Tirania da maioria na Câmara dos Deputados?
Resolução promulgada em 12 de maio limita o debate de forma geral e de diminuir a capacidade de intervenção da oposição
No último dia 12, a Câmara dos Deputados promulgou a Resolução 21/2021. O projeto foi aprovado por forte maioria de 337 votos contra 110, modificando mais de cinquenta dispositivos do regimento interno da casa que tratam de procedimentos comumente utilizados pela oposição para obstrução das votações: pedidos de adiamento e retirada de pauta, uso da tribuna para postergar votações, votação de matérias por partes, entre outros. Além de restringir direitos politicamente conquistados pela minoria, até então regimentalmente assegurados, o novo regimento altera elementos centrais do debate legislativo (tempo das sessões, qualidade da comunicação e do debate) e da deliberação das proposições (destaques e emendas aglutinativas).
Em primeiro lugar, a nova regra garante que as sessões deliberativas sejam realizadas ininterruptamente, com uma suspensão de no máximo uma hora. Antes da Resolução, as sessões ordinárias e extraordinárias tinham duração máxima de cinco e quatro horas, respectivamente. Encerrada uma sessão, outra precisava ser formalmente iniciada, o que garantia à oposição a possibilidade de novamente mobilizar o kit-obstrução utilizado na sessão anterior para postergar o processo de votação.
Em segundo, houve vedação aos discursos de oradores cujo pronunciamento segue em sentido inverso ao anunciado em sua inscrição; eliminação de uma tradição em vigor há trinta anos de conceder a palavra, antes das votações, por um minuto, a parlamentares previamente inscritos; limitação do tempo de encaminhamento de requerimentos diversos (retirada de pauta, adiamento de discussão ou de votação, destaque); redução do número de parlamentares com prerrogativa de orientar a votação desses requerimentos (antes tinham essa prerrogativa os autores das proposições e os líderes partidários, agora somente um orador favorável e outro contrário); impedimento ao pedido de adiamento de discussão se a matéria estiver com todos os pareceres emitidos, embora essa condição não seja usualmente atingida; impedimento à retirada de pauta de matéria cujo regime de urgência foi aprovado na mesma sessão; e, por fim, redução, no mínimo pela metade, do número de sessões constantes do requerimento de adiamento da discussão de proposições com diferentes regimes de tramitação.
No que toca à votação das matérias, também há mudanças significativas. Foram revogados dispositivos que previam a possibilidade de discussão e votação das matérias por partes específicas, tais como: capítulo, seção, artigo ou grupo de artigos. Os destaques geralmente feitos para votação em separado de trechos específicos das matérias sobre os quais não há acordo passam a ser prerrogativa exclusiva das bancadas partidárias, observada a proporcionalidade partidária. Uma bancada maior tem direito a mais destaques que uma menor. Destaques individuais (ou dito “simples”, aqueles apresentados por um parlamentar) só podem ser feitos se contarem com o acordo de todos os líderes partidários da Casa, o que, na prática, funciona como regra impeditiva. Além disso, a alteração mais significativa talvez seja a referente às emendas aglutinativas – que operam a fusão de emendas ou de parte do texto do projeto ou substitutivo com outras emendas. Agora, elas passam a ser apresentadas apenas por líderes que representem a maioria absoluta dos deputados – antes podiam ser apresentadas por um décimo dos membros da Casa ou Líderes e pelos autores das emendas objeto da fusão. Em outras palavras, as emendas aglutinativas não podem mais ser apresentadas pela minoria, tornaram-se instrumento da maioria.
Embora a Resolução trate de algumas questões regimentais aqui não mencionadas, as citadas acima produzem impacto mais significativo sobre a manifestação do contraditório na Câmara. No seu conjunto, todas elas, sem exceção, ou têm o efeito de limitar o debate de forma geral, centralizando ainda mais os trabalhos nas figuras dos líderes, ou de diminuir a capacidade de intervenção da oposição por meio da restrição do tempo de suas intervenções e dos mecanismos a seu dispor para a ação deliberativa. Tempo, inclusive, é recurso essencial em processos de negociação tanto para disseminar informações, quanto para alterar posições de barganha. O Regimento da Câmara, criado em 1989 para se adequar à Constituição Federal de 1988, instituiu regras que mantinham certo equilíbrio no jogo político, permitindo que a maioria deliberasse, sem restringir os poderes da minoria. Agora, com as novas regras, o desequilíbrio é flagrante. Estão eliminados importantes recursos protetivos e de barganha da minoria contra a maioria, essenciais ao funcionamento do sistema democrático e à própria efetividade da representação.
