Tráfico, guerras e despenalização
Racismo, xenofobia, negócios e moralismo são as raízes da atual conjuntura proibicionista. As drogas – que sempre fizeram parte da cultura humana – foram divididas em lícitas e ilícitas
Na passagem do século XIX para o século XX, drogas como a maconha, a cocaína e a heroína não eram proibidas. Ao contrário, elas eram produzidas e vendidas livremente ou com muito pouco controle. No entanto, passaram a ser alvo de uma cruzada puritana, levada adiante por agremiações religiosas e cívicas dedicadas a fazer lobby pela proibição. Nos Estados Unidos, as campanhas contra certas drogas psicoativas foram, desde o início, mescladas a preconceitos, racismo e xenofobia. Drogas passaram a ser associadas a grupos sociais e minorias, considerados perigosos pela população branca e protestante, majoritária no país: mexicanos eram relacionados à maconha; o ópio vinculado aos chineses; a cocaína aos negros; e o álcool aos irlandeses.1 Esta última, aliás, foi a primeira droga amplamente visada pelos proibicionistas americanos. E com sucesso: em 1919, eles conseguiram aprovar a Lei Seca, que proibia toda a economia do álcool no país (produção, distribuição, venda, consumo, importação e exportação). Pela sua abrangência e intenções, a Lei Seca é considerada o paradigma do proibicionismo: a meta de extinguir completamente das práticas sociais uma substância psicoativa e os hábitos relacionados a ela. Extirpar o vício.
Quando a Lei Seca foi aprovada, a movimentação internacional proibicionista tinha dado seus passos iniciais. Em 1909, aconteceu em Xangai, China, a primeira conferência internacional para discutir o controle de drogas, mais especificamente do ópio e seus derivados (como a morfina e a heroína). Cedendo a pressões dos EUA, países como o Reino Unido, França, Alemanha e Holanda, cujas empresas coloniais lucravam muito com o comércio de ópio, comprometeram-se vagamente a limitar seu negócio. Apesar de pouco objetiva, a conferência foi o primeiro de uma série de encontros diplomáticos que aprofundaram as limitações probicionistas, até que, em 1961, a Convenção Única da ONU (Organização das Nações Unidas) universalizou o proibicionismo2 Esse tratado consolidou o modo de lidar com psicoativos ilegais – e as pessoas envolvidas com eles – que, em linhas gerais, perdura até hoje: apenas as drogas com uso médico comprovado poderiam ser legais. Logo, todos os outros fins relacionados às sensações derivadas de estados alterados de consciência deveriam ser proibidos, e as pessoas relacionadas a eles, punidas.
A produção de criminosos
Muitos criminosos foram fruto da proibição: produtores, negociantes e consumidores de drogas foram lançados na ilegalidade. A utopia proibicionista apostou que, combinando leis punitivas com repressão policial, eliminaria hábitos relacionados a drogas que eram, muitas vezes, seculares. Não conseguiu. Ao contrário, abriu um campo de ilegalidade que apenas cresceu nas décadas de vigência da proibição. Há alguns anos, foi veiculada no Brasil uma campanha que acusava o usuário de financiar o tráfico. No entanto, o consumo de psicoativos existia antes da proibição e continuou sob ela, só que um mercado inteiro passou à ilegalidade e, com isso, inúmeras pessoas, com seus hábitos e negócios, tornaram-se criminosas. O mercado de drogas não foi eliminado por decreto nem por repressão. Assim, o que financia o tráfico de drogas não é o usuário, mas a proibição.
Na busca por extinguir perigos para a sociedade, a proibição acabou por criminalizar condutas, mas nem todos, na prática, são alvos da lei. Seletivamente, a maioria dos novos criminosos foi encontrada entre as classes pobres (negros, nordestinos, mexicanos etc.) e entre subversivos (contestadores, hippies, artistas e “desajustados”). Nos Estados Unidos, a maioria dos presos por crimes relacionados a drogas é negra ou hispânica, apesar de ambos os grupos serem minorias no país3 Uma pesquisa nos dados prisionais brasileiros revelaria algo similar, com negros, mulatos, favelados e migrantes sem dinheiro. Quase todos muito novos.
