Traumatismos de fim de império
Orquestrada por uma coalizão conservadora que, entre outros objetivos, buscava pôr fim à “síndrome do Vietnã” e consolidar a hegemonia norte-americana em escala planetária, a guerra do Iraque acabou rachando a direita e arrastando o país a uma crise sem precedentes
No centro da elite do poder americano, as conseqüências desastrosas da invasão e ocupação do Iraque provocaram uma crise ainda mais profunda do que a desencadeada pela derrota no Vietnã há trinta anos. Para cúmulo da ironia, essa crise afeta a coalizão de ultranacionalistas e neoconservadores que se formou nos anos 70 exatamente para tentar pôr fim à “síndrome do Vietnã”, restaurar o poder americano e fazer reviver o “anseio de vitória” dos Estados Unidos.
Se ainda não assistimos a um protesto em massa popular e organizado, como foi o caso durante a guerra do Vietnã, é sem dúvida em razão de o exército ser composto principalmente de voluntários egressos dos meios sociais mais pobres; bem como pelo fato de essa guerra ser financiada mal-e-mal pelos capitais estrangeiros (por quanto tempo mais, ainda?). Mas, entre a “elite”, a crise rompeu o establishment de segurança nacional que governa o país desde a Segunda Guerra Mundial.
O desacordo expresso publicamente por meia dúzia de generais da reserva acerca da condução da guerra,1 um fato sem precedente, veio se juntar à manifestação recorrente de dissenso entre as agências de informação e o Departamento de Estado desde 2003, o que denota uma tendência mais profunda atingindo importantes setores da elite e as principais instituições do Estado. Mas nenhum detrator da guerra é tão direto quanto o general da reserva William Odom, que repete incansavelmente que a invasão do Iraque representa o “mais importante desastre estratégico da história dos Estados Unidos”,2 ou o coronel Larry Wilkerson, ex-chefe do estado-maior de Colin Powell, que denuncia um “erro de dimensão histórica” e pede a destituição do chefe de Estado,3 ou ainda o ex-diretor do Conselho Nacional de Segurança, Zbigniew Brzezinski, que qualificou a guerra no Iraque e a ocupação do país de “calamidade histórica, estratégica e moral”.4
Em sua maioria, as críticas da elite que se erguem publicamente não vão assim tão longe; em geral, elas se dirigem ao modo como a guerra e a ocupação tiveram início, mais do que com a questão fundamental da invasão em si. Mas isso não muda o fato de que a discórdia é profunda e generalizada, com diferentes ministros do governo rejeitando o erro e se acusando mutuamente de serem os responsáveis pela “perda do Iraque”.5 Privadamente, antigos responsáveis de alto escalão entregam-se a acessos de raiva impotente, denunciam “cabalas” sombrias e vituperam contra a Casa Branca. Sem a menor ironia, um ex-oficial do Conselho de Segurança Nacional compara os atuais ocupantes da instituição com “a família Corleone”, imortalizada no filme O poderoso chefão. “Por conta de um bando incompetente, arrogante e corrupto”, diz outro oficial de alta patente, “estamos perdendo nossa posição dominante no Oriente Médio”; veterano do Vietnã, um senador republicano afirma: “A Casa Branca quebrou o exército e ultrajou sua honra”.
Nenhum desses detratores institucionais poderia ser de algum modo considerado “santo”: sejam quais forem suas afiliações políticas ou opiniões pessoais, eles foram ou ainda são guardiães do poder, gestores do Estado de segurança nacional, e foram por vezes atores de intervenções imperialistas abertas ou clandestinas empreendidas no “Terceiro Mundo” durante e depois da guerra fria. Eles foram ou ainda são “gestores de sistema” do aparelho burocrático de segurança nacional, que o sociólogo C. Wright Mills foi o primeiro a dissecar, e cuja função é produzir e reproduzir o poder.
Conseqüentemente, enquanto grupo social, não podemos distinguir esses “realistas” do objeto de suas críticas, no que diz respeito a sua disposição em empregar a força ou ao caráter implacável com que, a história está de prova, perseguiram os objetivos do Estado. Não mais do que podemos atribuir a causa de seu descontentamento a convicções divergentes em matéria de ética, normas e valores (ainda que tais diferenças possam motivar alguns indivíduos). A discordância é resultado de uma constatação fria, racional, de que a guerra no Iraque deixou “o exército americano quase arruinado”6 e comprometeu seriamente, até mesmo de maneira irreparável, “a legitimidade mundial da América”,7 isto é, sua capacidade de moldar as preferências mundiais e de definir a ordem do dia no planeta. Em suas expressões mais sofisticadas, como no caso de Brzezinski, essa divergência traduz a compreensão do fato de que o poderio não se limita ao poder de coerção e que a legitimidade hegemônica, uma vez perdida, é difícil de ser restabelecida.
