Todos cidadãos transatlânticos?
Numa ficção científica instigante, Régis Debray imagina a criação dos Estados Unidos Ocidentais, resultado da incorporação da Europa aos EUABernard Cassen
O sucesso do último livro de Régis Debray, L?Edit de Caracalla, deve-se mais à propagação direta do que à atenção dos meios de comunicação. Nada de surpreendente nisso, já que estes últimos, segundo o autor, se situariam naquela “esfera pós-moderna para a qual tudo o que não for padronizado ou etiquetado como ultra-Atlântico é qualificado de ?bolorento?, ?quadrado? ou ?fascista?, e que estabelece a norma do tolerável e do insuportável, do importante e do grotesco”. Efetivamente, seria fácil catalogar este texto na categoria do “insuportável”, considerando o que revela do não-dito, do não-definido por uma postura das elites – não exclusivamente as da mídia – já tão bem analisada em 1925 por Paul Valéry, que dizia que “a Europa visivelmente aspira a ser governada por uma comissão norte-americana”.
L?Edit de Caracalla propõe-se ser a tradução de uma longa carta, escrita em inglês a Debray, pouco após o 11 de setembro, por seu ex-condiscípulo Xavier de C***, funcionário de alto escalão que transita nas áreas da diplomacia, da defesa e dos serviços secretos. Por que em inglês? Simplesmente porque o interessado resolveu ir fundo na lógica do “Somos todos norte-americanos”: não hesitou em adquirir cidadania norte-americana, aspiração de todos os “sem-passaporte-norte-americano” que desejam, sem o confessar, a “regularização” e que abundam entre os principais dirigentes franceses e europeus1. Essa opção, surpreendente à primeira vista para um homem com esse perfil, nada deve à emoção mas, sim, à realpolitik. Pretende ser a pré-representação personificada de um projeto histórico: a criação dos Estados Unidos Ocidentais (EUO), fusão da Europa e Estados Unidos mediante uma direção única – a de Washington, no futuro previsível – para formar um império que garantirá “a comunidade de destino das sociedades liberais fragilizadas” pela escalada do islamismo e da China. Uma maneira de “passar do status de americanizado de segunda classe para o de norte-americano integral”, já que “a americanidade é um fato consumado, a cidadania transatlântica, um direito a ser conquistado”.
Só “mais uma bandeira…”
A França, por ser – equivocadamente, segundo o autor – considerada recalcitrante à liderança de Washington, deverá fazer os gestos simbólicos e políticos indispensáveis
Mas a vitória não está garantida, pois é necessário convencer ambas as partes do interesse dessa nova configuração geopolítica. Xavier de C*** empenha-se na tarefa, desenvolvendo dois argumentos: o primeiro, destinado ao presidente dos Estados Unidos e o segundo ao presidente da Comissão Européia. Ao primeiro, convidado a tornar-se o imperador Caracalla do século XXI 2, ele pondera que “a chegada de duzentos ou trezentos milhões de europeus da gema, cristãos de pele clara, herdeiros dos Pilgrim Fathers norte-americanos, iria corrigir, evitar os desvios de vossos valores primeiros, estabilizar vossa identidade perturbada”. E que George Bush não tema por maus espíritos: “Em nossos meios intelectuais e artísticos, especialmente na França e na Itália, a bandeira das estrelas encontrará uma fidelidade entusiástica, pouco comum em vossos campi universitários.”
Felizmente, a tarefa parece mais fácil no Velho Continente, pois ainda que exista uma certa reflexão européia, o reflexo propriamente dito já é norte-americano – e, no final, não são as razões do coração que contam? No entanto, os cinqüenta anos de construção comunitária não terão sido em vão: constituem um excelente preâmbulo, uma “peneira de desnacionalização” que tornará quase indolor a absorção pelos EUO. A França, por ser – equivocadamente, segundo o autor – considerada recalcitrante à liderança de Washington, deverá fazer os gestos simbólicos e jurídicos indispensáveis “antes e melhor que seus vizinhos”. Aos impertinentes e outros “embolorados” será lembrado que, no império, haverá sempre diversas maneiras de ser euro-americano, não sendo assim tantas as condições necessárias para fazê-lo: “Mais uma bandeira para pôr atrás da mesa, o hino nacional para as festas locais, uma simples permuta de mensagens em francês e inglês nos vôos da Air France.”
No posfácio, onde é narrada a excepcional carreira de Xavier de C***, morto – por engano, ainda por cima – a serviço de sua nova pátria algures na Ásia Central, Régis Debray afirma estar “colocando, com as devidas medidas de antecipação, a questão-chave do futuro século, uma vez dissipada a euforia da ?ilusão? européia”. Um auto-elogio que se perdoará facilmente ao autor – autêntico desafio lançado a uma Europa que ainda deverá provar que pensa ser européia.
(Trad.: Jô Amado)
L?Edit de Caracalla ou plaidoyer pour les Etats-Unis d?Occident, de Xavier de C***, traduzido do inglês (americano) e seguido por um epitáfio por Régis Debray, ed. Fayard, Paris, 2002, 138 páginas, 10 euros (24,50 reais)
1 – Ler, de Bernard Cassen, “A língua do dólar”, Le Monde diplomatique, maio de 2000.
2 – No ano 212 da nossa era, o imperador Caracalla – por sinal, uma personagem brutal e sinistra – teve a ge
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.