Jovens pobres são convocados pelos chamados partidos ou comandos do crime como soldados e aspirantes a chefetes efêmeros. Jovens pobres se alistam como soldados das forças policiais e almejam ingressar em tropas de elite para lutar contra o narcotráfico. Na guerra cotidiana entre polícia e traficantes, e entre grupos rivais do tráfico, pessoas vão sendo eliminadas com balas certeiras e perdidas. Ou são detidas para − estigmatizadas e marcadas − dificilmente deixar a prisão um dia, mesmo se forem soltas ou fugirem.
Uma guerra na guerra
Em 1972, o presidente Richard Nixon declarou guerra às drogas, consideradas por ele uma ameaça à segurança nacional americana. A partir de então, os EUA se identificavam como um país consumidor de drogas produzidas em outros lugares e que, por causa disso, tinha o direito de defender suas fronteiras e, quando necessário, atacar as fontes dessas substâncias. Ainda que essa divisão estanque entre países produtores e países consumidores não tenha se sustentado diante das evidências (maconha cultivada nos EUA e no Canadá, drogas sintéticas produzidas nesses dois países e também na Europa), a lógica da war on drugs complementou o proibicionismo diplomático já consolidado.4
Como numa efetiva guerra, os Estados Unidos investem, há quase 40 anos, na militarização do combate ao narcotráfico. Desde as ações bélicas americanas nos Andes, na década de 1980, passando pelo Plano Colômbia, lançado em 1999, até à recente Iniciativa Mérida – versão mexicana do plano colombiano, iniciada em 2008 –, bilhões de dólares têm sido destinados para o combate militar ao narcotráfico. E, ainda assim, o mercado ilícito de drogas não deixou de se adaptar e expandir.
Desse modo, a guerra às drogas, alçada à posição de questão geopolítica crucial neste início do século XXI, se apresenta infindável em sua violência e muito interessante para potencializar negócios: a indústria bélica vende para os dois lados (traficantes e forças de segurança); as indústrias químicas, idem (por exemplo, precursores para a fabricação de psicoativos e desfolhantes para fumegar plantações de coca); as empresas de segurança privada protegem criminosos e oleodutos, enquanto os bancos lavam dinheiro. O combate ao narcotráfico se constituiu como uma guerra em muitas: em viela
s, favelas, fronteiras e através das fronteiras. E quanto mais se aposta na utopia proibicionista, mais rentável e interminável a guerra às drogas tem se mostrado.
Reformar ou ousar?
Diante da constatação de que a guerra às drogas não alcançou seu objetivo declarado, especialistas, autoridades e personalidades públicas passaram a defender a reforma do proibicionismo. A partir dos anos 1980, por exemplo, liberais como o economista Milton Friedman e os editores da revista The Economist retomaram argumentos utilitaristas para afirmar que o uso de drogas não era o ideal, mas que a proibição era pior pelos custos que gerava (em violência, dinheiro e violação das liberdades individuais). A ilegalidade apenas produzia criminalidade e descontrole (de uso e de mercado). Então, a melhor maneira de controlar as drogas seria legalizando-as. Com isso, o grande mercado ilícito seria suprimido, empresas legais poderiam se dedicar ao negócio, o direito dos consumidores seria respeitado e os impostos gerados com a tributação serviriam para financiar campanhas de conscientização contra as drogas e para tratamento de adictos.
Friedman e a The Economist defenderam a legalização de todas as drogas ilícitas. Hoje, personalidades como os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Ernesto Zedillo (México) defendem a descriminalização do uso das chamadas “drogas leves”, principalmente da maconha. Descriminalizar o uso significa não tratar o usuário como criminoso, o que não implica “deixá-lo livre”: ao ser considerado “usuário”, o indivíduo passa a ser capturado por um circuito de penas alternativas (prestação de serviços à comunidade ou, até mesmo, tratamento médico compulsório). Para os traficantes permanece a punição prisional, e para as drogas, mantém-se a proibição.
