A sede e a vontade de beber da siderurgia
A totalidade do consumo de água da Ternium Brasil é de 570 bilhões de litros por ano. Uma pessoa nascida no estado do Rio de Janeiro consome, em média, 90,5 mil litros anualmente. Significa dizer que a empresa possui um consumo anual de água equivalente ao de uma cidade de 6,1 milhões de habitantes
Uma dose de minério de ferro, metade de carvão vegetal, um terço de coque e um aguaceiro. Quantos litros de água você acha que são necessários para produzir uma tonelada de aço? Desconfia de como fica a qualidade da água que volta ao ciclo natural? E, se não existe vida sem água, quantas delas são sacrificadas no processo? Quantas bocas secam, peixes morrem, torneiras deixam de pingar? E lá se vão as Marias, subindo e descendo o morro, com suas crianças no colo e latas d’água na cabeça. E lá se vão os Joãos, com os barcos no mar, anzóis nos ombros e baldes nos braços. Enquanto falta para muitos, jorra para uns poucos CNPJs.
A quantidade monumental de água consumida pela Ternium Brasil, antiga ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), na capital fluminense, é mais um dado da série de impactos ambientais, territoriais e das violações de direitos que marcam a história do complexo siderúrgico no bairro de Santa Cruz, na Baía de Sepetiba. Dados requeridos pelo Instituto Pacs ao Instituto Estadual do Ambiente (Inea) via Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11) revelam que, até 2021, somente a Ternium irá consumir o mesmo volume de água que 24,4 milhões de pessoas. Quando comparado à média nacional, o consumo da siderúrgica equivale ao de 10 milhões de brasileiros e brasileiras por ano.
No caso da Ternium as águas são do já super sugado Rio Paraíba do Sul, cuja nascente vem do estado de São Paulo, banhando Minas Gerais e Rio de Janeiro – onde tem parte do seu curso desviado no município de Barra do Piraí. As águas transpostas, quando encontram o Ribeirão das Lajes e, mais adiante, o Rio Santana, formam o Rio Guandu. A maior parte do volume que abastece a Região Metropolitana do Rio de Janeiro tem origem, portanto, no curso artificial do Paraíba do Sul.
A vazão utilizada para fins industriais em toda Bacia do Rio Paraíba do Sul equivale a cerca de 6 bilhões de litros por dia, segundo o Sistema de Informações Geográficas e Geoambientais da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul. O volume seria o suficiente para 24 milhões de pessoas em um ano. Este é o centro do complexo desafio de compatibilizar os múltiplos usos de um dos principais rios da Região Sudeste, que irriga boa parte da produção de aço do país. As decisões não agradam a todos que dependem diretamente de suas águas e os efeitos são visíveis na ponta.
É no canal de São Francisco, cerca de 15 km abaixo da Estação de Tratamento de Água do Rio Guandu, que o conflito pela água é mais intenso. Moradoras/es e pescadoras/es que dependem diretamente da quantidade e qualidade da água disputam o espaço em pé de desigualdade com grandes corporações industriais, localizadas às margens do canal, como a Ternium Brasil, a Gerdau, a Usina Termelétrica de Santa Cruz e a Fábrica Carioca de Catalisadores – que juntas compõem a Associação das Empresas do Distrito Industrial de Santa Cruz e adjacências (Aedin).
A sede do setor siderúrgico
Desde 1980, o Brasil figura na lista dos dez maiores produtores de aço no mundo, sendo, em 2015, o responsável por mais da metade da liga metálica na América Latina. No mesmo ano, foram produzidos 33 milhões de toneladas de aço, das quais 42% foram destinadas ao mercado externo. Com capacidade instalada de mais de 50 milhões de toneladas de aço bruto por ano, em um parque composto por trinta usinas, o ramo siderúrgico tem operado atualmente uma produção de 30 milhões de toneladas por ano. O saldo comercial gira em torno de US$ 3,9 bilhões com exportações para mais de cem países.
Enquanto são enviados para o exterior produtos semiacabados e de baixo valor agregado, por aqui nos restam 58,8 bilhões de toneladas de CO2, diversas usinas hidrelétricas e termelétricas responsáveis pela intensa utilização de energia do setor, 663 barragens de rejeitos minerais e inúmeras secas provocadas pelos vultosos volumes de água captados para garantir a produtividade.
O total de água doce circulada no processo de produção do setor, em 2015, foi de 5,4 trilhões de litros. Para efeitos comparativos, o consumo médio por pessoa no Brasil é de 56 mil litros por ano. Ou ainda, o total de água utilizada foi igual ao de um país com mais de 96 milhões de pessoas.
