Traídos pelos fundos de pensão
Difundidos nos países anglo-saxões e tomando corpo nas outras regiões do ocidente, os fundos de pensão por capitalização deixam o poupador dependente da volatilidade do mercado financeiro e ameaçam destruir a aposentadoria públicaMartine Bulard
Para muitos, não foi apenas o sonho de fazer fortuna na Bolsa que se desfez, mas também a esperança de uma aposentadoria tranqüila. Maurice Jones, cidadão britânico e assalariado modelo, nos dá seu testemunho. Começou a trabalhar aos 16 anos, galgou com a força dos próprios punhos todos os escalões da hierarquia, a ponto de se tornar diretor da divisão de fiação do grupo têxtil Lister & Companhia. Contribuiu durante toda sua vida para o fundo de pensão da empresa. Entretanto, aos 64 anos, nem sonha mais em se aposentar: como ele próprio diz, precisa continuar a “trabalhar para unir as duas aspirações”1. A empresa faliu, levando de passagem o fundo de pensão que era ligado a ela; o dinheiro que poupou durante mais de 30 anos se evaporou. Ele não tem mais nada. “Quando acontece com a gente um coisa dessas, você só tem duas soluções – o suicídio ou a luta”. Ele escolheu a luta.
Digna Showers era assistente administrativa há 18 anos na Enron, nos Estados Unidos. Um belo dia de dezembro de 2001, fica sabendo que tem exatamente “meia-hora para fazer suas malas e partir”2. Ela perde, de uma só vez, seu emprego, sua assistência médica, seu seguro de vida e até mesmo seus direitos à aposentadoria, apesar de ter contribuído com cerca de 400 mil dólares para o fundo de pensão da empresa. O próprio Kenneth Lay, o patrão da Enron, embolsou cerca de 34 milhões de dólares antes de deixar a empresa, ao vender apenas seus estoques de ações. Digna Showers deverá se contentar com o prêmio do seguro-13.500 dólares, reembolsado pelo fundo público de garantia dos aposentados (Pension Benefit Guaranty Corp. – PBGP) . Este tipo de instituição não existe nem mesmo na Grã-Bretanha.
O poupador assume os riscos
Nos fundos com contribuição definida, poupador depende da empresa não quebrar. Nos fundos cotizados, ele depende das ações e das taxas de juros no momento da saída
Histórias como estas de Maurice Jones ou de Digna Showers são absolutamente comuns nos países onde a aposentadoria por capitalização goza de grande reputação (Estados Unidos, Grã Bretanha e Países Baixos, principalmente). Entretanto, até há pouco tempo, ela era apresentada como a solução miraculosa que deveria aportar segurança e prosperidade aos aposentados, diante de um sistema público de previdência em situação terminal, esmagado pelo choque demográfico. O balanço é inapelável.
É verdade que as situações nem sempre são tão dramáticas. O mais comum, na realidade, é que exista uma aposentadoria pública para limitar (um pouco) os estragos. Se a pensão de base só representa cerca de 20% do salário recebido enquanto se está em atividade na Grã-Bretanha, ela chega a 35% nos Estados Unidos e varia em torno de 40% para um casal dispondo do salário médio e até 70% para uma pessoa com salário mínimo nos Países Baixos. Ocorre que, para a maior parte dos assalariados destes países, suas futuras aposentadorias desabam ao mesmo tempo que os mercados financeiros.
O desnível já chega a proporções gigantescas: segundo o escritório de auditoria americana Watson Wyatt, o valor dos fundos de pensão regrediu em cerca de 2,8 bilhões de dólares no âmbito mundial, entre 1999 e 2002. Cerca de dez vezes o orçamento da França. O economista Christian E. Weller avalia que a perda para um orçamento familiar americano dispondo de fundos de pensão pode ser avaliado em 43% 3. E ainda não terminou.
Porém, na realidade, os assalariados não estão todos classificados na mesma amostra, pois os fundos nem sempre funcionam segundo os mesmos mecanismos. Para simplificar, podemos dizer que existem duas categorias: os fundos de pensão com contribuição definida e aqueles com cotizações definidas. Os primeiros asseguram ao cotizante uma renda cujo montante é garantido pelo empregador (muitas vezes 70% ou 75% do salário quando ativo). Para o poupador, o resultado é bastante próximo da aposentadoria pública, a diferença é que o dinheiro recolhido é empregado na Bolsa e às vezes em ações da empresa. Quando esta se afunda, ocorre a catástrofe. É o que ocorreu com a Enron. Nos fundos de pensão com cotizações definidas, o cotizante não tem garantia de nada. O que ele ganhará no final das contas depende inteiramente do nível das taxas de juros e das ações no momento de sua saída. Cabe, portanto, ao assalariado assumir todos os riscos.
