, sozinho frente à sua tela, o empregado pode, no fim do teste, se encontrar só diante de si mesmo, com resultados que não esperava. E pode sair dali profundamente deprimido.
Alguns ficam abatidos, sentem-se rejeitados, marginalizados, verdadeiros “analfabetos” das novas tecnologias. Em muitas empresas de serviços, já se constata uma ruptura tripla entre os trabalhadores: cultural, de geração e social. Os assalariados que não chegaram à etapa da micro-informática, por exemplo, são relegados à idade da pedra. Segundo a Association pour l’Emploi des Cadres, [7] 48% dos executivos franceses nunca navegou pela Internet.
Círculos concêntricos
O distanciamento com relação aos jovens, habituados à Internet e a uma informação mais fluida, aumenta muito rapidamente. Estes, aliás, têm uma visão muito diferente de suas carreiras. “Eles não são formatados como os mais velhos”, constata Eric Lhomme, que dirige o departamento de “recursos humanos” do escritório de consultoria Algoë. “Eles esperam ser logo reconhecidos, atingir logo níveis hierárquicos superiores e obter uma subida rápida em remuneração.” Pode-se sempre pagá-los em stock options, [8] mas a questão da “sua fidelidade à empresa” continua e, a partir de agora, é preciso “administrar a dualidade das carreiras dos executivos” dentro de uma mesma empresa. “O modelo habitual dos departamentos de recursos humanos (DRH) se acha, com isso, um pouco abalado.”
Aliás, é o conjunto das relações sociais que explode sob o golpe da globalização e da Internet. A empresa funciona cada vez mais em círculos concêntricos, com, no centro de tudo, empregados hiperqualificados (autônomos e móveis, com salários elevados e fundos de pensão); um pouco mais longe, os assalariados com qualificações julgadas úteis (com trabalho obrigatório, salário decente mas sem stock option); e na periferia, trabalhadores descartáveis (com horários flexíveis, pequenos salários e contratos temporários).
Fim dos direitos trabalhistas
Desse ponto de vista, os centros de tele-marketing (por telefone ou pela Internet) representam modelos quase perfeitos, em escala de um ramo de atividade. Tão simbólicos da Nova Economia quanto os “jovens brotos”, mas infinitamente menos badalados, esses centros conhecem um crescimento rápido (16% ao ano) e empregam 120 mil pessoas na França — um milhão na Europa. [9] Suas atividades vão da manutenção de sistemas de informática à venda de bens ou de serviços, da gestão de contas bancárias ao serviço de assistência técnica pós-venda. O espetáculo é quase sempre aflitivo: uma fileira de cabeças usando capacetes, prolongados por micro-antenas, mãos que se deslocam em grande velocidade sobre o teclado, olhos que passam das telas aos avisos luminosos que indicam o número de chamadas à espera, rostos tensos… Os tempos modernos em hot line…
A média de idade nessas empresas praticamente não ultrapassa os 25 anos e a rotatividade chega a 30% — um recorde que só a restauração rápida deve igualar! A maioria dos empregados é paga pelo número de chamadas recebidas ou de clientes ganhos. Alguns, com empregos terceirizados, fazem os plantões, mas são pagos por um centro de comunicações sem direitos trabalhistas dignos desse nome. A novidade destas profissões torna possível contornar leis sociais. Isso não impede os grandes grupos de escolher o deslocamento para lugares ainda mais vantajosos. A Air France, por exemplo, instalou seu centro de reservas em Dublin.
Qualidade e rapidez
Os empregados da companhia telefônica suíça Mobilzone podem até ter seu salário reduzido se os clientes conseguidos cancelarem a assinatura ou se mostrarem maus pagadores! [10] Os administradores chamam isso de clawback, [11] ou volta da manivela. Os empregados garantem os riscos da venda, os empregadores ficam com os lucros.
Na France Télécom, que é ao mesmo tempo a mais antiga e maior empresa nessa área, não existem práticas desse tipo. O estatuto geral do grupo, que atinge a maioria dos empregados, dá algumas garantias. Entretanto, como sublinha René Ollier, secretário-federal do sindicato SUD-PTT, as condições de trabalho continuam difíceis e as qualificações pouco reconhecidas. No serviço de assistência pós-venda, que atende os pedidos de informações técnicas e as queixas, os empregados “trabalham com um micro de softwares múltiplos, variando de acordo com os produtos, e atendem os clientes permanentemente. Sofrem um duplo stress: um, ligado ao cliente (nem sempre amável), e outro ligado à complexidade da máquina”. Além disso, ficam de olho fixo no contador de espera, que mostra o número de pessoas na linha. “Para o empregado, há um lado esquizofrênico: por um lado, a direção lhe pede qualidade (satisfação, fidelidade do cliente etc.), e por outro, rapidez. O que, muitas vezes é inconciliável.”