De toda produção nacional de aço, 88,5% é concentrada no Sudeste. Os estados mineiro e fluminense dividem a liderança da produção brasileira com 30,8% cada (61,6% de toda a produção nacional). No bairro de Santa Cruz, no Rio, se localiza a maior siderúrgica da América Latina, a Ternium Brasil.
Entre o copo e a água há outro tipo de laço (ou que aguaço é esse?)
Após comprar a TKCSA, em 2017, a Ternium aumentou em quase 50% a capacidade de produção da América Latina, que passou de 12 milhões para 17 milhões de toneladas de aço por ano. Considerada a maior usina siderúrgica na porção latino-americana do continente, a Ternium possui capacidade de produzir 5 milhões de toneladas por ano de aço semiacabado (lingotes, blocos ou tarugos e placas). Estima-se que o preço pago em uma tonelada de aço semiacabado seja de US$ 345. De outro lado, na água utilizada para produzir a liga – 1,5 bilhão de litros diários – a siderúrgica gasta algo em torno de R$ 2 milhões por ano. Ou seja, pouco mais de R$ 5 mil por dia por um dano socioambiental cuja extensão não é nada simples de calcular.
A Ternium responde por 16% da capacidade do setor nacional, contando com uma complexa planta industrial, um terminal ferroviário e um portuário. Seu tamanho não diz respeito apenas ao aparato físico, já que os impactos locais da siderúrgica seguem a mesma proporção. Para sua instalação foi necessário realizar uma dragagem na Baía de Sepetiba, desmatar 900 hectares de manguezal e desviar em noventa graus o Canal de São Fernando, localizado entre o Canal de São Francisco e o Guandu-Mirim. As medidas alteraram significativamente o microclima e a dinâmica hidrológica local-regional. Além disso, há emissões de material cancerígeno na atmosfera, casas impactadas pela linha férrea que transporta o minério da Vale S.A, zonas de exclusão de pesca, alagamentos ocasionados pela instalação da siderúrgica e água, muita água retirada do Rio Guandu.
De acordo com os dados públicos do Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos (SNIRH), em nome da Ternium Brasil estão registrados três pontos de captação e quatro de lançamento de efluentes outorgados pelo Inea, em setembro de 2017, com validade até o mesmo mês de 2021. Em 2016, a siderúrgica investiu, com as demais empresas do distrito industrial, na construção de uma estação de captação em Seropédica, conduzindo a água por cerca de 16 km através de uma adutora.
Merecem destaque os locais de lançamento de efluentes – águas tratadas pela siderúrgica – nos corpos hídricos por parte da Ternium. A Política Estadual de Recursos Hídricos (Lei nº 3239/1999) afirma que, para garantir a obrigatoriedade da qualidade do efluente tratado por qualquer indústria, o empreendimento é obrigado a lançar o material acima dos seus pontos de captação. No caso da Ternium Brasil, os efluentes não são lançados no mesmo corpo hídrico em que a água é captada e ainda se localizam abaixo de onde são retirados. A obrigatoriedade do lançamento dos efluentes ser acima dos pontos de captação tem relação com a necessidade de que a empresa trate a água que será posteriormente captada por ela mesma.
A estrutura de captação, tratamento e distribuição de água da siderúrgica se divide em dois sistemas gerais. O primeiro é destinado à refrigeração dos condensadores da Usina Termelétrica (UTE), cuja vazão outorgada corresponde a 1,45 bilhão de litros/dia. O segundo tem seu uso destinado aos sistemas de energia, às unidades de produção, de apoio à produção e administrativa da Usina de Placas, cuja vazão é de mais de 59 milhões de litros por dia.
Somando o volume anual de captação dos três pontos,[1] a totalidade do consumo de água da Ternium Brasil é de 570 bilhões de litros por ano. Uma pessoa nascida no estado do Rio de Janeiro consome, em média, 90,5 mil litros anualmente. Significa dizer que a empresa possui um consumo anual de água equivalente ao de uma cidade de 6,1 milhões de habitantes (a do Rio de Janeiro, por exemplo). O cenário é ainda pior quando consideramos todo o período outorgado (2017-2021). Em quatro anos de captação, a Ternium Brasil irá gastar um volume de água que poderia ser consumido por 24,4 milhões de pessoas, ou seja, 11,7% da população brasileira.
