‘Triste cuíca’, de Julia Wähman: a linguagem na construção de memórias
Novo romance da autora de ‘Cravos’ e ‘Manual da demissão’ acaba de ser publicado pela Janela + Mapa Lab
O papel da linguagem na construção das memórias é o principal tema de Triste cuíca, novo romance de Julia Wähman, recém-publicado pela Janela + Mapa Lab. A narrativa fragmentada tem como personagem central uma mulher que encontra nos próprios diários de infância e nos diários de grandes nomes da literatura, um pouco de afeto e uma dúzia de provocações, ao mesmo tempo em que lida com um período bastante nebuloso: a pandemia de Covid.

Na história, acompanhamos uma protagonista que vivencia aquilo que foi exaustivamente chamado de novo normal. No início, seus pensamentos se voltam a uma inocência que todos tivemos no início da pandemia, algo evidenciado pela esperança de que a catástrofe durasse poucas semanas ou que o presidente agisse de forma minimamente competente. Muitos, inclusive eu, foram ainda mais ingênuos e acreditaram que as pessoas se tornariam seres humanos melhores a partir dessa experiência.
Enquanto reaprende a viver, trancada num apartamento, a personagem-narradora revisita o próprio passado e encontra nas palavras de autores e autoras como Virginia Woolf, Annie Ernaux e Carlos Drummond de Andrade novas perspectivas a respeito da memória e da ficção. Suas lembranças, às vezes embaraçosas, às vezes traumáticas, ganham novos contornos e significantes. Percebe que nenhuma memória é totalmente confiável e que mentir para si mesma é mais fácil do que parece.
Posteriormente, encontra relatos de seu avô, escritos durante a sua participação na Segunda Guerra Mundial, e compreende que mesmo os acontecimentos mais estrondosos reservam grande espaço à subjetividade humana.
Assim como fez em seu delicado romance de estreia, Cravos (2016), Julia Wähman intercala, em capítulos curtos, o passado, o presente, anotações banais e reflexões profundas sobre o medo, a solidão e a angústia, com uma linguagem poética e doses de humor.
A escritora ainda faz um criativo inventário das finalidades do diário, sobretudo para as mulheres, que utilizavam esse tipo de escrita para se expressar em uma época em que apenas os homens publicavam.
Triste cuíca é um livro original, marcante e capaz de ser divertido e intenso ao mesmo tempo. Julia Wähman se mostra, mais uma vez, uma escritora sensível e atenta às muitas possibilidades oferecidas pela linguagem.
Além disso, a obra reflete sobre a pandemia e a relação entre linguagem e memória de forma acessível e perspicaz, o que é um feito e tanto.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá), “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros) e “De repente nenhum som” (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.