Questionando a hierarquia
Os executivos não são poupados. Com a lei sobre a redução do tempo de trabalho para 35 horas, eles têm que fazer o mesmo trabalho que antes em menos tempo (oficial). Com os novos instrumentos de comunicação, têm de estar disponíveis a todo momento. Cada mensagem mandada pela Internet é considerada recebida, enquanto que uma carta pode atrasar, um fax se perder no serviço, o telefone tocar no vazio. Em média, um executivo recebe 80 mensagens por dia. Se juntarmos as mensagens vocais, ele precisa de vinte a trinta minutos cada manhã para tomar conhecimento e selecionar as informações. E se não abrir sua caixa postal eletrônica, é culpado por antecipação. Uma tripla pressão: a da hierarquia direta, que considera que a ordem enviada é conhecida instantaneamente; a dos clientes, que pensam que a encomenda feita é recebida imediatamente; a dos subordinados, que não dão mais um passo sem “informar” seu chefe… o qual vai se encontrar desarmado em caso de erro, se não tiver lido a mensagem a tempo. Um esporte tão comum que, em certos escritórios se fala de “e-guarda-chuva”.
Estas práticas parecem bem mais desestabilizantes para os executivos que a circulação horizontal da informação, que poderia ameaçar sua autoridade. Logicamente, cada empregado pode, em princípio, ultrapassar seu superior e mandar suas propostas ou reivindicações ao nível mais alto da escala. Pode comentar, diante de todo mundo, uma decisão absurda. Mas o questionamento do papel da hierarquia por esses métodos parece bastante raro. O que ocorre com mais freqüência, aliás, é a diretoria solicitar essas intervenções, vendo aí a ocasião de se livrar de executivos muito antigos ou acelerar as mudanças de organização. O gabinete de consultoria Arthur Andersen, achando “a hierarquia de seus escritórios por vezes muito rígida e demasiado nacional”, utilizou plenamente este sistema. [12] “Ver um jovem associado, com menos de um ano de empresa, tomar literalmente a noção de horizontalidade e questionar publicamente a decisão de criar um comitê executivo a nível europeu”, explica Norbert Bexcker, diretor-associado do grupo para a Europa, “é ao mesmo tempo bem- vindo e mal tolerado pelos antigos”. São pontos de apoio para obter as modificações desejadas.
Informação instantânea
De resto, os DRH reconhecem que o momento mais “eficaz” para abrir foros de discussão é o das reestruturações. O que não deixa de lembrar Recursos Humanos, o filme de Laurent Cantet: pode-se instalar um questionário, argumentar, responder ao vivo às perguntas feitas pelos empregados… Bastante facilmente, inclusive porque os sindicatos quase nunca têm acesso.
Todavia, se a instituição sindical está ausente, os assalariados, aos quais não se pode proibir o correio eletrônico, não deixam de utilizá-la. Sindicatos como a CGT, a CFDT ou SUD vêem nisso um trunfo para a democracia, pois estas tecnologias interativas permitem informar instantaneamente uma ou outra decisão contestável numa empresa, analisar suas conseqüências, proporcionar uma troca de idéias para elaborar juntos os contra-ataques, ter a opinião do maior número durante as negociações… verdadeiros trunfos para os sindicatos. Ainda que ferramenta complementar da vida associativa e coletiva, a Internet “não pode, evidentemente, substituir os contatos pessoais, as reuniões coletivas”, observa Noël Lechat, da CGT. Principalmente porque quase sempre se trata de uma utilização não autorizada das redes internas, sendo as empresas proprietárias das caixas postais eletrônicas e podendo proibir o acesso a elas (leia o artigo “Greves pela rede” nesta edição).
O controle do conhecimento, de sua difusão e de suas aplicações torna-se uma das peças maiores em jogo, tanto nas relações sociais quanto econômicas. Os ferrolhos da propriedade continuam: aquele que possui a informação, possui o poder, e reciprocamente. Mas a informação não é uma mercadoria como as outras, pois difundindo-a, não nos separamos dela: quanto mais a compartilhamos, mais a enriquecemos; quanto mais a monopolizamos, mais a empobrecemos. [
Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde Diplomatique (França).