O caso da Ternium mostra que há uma desigualdade estrutural e política no acesso à água e também no valor pago por ela. Vale mais o aço que a água? O baixo preço pago – quando comparado ao volume anual de água sugada pela siderúrgica – é explicado a partir da Resolução Comitê Guandu nº 123/2016, que dispõe sobre a água captada por usinas térmicas localizadas na foz do Canal São Francisco. O Comitê Guandu é um órgão colegiado, de gestão “descentralizada e participativa” da bacia hidrográfica, integrante do Sistema Estadual de Gerenciamento e Recursos Hídricos. O grupo é composto por membros do poder público, da sociedade civil e de usuários, dentre os quais, a Ternium, a Fábrica Carioca de Catalisadores, a Furnas Centrais Elétricas S.A e a Firjan.
A resolução afirma que, a partir do fenômeno da intrusão salina da Baía de Sepetiba, a água captada para o resfriamento dos condensadores da UTE é classificada como salobra e imprópria para o consumo humano. Logo, é estabelecido que o valor pago para a retirada de mais de 500 bilhões de litros de água por ano deve se restringir a apenas 10% do valor nominal cobrado em função do volume total outorgado. A Ternium Brasil paga R$ 5.390,86 por dia para retirar 433,7 mil litros de água por segundo. Ao tornar a água um bem de valor econômico, a gestão do bem comum passa a ser regida pela lógica mercantil que considera os impactos ecológicos, territoriais e sociais como um fator externo aos cálculos.
A classificação da água como salobra pelo Comitê Guandu e o consequente abatimento no preço é uma das estratégias público-privadas de “enfrentamento à crise hídrica”. O pacote de medidas costuradas no interior dos órgãos ambientais do estado do Rio de Janeiro em favor da antiga TKCSA (atual Ternium Brasil) e das empresas do distrito industrial compreendia a construção da já mencionada adutora que liga o distrito à estação de captação em Seropédica, além da implantação paliativa de uma “soleira submersa”, estrutura hidráulica formada por estacas pranchas de metal para a contenção da água do mar.
A obra da “soleira submersa” recebeu autorização ambiental de emergência do Inea, sem prévia discussão com moradores e pescadores da baía de Sepetiba e, na prática, funcionou já desde as obras como uma barragem. Impediu o fluxo e a atividade dos pescadores, alterou o nível da água do mar, a velocidade das correntezas e a densidade do rio. A obra comprometeu a piracema, o ciclo natural de reprodução e desova dos peixes a partir da migração do mar para o rio.
O balanço hídrico – resultado da quantidade de água que entra e sai, por exemplo, de um rio, num determinado período – é fundamental para a realização do diagnóstico das bacias hidrográficas. No Canal de São Francisco, segundo dados disponíveis no Sistema de Informação Geográfica da Bacia Hidrográfica dos Rios Guandu, da Guarda e Guandu Mirim (Siga Web Guandu), o estágio do balanço hídrico é “muito crítico”. Isto permite supor que na foz do Rio Guandu o volume retirado é maior que a capacidade de oferta de água do próprio rio. Chega-se ao resultado quantitativo através da razão entre a vazão retirada para os usos consuntivos e a disponibilidade hídrica. Se o montante retirado é superior à capacidade de recarga dos corpos hídricos, haverá um coeficiente negativo na disponibilidade de água.
Não cabe, pois, a justificativa apontada pela Ternium Brasil para legitimar sua intervenção na Bacia Hidrográfica (BH) do Rio Guandu. A empresa afirma que a água é tratada e devolvida para os corpos hídricos dentro dos parâmetros normativos estabelecidos, quando retirar um volume desta magnitude implica, necessariamente, no impacto no balanço hídrico da bacia.
O caso da Ternium Brasil não é, pois, um fato atípico e isolado, mas deve ser analisado na medida de sua inserção nas redes de produção global e governança da água. É preciso compreender de onde, quando e de que forma se constituem os arranjos econômicos, políticos, jurídicos e institucionais que viabilizam esta forma hegemônica de conceber nossa relação com a água. Esta maneira dominante de ver e pensar é que viabiliza a exploração do bem comum, deixando veias abertas e disponíveis para seguirem sugando.
Crise hídrica? Para quem?
É na Conferência de Dublin, em 1992, como evento preparatório para a Eco-92, que se inicia o processo que garante a expansão do controle privado da água. A construção de um consenso da escassez é defendido e disseminado pelas principais hegemonias do sistema-mundo moderno-colonial, aliados ao Banco Mundial, ao Fundo Monetário Internacional, diversos fundos de investimento, ao capital financeiro e muitos outros organismos internacionais, intergovernamentais e ONGs.
