Triste revisionismo nos Trópicos
Parece que chegamos a um irrenunciável ponto de inflexão. Desta feita, ou salvamos o arremedo de democracia vigente e garantimos os direitos duramente conquistados, ou caminhamos de vez ao domínio da barbárie.
Os tempos são de disputa de sentidos e narrativas mediados pelo espetáculo, pelo imediatismo e sobretudo pelo ódio. É a sobreposição intencional do passado pela urgente demanda do agora, carregado de desprezo pelo diálogo e sedento por ampla visibilidade da nova verdade defendida. Nada parece estar imune à onda revisionista que se espalha pelo país.
O Brasil não está inventando o revisionismo histórico, está antes vivendo sua hipertrofia ocasionada principalmente pela fragilidade de seu sistema de ensino, as disparidades fundantes de sua sociedade, a alta concentração dos meios de comunicação (que pautam a agenda pública) e a possibilidade contemporânea da circulação de informações através das novas tecnologias, o que desencadeou a propagação de posicionamentos latentes ou ocultos que não passam por qualquer critério de validação de sua veracidade.
A cada dia o horror ganha a manchete da imprensa ou o alto número de compartilhamentos nas redes sociais. O fascismo saiu definitivamente do armário na medida em que o pudor de manifestações absurdas se recolheu diante do desaparecimento da vergonha. A defesa de que no Brasil não houve ditadura militar pós-64 e a inominável justificativa da prática de tortura ganham status de expediente normalizado no debate público. Mesmo a péssima lei de autoanistia, encampada no período de transição e posteriormente reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, parece ficar deslocada nesta nova realidade.
Conhecidos conservadores do espectro político nacional são alcunhados de “comunistas” frente a qualquer contrariedade. Nesta visão, a grande mídia também comporia um planejado complô socialista, mesmo a Rede Globo. Recentemente a Embaixada da Alemanha foi atacada por expor o consenso óbvio sobre o posicionamento ideológico do nazismo, que é indubitavelmente de extrema-direita. Os opositores da História insistem em afirmar que o nazismo é de esquerda, associando esta leitura à disputa política atual.
Parece que chegamos a um irrenunciável ponto de inflexão. Desta feita, ou salvamos o arremedo de democracia vigente e garantimos os direitos duramente conquistados, ou caminhamos de vez ao domínio da barbárie. Não há o que titubear, o fascismo precisa ser vencido, e parte dessa batalha se dá na desarticulação firme e sensata do revisionismo histórico, posicionamento que tem buscado desestruturar os conceitos e consensos desta longa construção democrática.
Claro que esse enfrentamento não pode se dar apenas na esfera cultural, a disputa milimétrica dos espaços estruturantes e estruturais também é fundamental. Nesse contexto, mesmo com todos os vícios e falhas, o processo eleitoral se apresenta importante, não por uma posição efetivamente transformadora, mas mantenedora de garantias diante da grande ameaça de retrocesso. Não há como defender qualquer proposta que se aproxime do “quanto pior melhor” enquanto caminho para uma mudança profunda da sociedade. Sabemos muito bem quem paga o preço dessa estratégia.
O revisionismo grita alto pois não lhe é atributo a razão. Assim, sua potência não pode passar do que realmente é, um voo de galinha. Sejamos firmes.
Tristes dias nos Trópicos.
Diego Mendonça é Mestre em Direitos Humanos pela UnB