Os sinais de queda da hegemonia americana são visíveis em todos os lugares: na América Latina, onde a influência dos Estados Unidos é a mais baixa em décadas; no leste asiático, onde Washington, de má vontade, teve de negociar com a Coréia do Norte e reconhecer na China um ator indispensável à segurança regional; na Europa, onde o projeto de instalar baterias antimísseis é contestado pela Alemanha e outros países da União Européia; no Golfo, onde os aliados de longa data, como a Arábia Saudita, perseguem objetivos regionais autônomos que somente em parte coincidem com os dos Estados Unidos; no seio das instituições internacionais, seja a ONU, seja o Banco Mundial – cujo presidente, o americano Paul Wolfowitz, envolvido em um esquema de nepotismo, teve de entregar o cargo, em 30 de junho –, onde Washington não tem mais condições de determinar a ordem do dia.
Desprezo pela opinião internacional
Ao mesmo tempo, as pesquisas de opinião internacionais realizadas regularmente pelo PEW Research Center de Washington8 apontam uma atitude sistemática de desafio à política externa americana em nível quase mundial e um desgaste do “soft power”, o fascínio exercido pelos Estados Unidos no mundo: o “sonho americano” afundou diante da imagem de um leviatã militar que exibe apenas desprezo pela opinião pública internacional e viola as regras que os próprios Estados Unidos instituíram.9 A opinião mundial pode não pôr um fim às guerras, mas pesa de forma mais sutil nas relações internacionais.
Limitar em parte esse desgaste seria talvez possível sob a condução de novos dirigentes e em circunstâncias totalmente novas. É no entanto difícil imaginar como, no curto prazo, um novo consenso interno poderia ser restabel
ecido: foram necessários muitos anos para reconstruir o exército após submetê-lo a duras provas na Guerra do Vietnã, bem como repensar as doutrinas e definir um novo consenso das elites, quando não popular, sobre o uso da força. Depois do Iraque, não será fácil mobilizar o sentimento nacionalista para empreender novas aventuras no exterior. Tanto quanto não se pode esperar um retorno ao status quo anterior da política mundial.
A invasão e a ocupação do Iraque não são as únicas causas das tendências mundiais evocadas acima. A guerra somente acentuou um momento em que forças centrífugas maiores já estavam em ação: o desgaste e o posterior desmoronamento do “Consenso de Washington” e o aumento da influência de novos centros gravitacionais econômicos, sobretudo na Ásia, já bem estabelecidos quando George W. Bush tomou a decisão calamitosa de invadir o Iraque. Logo, a história avança enquanto os Estados Unidos se encontram atolados em um conflito que absorve todas as energias do país.
Aos olhos das elites no poder, essa configuração é profundamente preocupante. Desde a metade do século XX, os dirigentes americanos passaram a achar que tinham a responsabilidade histórica singular de dirigir e governar o sistema internacional. Ocupando o topo do mundo desde a década de 40, eles partiam do princípio que, a exemplo da Grã-Bretanha no século XIX, os Estados Unidos estavam destinados a agir como hegemon, Estado dominante detentor da vontade e dos meios de estabelecer e manter a ordem internacional, bem como de assegurar a paz e uma economia mundial liberal aberta e em expansão. Na interpretação seletiva que fizeram da história, foi a incapacidade da Grã-Bretanha de manter esse papel e a reticência simultânea dos Estados Unidos em endossar sua responsabilidade nisso (o “isolacionismo”) que propiciaram o ciclo guerra mundial-depressão-guerra mundial durante a primeira metade do século XX.
Essa hipótese, profundamente arraigada nos espíritos, tem por corolário um argumento circular: uma vez que a ordem requer um centro dominante, manter a ordem (ou evitar o caos) requer perpetuar a hegemonia. Esse sistema de crença, que os pesquisadores norte-americanos na década de 70 definiram como “teoria da estabilidade hegemônica”, pauta a política externa dos Estados Unidos desde que o país emergiu da Segunda Guerra Mundial como centro ocidental do sistema mundial.
As elites política e econômica americanas entreviam desde 1940 uma “grande revolução no equilíbrio do poder”: Washington iria se “tornar o herdeiro, o legatário universal e administrador do patrimônio econômico e político do Império britânico […] o cetro [passaria] para as mãos dos Estados Unidos”.10 Um ano mais tarde, Henry R. Luce anunciava a chegada do famoso “século americano”: “Esse primeiro século em que a América será uma potência dominante no mundo”, escrevia ele, significava que o povo americano deveria “aceitar sem reserva [seu] dever e [sua] perspectiva de futuro como a nação mais poderosa e vital […] e exercer sobre o mundo o pleno impacto de [sua] influência pelos meios que [lhe] parecessem apropriados […]”.11 Em meados dos anos 40, os contornos do “século americano” já se desenhavam claramente: predomínio econômico reforçado por uma supremacia estratégica baseada em uma rede planetária de bases militares estendendo-se do Ártico à Cidade do Cabo e do Atlântico ao Pacífico.