Vale dar destaque ao papel das universidades e centros de pesquisa associados ao capital, que não só incorporam, mas ajudam a corroborar o discurso da escassez e consenso em torno dele. Essa diversidade de atores constitui uma rede de sustentação do projeto de poder que visa o controle da água, compreendida como recurso natural pelo capital. Tais atores disseminam as diretrizes que sustentam o consenso da falta e da crise, por meio de discursos tecnocratas.
O modelo de gestão pactuado globalmente e absorvido nos desenhos institucionais dos Estados-nação, dentre eles o Brasil e sua Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), se orienta em princípios gerais. Dentre os quais, aqueles que definem a água doce como recurso finito e vulnerável, razão pela qual lhe deve ser atribuído valor econômico como medida inibitória do desperdício. Escassez e mercantilização são inseparáveis, afinal, só o que é limitado tem valor de troca no mercado. Tais princípios convivem com o desenho de governança que insere institucionalmente os grandes usuários de água na gestão que descentraliza o poder do Estado e acaba centralizando o poder nas mãos das diversas frações do capital, legitimado sobre a falácia da abordagem participativa.
A elaboração da PNRH sacramentou as estratégias recomendadas pelo Banco Mundial. O discurso é o da necessidade de descentralização da gestão da água, retirando a centralidade do Estado que passa a ser dividida entre os estados da federação (através dos comitês de bacias hidrográficas e dos conselhos estaduais de recursos hídricos, instância máxima da hierarquia), a União (a partir do Conselho Nacional dos Recursos Hídricos), os setores usuários e a sociedade civil.
Os setores mais intensivos na superexploração da água (agronegócio, mineração, siderugia e bebidas alcóolicas) se organizam em entidades de classe construindo blocos de poder minuciosamente organizados de forma que seus interesses sejam abertamente defendidos. Multinacionais que compõem esses setores se articulam com fundos de investimentos, empresas de engenharia, escritórios de advocacia, instituições públicas e privadas de pesquisa, bancos nacionais e estrangeiros, grandes empresas do ramo das telecomunicações, entre outras. Essas entidades constroem capilaridade ocupando e centralizando os espaços de gestão, ora loteados por essas entidades de classe, ora por empresas associadas a elas. Dessa forma esses setores centralizam o controle e o poder sobre a gestão e a política de águas no Brasil.
Ancorados em pressupostos como neutralidade e em termos tão belos quanto vazios de significado a priori, como “democracia” e “participação”, este modelo de gestão oculta o que deveria ser óbvio: as tensões hídricas são processo e produto de disputas políticas e relações de poder. Ao optar por uma tecnocracia moderna e colonial, esvaziada de uma análise crítica ao modelo de desenvolvimento capitalista como vetor da crise hídrica, o modelo de gestão não só garante amparo legal e institucional aos novos negócios da água, mas viabiliza um estado de coisas que põe no indivíduo a culpa pela falaciosa escassez do líquido.
É urgente construir o consenso da abundância, que tem por dever desconstruir o ilusionismo da “crise hídrica”, difundido pelo setor privado e pelo Estado. Defender o princípio da abundância não significa negar a realidade de que, de fato, falta água para homens, mulheres e crianças. Após a natureza ser culpabilizada, dissemina-se o terrorismo hídrico por meio de custosas propagandas televisivas que culpabilizam os indivíduos pelo uso doméstico da água: “– diminua o tempo do seu banho!”, “– escove os dentes de torneira fechada!”, “– cada gota importa!”.
Os dados relativos ao consumo industrial de água no Rio Paraíba do Sul é três vezes maior ao que este rio oferece à população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a Ternium Brasil, sozinha, consome um volume de água que atenderia à população de toda a cidade do Rio de Janeiro. Portanto, não cabe a culpabilização do indivíduo, que se sustenta sobre uma falácia de crise hídrica, já que há profunda desigualdade política e estrutural no acesso a água. Se não há água, como pode haver tanto dela jorrando para determinados CNPJs?
*Pedro D’Andrea é integrante do Instituto Pacs e mestre em Geografia pela Uerj/FFP; e Bernardo Xavier é mestre em Direito Constitucional pela UFF.
[1] Denominados: Captação 01 – Usina CSA, Captação Termelétrica e Captação 02 – Usinca CSA (Bacia de captação conjunta da AEDIN).