Os argumentos dos(as) 337 parlamentares que se posicionaram favoravelmente ao projeto – devendo-se lembrar que o chamado Centrão reúne hoje 322 parlamentares – são, à primeira vista, nobres: evitar a banalização do processo de obstrução e aumentar a produtividade da Câmara dos Deputados. A obstrução, no entanto, é recurso político legítimo, e a produtividade da Câmara, hoje expressivamente maior do que a de diversos países presidencialistas e parlamentaristas, vem aumentando progressivamente no país, fruto, inclusive, do maior protagonismo que a Casa vem assumindo no debate e na produção de políticas públicas nos últimos anos.
Os atuais beneficiários diretos das novas regras instituídas são os governistas, que ocupam a maioria dos assentos legislativos, ainda que elas não garantam fidelidade absoluta ao governo em toda e qualquer votação, dado que Bolsonaro tem dificuldade para formação de uma coalizão sólida e estável. Como era de se esperar, portanto, os líderes dos blocos da Minoria e da Oposição orientaram suas bancadas a votar contra o projeto. Assim também o fizeram os líderes dos seguintes partidos: PT, PSB, PDT, PSOL, PCdoB, PV e Rede, que fazem oposição à agenda do governo, embora uns, certamente, de forma mais sistemática que outros.
Na próxima legislatura, contudo, o cenário pode ser diferente – os que ora são governistas podem vir a enfrentar dificuldades semelhantes às que hoje impõem à minoria oposicionista. Não há, no entanto, impedimento para que o regimento possa vir a ser novamente alterado, sob a justificativa de que a experiência com as novas regras revelou desacertos mais do que benefícios. Resta saber se haverá uma nova maioria disposta a abrir mão do poder adicional que lhe foi conferido.
A eficácia imediata das novas medidas garante alento ao Planalto nesses quase dois anos que antecedem as eleições. Projetos de iniciativa do governo ou que sejam convergentes com sua agenda tendem a ser aprovados de forma mais ágil – resultado nada desprezível em cenário de crises econômica e sanitária, por um lado, e de aumento da desaprovação do governo e da taxa de rejeição à Bolsonaro, por outro. Candidato natural à reeleição, o presidente tende a aumentar os seus esforços para criar políticas que acenem para a população e para o mercado brasileiros. A Câmara dos Deputados, sob a presidência de Arthur Lira (aliado do governo), certamente contribui. Cabe ainda ressaltar que essa conjuntura torna o presidente mais dependente da Câmara dos Deputados, pois as novas regras, ao aumentarem o poder relativo da maioria, ampliam também o seu poder de barganha frente ao Executivo.
Não deve nos escapar a ironia desse tipo de mudança ser feita por muitos políticos e partidos que se declaram orgulhosamente liberais. O casamento do liberalismo com a democracia, que gerou o sistema representativo que hoje nos governa, é extremamente cuidadoso na preservação dos direitos da minoria se expressar e se proteger contra as ações e interesses da maioria. A “ditadura da maioria” foi sempre a grande inimiga da democracia liberal, seja ela vinda da esquerda ou da direita. Ao limitar o poder da maioria, quando ele exorbita, o liberalismo democrático pretende produzir maior estabilidade e previsibilidade no funcionamento de suas instituições. A reforma do regimento da Câmara dos Deputados atenta contra essa estabilidade, ao expor a nossa democracia aos excessos do majoritarismo, e isso em período marcado por conflito político, quando as instituições deveriam, mais do que nunca, exercer seu papel mitigador.
Debora Gershon é cientista política, doutora (IESP/UERJ) e mestre em Ciência Política (Iuperj), com pós-doutorado pela University of California, San Diego (UCSD), e pesquisadora do Observatório Legislativo Brasileiro (OLB).
João Feres Júnior é professor associado do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj), doutor em Ciência Política pela City University of New York, Graduate Center, e coordenador do Observatório Legislativo Brasileiro, núcleo de pesquisa do Iesp/Uerj.