Visões de onipotência
Presidindo a construção do Estado de segurança nacional, os dirigentes do pós-guerra estavam tomados, para retomar a expressão do historiador William Appleman Williams, de “visões de onipotência”:12 os Estados Unidos se beneficiavam de enormes vantagens econômicas e de um avanço tecnológico considerável e detiveram por um curto período o monopólio atômico. O impasse coreano (1953) e os programas soviéticos de armas e mísseis nucleares certamente abalaram a confiança americana, mas foi a derrota no Vietnã e as turbulências sociais que acompanharam a guerra no plano interno que revelaram os limites do poderio.
O “realismo em uma era de declínio” preconizado por Henry Kissinger e Richard Nixon era somente uma forma de admitir, a contragosto, que o tipo de hegemonia global exercido havia mais de vinte anos não poderia durar para sempre. Mas o Vietnã e a era Nixon marcaram uma virada mais paradoxal. Eles prepararam a reação dos anos 80: a “revolução conservadora” e os esforços conjuntos para restabelecer e renovar o Estado de segurança nacional e o poderio mundial americano. Quando a União Soviética desmoronou, alguns anos mais tarde, as ilusões de onipotência ressurgiram. Os “triunfalistas” conservadores voltaram a sonhar com uma “primazia” internacional de longa duração. O Iraque era uma experiência estratégica destinada a inaugurar o “segundo século americano”. A experiência deu errado, assim como a política externa americana.
As analogias históricas nunca são perfeitas, mas o exemplo da Grã-Bretanha e da prolongada derrocada do império pode lançar uma luz sobre o momento histórico atual. No crepúsculo do século XIX, raros eram os dirigentes britânicos que podiam imaginar seu fim. Quando foi celebrado o Diamond Jubilee da rainha Vitória, em 1897, a Grã-Bretanha estava à frente de um império transoceânico formal que englobava um quarto dos territórios do mundo e 300 milhões de súditos, o dobro se incluirmos nesse todo a China, colônia virtual de 430 milhões de habitantes. A City londrina era o centro de um império comercial e financeiro ainda mais vasto, cuja teia abarcava o mundo inteiro. Portanto, não é nada surpreendente que uma importante parte da elite britânica pensasse, apesar do receio suscitado pela concorrência manufatureira norte-americana e alemã, que a Grã-Bretanha recebera “como presente do todo-poderoso um arrendamento do universo por toda a eternidade”.
O Jubilee devia ser “o último raio de sol de uma confiança total na capacidade britânica de governar”.13 A segunda Guerra dos Bôeres (1899-1902),14 empreendida na África do Sul para preservar a rota das Índias e reforçar o “elo mais fraco da corrente imperial”, foi um enorme desperdício humano e financeiro. Além disso, ela revelou as atrocidades da política da terra queimada a uma opinião pública inglesa cada vez menos dócil. “A guerra sul-africana foi, para a potência imperial britânica, a provação mais importante desde a Rebelião Indiana, e a guerra ma
is vasta e mais onerosa empreendida pela Grã-Bretanha entre a derrota de Napoleão e a Primeira Guerra Mundial”.15
Apenas doze anos depois, teve início a Segunda Guerra Mundial, levando à derrocada e ao esgotamento os seus protagonistas europeus. O longo fim da era britânica havia começado. Mas o Império não somente resistiu à crise imediata, como também perdurou por décadas, ultrapassando a Segunda Guerra Mundial, antes de ver um fim sem glória em Suez em 1956… pela mão dos norte-americanos. No entanto, um século mais tarde, a nostalgia da grandeza persiste, como vemos nas desventuras mesopotâmicas do primeiro-ministro Tony Blair. Os últimos resquícios imperiais ainda não foram extintos.
Para a elite no poder dos Estados Unidos, manter-se no topo do mundo há mais de meio século é considerado um fato natural. A hegemonia, como o ar que respiramos, tornou-se um modo de ser, um estilo de vida, um estado de espírito. Os críticos institucionais “realistas” são certamente mais prudentes do que aqueles a quem criticam. Mas eles não possuem ainda o quadro conceitual onde inserir as relações internacionais, que seria baseado em outra coisa que não a força, o equilíbrio do poder ou a predominância estratégica.
A crise atual e o impacto crescente dos problemas mundiais, sem solução no âmbito nacional, originarão, talvez, novos impulsos em matéria de cooperação e interdependência. Em todo caso, é preciso esperar. Mas é também provável que a política americana permaneça imprevisível: como mostram todas as experiências pós-coloniais, desfazer um império pode ser um processo longo e traumático.
*Philip S. Golub é professor associado do Instituto de Estudos Europeus da Universidade Paris 8