Um ciclo vicioso
Estima-se que, na Europa, dez das mais importantes empresas cotadas correm o risco de terem um rombo nos fundos de pensão, que irá repercutir nos lucros, criando um ciclo vicioso
Nos dois casos a adesão a estes fundos é facultativa, mas somente os trabalhadores tendo emprego estável podem se beneficiar (ou seja um a cada dois assalariados norte-americanos do setor privado). Aqueles que só têm contratos a tempo determinado ou que trabalham em tempo parcial podem cotizar para uma conta individual de poupança. Mas, na maioria dos casos, eles não dispõem de recursos.
No início, os fundos de pensão com prestação definida, destinados a completar as aposentadorias públicas, eram os mais comuns. Nos Estados Unidos, 80% dos assalariados do setor público ainda estão cobertos por esse fundo, contra somente um quinto no setor privado. Os assalariados cotizam para estes fundos, os empregadores pagam sua cota (muitas vezes bem mais modestas) e o montante é empregado nos mercados financeiros.
Nos anos 90, as direções das empresas usaram o pretexto do boom da Bolsa para interromper a contribuição. Elas privilegiaram as aplicações em ações que rendiam ao menos 15% em média por ano, o que asseguraria uma duplicação das somas investidas em cinco anos, na pior das hipóteses. “Durante a bolha financeira”, explica Alistair Mc Creadie, analista da ABN Amro, “as companhias tomaram o dinheiro das cotizações para pagar os acionistas ou distribuir bônus. Hoje, elas contemplam o rombo gigante dos déficits”4. Os fundos de pensão das grandes indústrias automobilísticas, por exemplo, exibem déficits abissais: 14,5 bilhões de dólares para a Ford em 2002; 17 bilhões de dólares para a General Motors.
Na Europa, a Agência de avaliação de tendências Standar and Poor’s estima que dez das mais importantes empresas cotadas correm o risco de conhecer déficits importantes em seus fundos de aposentadoria, entre elas a gigante alemã Thyssem Krupp, as francesas Arcelor (ex-Usinor) ou a Michelin. Naturalmente estes rombos vão repercutir sobre os lucros exibidos que irão, portanto, se reduzir, o que deverá levar a uma nova queda nas corridas da Bolsa e, em consequência, a uma baixa dos rendimentos dos fundos de pensões, as quais levarão, por sua vez, a uma alta dos déficits, e assim por diante…
Miséria na terceira idade
Os assalariados pagam duas vezes: como cotizantes do fundo de aposentadoria que se encontra em falência, e como cotizantes do fundo de garantia pública.
Para enfrentar tal engrenagem algumas companhias, pura e simplesmente, se declaram em estado de falência. Nos Estados Unidos elas utilizam a lei de falência (e seu capítulo XI) para decidir uma “moratória” de suas dívidas sociais. Declarada a falência, é o Estado quem assume essas dívidas. No ano passado, o fundo americano de garantia PBGC teve que assumir 180 mil aposentados suplementares; ele passou de um excedente de 7,7 bilhões de dólares em 2001 para um déficit de 3,6 bilhões de dólares em setembro de 20025. Fala-se até em um rombo de 11 bilhões de dólares. No total, os assalariados pagam duas vezes: como cotizantes do fundo de aposentadoria que se encontra em falência, e como cotizantes do fundo de garantia pública.
Depois disso, a maior parte das empresas encerram seus fundos de pensão com prestação definidas e proíbem o acesso aos novos assalariados. Para o empregador, a vantagem é dupla: ele paga cotizações ainda menores, e transfere o risco para quem cotiza. Nos Estados Unidos o número de trabalhadores cobertos por um regime de aposentadoria com prestação definida passou de 43%, em 1975 para menos de 20%, em 20006. A evolução é similar na Grã Bretanha. Assim, a grande cadeia de distribuição Sainbury’s fala em uma alta de 7% de cotizações para todos7. Ainda na Grã-Bretanha o grupo Honda, que também encerrou seu fundo de pensão com prestação definida, quer retardar a idade de início da aposentadoria no grupo (de 60 anos para 62 anos) e abaixar os salários de 2,2% em média8. Por outro lado, os fundos de pensão querem que a idade da aposentadoria seja 70 anos e um auxílio do Estado para reforço de suas caixas.