Tanto os argumentos liberais quanto tais discursos a favor da descriminalização não são apologistas das drogas. Pelo contrário, consideram os psicoativos nocivos e indesejáveis. Dessa forma, poderíamos dizer que, em geral, esses pontos de vista são desfavoráveis ao consumo, mas consideram o proibicionismo um modo pouco eficaz para controlá-lo. Seus defensores argumentam que seria preciso considerar as drogas como um problema de saúde pública e não de segurança pública.
Nesse sentido, a nova lei brasileira sobre drogas – aprovada em 2006 e que segue proibicionista – estabelece que a quantidade de droga flagrada com alguém determinaria se a pessoa é “usuária” ou “traficante”. Como essa lei não define esses números, no dia-a-dia fica a cargo dos policiais e do delegado registrar a categoria. Nessa brecha, segue a prática da seletividade penal, marcando a diferença social e de cor entre “usuários” e “traficantes”. Hoje, é provável que aquele que não se enquadre no estereótipo de “usuário” ou “traficante” não tenha problemas com a polícia. Para quem não tem essa sorte ou recursos (para eventuais subornos ou advogados), o proibicionismo funciona. E funciona seletivamente, sustentando a violência e grandes negócios.
Saber que a proibição se estruturou historicamente a partir de camadas de moralismo, racismo, seletividade penal e preocupação com a saúde pública é fundamental para que o debate sobre as drogas seja problematizado, evitando as polêmicas estéreis e sensacionalistas que geralmente dominam a discussão. É importante para que se tenha em mente que passos estratégicos podem ser dados para enfrentar o proibicionismo, sem considerar propostas de legalização ou de descriminalização do uso como panaceias progressistas deslocadas das práticas sociais e históricas em que se inscrevem.
O psiquiatra americano Thomas Szasz provocou discussão ao afirmar que a verdadeira legalização das drogas aconteceu quando substâncias que não eram reguladas pelo direito passaram a sê-lo diretamente pela via da proibição.5 As bases mais elementares do proibicionismo – moralismo, racismo, defesa de uma certa saúde universal – não são abaladas por propostas de legalização para o mercado ou descriminalização que mantém a proibição. Seria então o caso de tentar um deslocamento, uma mudança de ângulo, reparando nos argumentos dos abolicionistas penais, como o jurista holandês Louk Hulsman, que diante do excesso de penalizações e soluções pretensamente universais, nos convidou a pensar fora do campo penal, despenalizando condutas e situações para encontrar encaminhamentos singulares que solucionem situações particulares, utilizando, por exemplo, recursos do direito civil, como a conciliação e as compensações6.
O filósofo Michel Foucault afirmou que o frustrava que “sempre o problema das drogas seja tratado em termos de liberdade ou proibição”. Isso, porque, segue Foucault, “as drogas são parte de nossa cultura. Da mesma forma que não podemos dizer que somos ‘contra’ a música, não podemos dizer que somos ‘contra’ as drogas”7.
A busca de soluções universais é o vício que aflige até mesmo sinceros críticos da proibição. E há traficantes de sonhos e propostas aos borbotões. No entanto, a tarefa de problematizar o proibicionismo e as propostas antiproibicionistas parece vital para que essa utopia punitiva não seja contraposta a outras soluções também pretensamente universais. Essa tarefa é incômoda, mas importante para mostrar como a proibição não é natural ou inevitável. Ela tem uma história política que é preciso conhecer para enfrentar.
*Thiago Rodrigues é professor credenciado do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, membro do Nu-Sol/PUC-SP e pesquisador associado ao NEST/UFF e GAPCon/Ucam. É coordenador licenciado do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (Fasm).