‘Todo mundo tem mãe, Catarina’ e as verdades que se dissolvem
Romance de estreia de Carla Guerson apresenta menina em meio a perdas e respostas difíceis de digerir
“Uma falta absoluta de tudo que me deixa sem saber como é que costura esse monte de ausência”. Talvez essa frase da protagonista de Todo mundo tem mãe, Catarina seja a que mais se aproxima de sintetizar o que acontece com a personagem do delicado romance de estreia de Carla Guerson, publicado pela Reformatório.
Catarina é uma criança em meio a um turbilhão de pensamentos, sensações e, principalmente, descobertas. A primeira delas é a que dá título ao livro. Durante uma aula, a professora pede para que os alunos desenhem suas mães, o que causa na menina um estranhamento. Poderia desenhar a avó, já que não tem mãe? Mas todo mundo tem mãe, Catarina! A constatação, a princípio óbvia, provoca uma epifania.
A partir daí, a garota passa a ter interesse em saber mais e mais sobre Suzana, a mulher que morreu pouco depois de dar à luz à Catarina. Para isso, recorre a conversas com a avó, perguntas aos vizinhos e até mesmo à tentativa de decifrar algo escondido em algum canto da única foto de sua mãe. Seu cúmplice no trabalho investigativo é Gustavo, o melhor amigo e um grande entusiasta de fofocas em geral.
Entre novidades e pistas falsas, Catarina sai da infância e entra na adolescência, descobre o falso moralismo da igreja, a doença da avó e que “choro é coisa que a gente começa e vicia”.
Suas poucas certezas rapidamente se transformam em dúvidas. Percebe que o moço da borracharia pode ser seu pai e que talvez sua mãe não esteja morta nem se chame Suzana. Pode ser que a avó tenha muitos segredos e que Gustavo seja mais que um amigo e que sexo seja algo incrivelmente bom e que ser mulher seja ainda mais difícil do que lhe disseram.
As reviravoltas bem planejadas e a linguagem ágil e poética de Carla Guerson levam leitores e leitoras a um envolvimento profundo com a narrativa e, sobretudo, com sua protagonista. Há aqui um mérito da autora que deve ser evidenciado, justamente porque passa por algo que tende a ser esquecido, mesmo por grandes escritores e escritoras: a importância de construir personagens que são gente de verdade.
O que quero dizer é que muitas vezes as páginas dos livros são preenchidas por personagens que basicamente pensam, falam e agem. Mas, na vida real, as pessoas são muito mais complexas. Elas têm hobbies, preferências, anseios, rituais, mecanismos de defesa e todo o resto. Por isso, nos aproximamos ainda mais de Catarina quando a acompanhamos de perto e descobrimos que ela assiste O Clone e gosta do cheiro de Monange.
Aliás, não é exagero dizer que essa protagonista é uma das mais interessantes entre as que surgiram na literatura brasileira nos últimos anos. No entanto, a personagem está longe de ser o único ponto alto do livro. A história é original, o ritmo é envolvente e a ambientação é construída com cuidado.
Não por acaso, Carla Guerson – autora de O som do tapa (Patuá) e de Fogo de Palha (Pedregulho) – tem se mostrado uma das vozes mais potentes e autênticas da nova literatura brasileira, ao transitar por diferentes gêneros com sensibilidade, técnica e preocupação com temas sociais, especialmente aqueles que permeiam as violências sofridas pelas mulheres.
Todo mundo tem mãe, Catarina apresenta uma narrativa fluída e uma trama em que a protagonista se vê forçada a costurar toda a ausência despejada abruptamente em seu colo. Um livro que presenteia leitores e leitoras com “uma narradora menina, mas que é tão imensa que entra, sem dúvida, para um restrito rol de personagens inesquecíveis”, como pontuou a escritora Marcela Dantés no texto de orelha.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá) e “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique Brasil, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.