Na realidade não é necessário nenhum decreto para modificar a idade para deixar a vida ativa: não tendo meios para parar de trabalhar, os assalariados permanecem em suas empresas tanto quanto podem ou encontram pequenos trabalhos. Cerca de um quarto (23%) da renda dos norte-americanos de mais de 65 anos provém do trabalho. Um a cada cinco britânicos de mais de 65 anos vive abaixo da linha da pobreza.
No resto da Europa, os fundos de pensão ainda não estão implantados tempo suficiente para conduzir a tais estragos. Mas eles surgiram por todos os lados – na Alemanha, somente 10% dos assalariados estão cobertos por planos de poupança com cotizações definidas; na Itália, eles são também 10%. Na Espanha o sistema combina fundos facultativos e fundos obrigatórios – os dois chegam a 45% da população.
Uma escalada perigosa
Agentes financeiros dos EUA militam pela criação, na Europa, de fundos de pensão capazes de comprar os ativos colocados no mercado para evitar a derrocada
Na França, a desventura dos “empréstimos russos” e dos bônus do tesouro desvalorizados do após guerra está gravada na memória coletiva e este tipo de colocação suscita muito mais aversão que entusiasmo. Para contornar o obstáculo Laurent Fabius tinha inventado a expressão mais apresentável de “poupança salarial”, com o objetivo mal camuflado de criar “fundos de pensão à francesa”. No início da confusão da Bolsa e em plena campanha eleitoral para presidência da República de abril de 2002, todos os candidatos – inclusive o do Front National – se declaravam pela criação de uma poupança-aposentadoria. Somente três dentre eles (Robert Hue, Olivier Besancenot e Jean-Pierre Chev?enement) declaravam sua oposição9.
O bom senso deveria jogar estes projetos no esquecimento. Mesmo o deputado François Cornut-Gentille, da União pela maioria presidencial, declara que parece “inoportuno falar de fundos de pensão quando a Bolsa se desmorona”10. Jean Pierre Raffarin fala pouco disso, mas os fundos de aposentadoria figuram com todas as letras em seus projetos. Sem ter necessidade de soar o clarim, ele pode se contentar em relançar os produtos financeiros existentes. Na verdade, por temer a aposentadoria com redução, aqueles que têm condições procuram se precaver11. Desde já as aplicações de seguro de vida aumentaram para atingir cerca de 730 bilhões de euros em 2000. Quase inexistente em fins dos anos 1980, a poupança salarial totaliza aproximadamente 55 bilhões de euros, enquanto os fundos de capitalização (tipo Préfon para a função pública) e os fundos de aposentadorias suplementares das empresas privadas (que se assemelham aos fundos de cotizações definidas) já monopolizam 120 bilhões de euros. Esta evolução é perigosa por mais de uma razão.
A questão demográfica permanece
Enquanto o regime pela capitalização, ligado à volatilidade dos mercados, não pode garantir segurança, o regime público, garantido pelo Estado e pelos trabalhadores ativos, pode.
Primeiro, este sistema tem se mostrado muito desigual. Se 11% das famílias francesas detêm um produto de poupança financeira, cerca de um terço (32%) das famílias dispondo de uma renda superior a 3.800 euros por mês se incluem nesta categoria e …4,3% entre aquelas com renda entre 750 e 1.200 euros12. As mesmas desigualdades podem se agravar ainda mais.
Desta forma, Carrefour propõe “um diagnóstico personalizado das necessidades do assalariado em matéria de complemento de aposentadoria”, a partir do qual será examinada a taxa de cotização que ele deverá contribuir com o fundo. Com este sistema, as mulheres, que têm uma esperança de vida superior à dos homens, deveriam pagar mais. Se esta lógica de individualização a todo vapor se impusesse, o que aconteceria com um assalariado vítima de uma longa doença (AIDS, câncer…)? Não podemos imaginar a aparição de testes genéticos para prever doenças, como existem na contratação em certas empresas norte-americanas?
Além disso, estes fundos de pensão – quer sejam à francesa ou à anglo-saxã – não permitem esquecer, como por milagre, da questão demográfica que forma, dizem, o coração do problema das aposentadorias. Desta forma a indústria americana Ford, que despediu maciçamente nestes dois últimos decênios, tem agora um trabalhador ativo para cada aposentado; na General Motors a proporção é de um ativo para dois aposentados… Como no regime da aposentadoria pública, há quatro soluções possíveis: criar empregos para reequilibrar esta relação, aumentar a cota-parte das empresas (que o patronato recusa), fazer com que os que trabalham paguem, ou reduzir as pensões.
Da mesma forma, a partir de 2005, o célebre fundo de pensão norte-americano Calpers deverá enfrentar um aumento sem precedentes do número de aposentados a serem pagos: ele deverá vender as ações que possui, impulsionando desta forma, automaticamente, uma baixa das cotações colocadas à venda. Esta baixa levará a uma redução dos fundos de pensão dos ativos, que deverão então cotizar muito mais, à imagem do que ocorre atualmente com as baixas da Bolsa. É aliás a razão pela qual os agentes financeiros norte-americanos militam pela criação, na Europa, de fundos de pensões capazes de comprar maciçamente estes ativos colocados no mercado para evitar a derrocada que poderia se conjugar à regressão atual. Os ativos europeus pagariam pelos aposentados norte-americanos mais ricos…
Volatilidade dos mercados
Além dos problemas morais e econômicos que representa, a longo prazo, a aposentadoria por capitalização pode conduzir a uma implosão da aposentadoria pública
Estes sistemas favorecem igualmente a insegurança social: sabe-se o que se paga, mas não o que se vai receber. Os gestores dos fundos aludidos agitam os estudos mostrando que, em um longo período, as ações sempre rendem. Um destes gestores explica no jornal econômico Les Echos13: “A queda da Bolsa ?Este risco não diz respeito ao poupador, pois ele tem a seu favor a duração. A natureza das Bolsas faz bem as coisas!”. O problema é que a natureza humana não faz as coisas tão bem. Tudo depende do momento do início da aposentadoria. Se ele se situa em um momento de alta da Bolsa, o cálculo da renda ou do capital investido será feito no zênite. Em período de derrocada ele será o mais baixo possível. O economista norte-americano Christian E. Weller calculou que tendo investido a mesma quantia durante 40 anos, um aposentado a partir de 1966 teria dobrado seu investimento. Dez anos mais tarde, um aposentado iniciando nas mesmas condições não ganharia mais que 40% do que tivesse investido14.
Responsável pela direção dos fundos de pensão da Caixa de depósitos e consignações, Xavier Pétrolin reconhece : “Mesmo quando o período de cotização é muito longo, de 20 a 30 anos, pode-se ter rendimentos negativos na Bolsa”. É a grande diferença entre o regime pela capitalização e o regime público: como é ligado à volatilidade dos mercados, o primeiro não pode garantir segurança, enquanto o segundo, garantido pelo Estado e pelo conjunto dos trabalhadores ativos, pode.
Finalmente, estes sistemas privados custam caro ao Estado – e aos regimes sociais. Em 2002, as exonerações de encargos sociais e de cotizações dos quais se beneficiam os fundos de poupança salarial representam por si só a metade do déficit da previdência social (4,5 bilhões de euros). Como ressalta Pierre-Yves Chaunu, especialista de fundos de pensão, conselheiro da Confederação Geral do Trabalho (CGT), “isto canibaliza o sistema”, que vê suas fontes – e portanto sua capacidade de responder às necessidades – se reduzirem. Como o governo e a maioria da direita prevêm novas exonerações para incitar às aplicações de dinheiro. “Não somente os mais ricos que se beneficiam mais, mas isto vai favorecer a poupança enquanto que, pelo contrário, o país sofre de um definhamento do consumo”, explica Jacques Nikonoff, presidente do Attac 15. Segundo ele, se os assalariados querem poupar, seria melhor criar uma caderneta de poupança-emprego, baseado na caderneta A, corretamente remunerada para financiar os projetos de desenvolvimento das empresas.
A aposentadoria por capitalização não é somente economicamente absurda, socialmente perigosa e moralmente injusta. A longo prazo, sua extensão pode conduzir a uma implosão da aposentadoria pública.
(Trad.: Celeste Marcondes
1 – Testemunho recolhido por Eric Pfanner, “Pensions crises gathers pace”, International Herald Tribune, Paris, 3 de março de 2003.
2 – Com outros assalariados do grupo, Digna Showers testemunha no site da associação americana “No more Enron”: www.nomoreenrons.com
3 – “Retirement out of reach”, em Economic Policy Institute (EPI), Washington, agosto de 2002.
4 – International Herald Tribune, op.cit.
5 – New York Times, New York, 31 de janeiro de 2003.
6 – Catherine Sauviat, “Les effets conjugués des faillites et de la baisse de la Bourse sur les régimes complémentaires de retraite par capitalisation aux Etats-Unis”, Chronique internationale de l’IRES, Noisy-le-Grand, n.81, março de 2003.
7 – BBC News, 28 de fevereiro de 2003.
8 – BBC News, 21 de março de 2002.
9 – “L’épargne et l’élection présidentielle”, Le Monde Argent, 18 de março de 2002.
10 – Tribune libre, Le Monde, 7 de fever
Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde Diplomatique (França).