Trump acuado pelo partido anti-Rússia
Os conflitos internacionais se reacendem, em geral por iniciativa dos Estados Unidos. Enrolado com dificuldades internas, o presidente Trump está cada vez mais próximo de confundir solução diplomática com ação militar. No caso russo, ele é acuado por um partido da guerra, no qual seus adversários políticos, os serviços de inteligência e a mídia jogam um papel central
Serge Halimi
Alguns meses foram suficientes para que os Estados Unidos se retirassem do acordo internacional de Paris sobre o clima, assumissem novas sanções econômicas contra a Rússia, invertessem a dinâmica da normalização das relações diplomáticas com Cuba, anunciassem sua intenção de denunciar o acordo nuclear com o Irã, colocassem em guarda o Paquistão, ameaçassem a Venezuela com uma intervenção militar e se declarassem prontos para atacar a Coreia do Norte “com fogo e fúria como o mundo nunca viu”. Desde que, em 20 de janeiro, a Casa Branca trocou de locatário, Washington só melhorou suas relações com as Filipinas, o Egito, a Arábia Saudita e Israel.
A responsabilidade de Donald Trump nessa escalada não é exclusiva. Os eleitos neoconservadores de seu partido, os democratas e os meios de comunicação aplaudiram quando, no primeiro semestre, ele ordenou manobras militares na Ásia e o lançamento de 150 mísseis contra uma base aérea na Síria.1 Em contrapartida, o presidente foi impedido de agir quando explorou as possibilidades de uma reaproximação com Moscou e se viu obrigado a promulgar uma nova leva de sanções contra a Rússia. Em suma, o ponto de equilíbrio da política estrangeira dos Estados Unidos resulta cada dia mais da soma das fobias republicanas (Irã, Cuba, Venezuela), com frequência compartilhadas com os democratas, e dos ódios democratas (Rússia, Síria), endossados pela maior parte dos republicanos. Se existe um partido da paz em Washington, no momento não é possível detectá-lo.
O debate presidencial do ano passado, porém, sugeria que o eleitorado pretendia romper com o tropismo imperial dos Estados Unidos.2 Trump inicialmente não tinha feito campanha sobre temas de política externa. No entanto, quando falou disso, foi para sugerir uma linha de conduta largamente oposta àquela do establishment de Washington (militares, especialistas, think tanks, revistas especializadas) e àquela que ele hoje persegue. Prometendo subordinar as considerações geopolíticas aos interesses econômicos dos Estados Unidos, ele se dirigiu ao mesmo tempo aos defensores de um nacionalismo econômico (“America first”), numerosos nos estados industrialmente afetados, e àqueles que, após quinze anos de guerras ininterruptas, tendo por resultado o empobrecimento da população ou o caos generalizado (Afeganistão, Iraque, Líbia), tinham se convencido dos méritos de um certo realismo. “Estaríamos melhor se não nos tivéssemos ocupado com o Oriente Médio por quinze anos”,3 concluía Trump em abril de 2016, convencido de que a “arrogância” dos Estados Unidos tinha provocado “um desastre depois do outro” e “custado milhares de vidas norte-americanas e milhares de bilhões de dólares”.
Algo inesperado vindo de um candidato republicano, esse diagnóstico juntava-se ao sentimento da ala mais progressista do Partido Democrata. Peggy Noonan, que escreveu os discursos mais notáveis de Ronald Reagan e de seu sucessor imediato, George H. Bush, enfatizou isso na época: “Em matéria de política externa, [Trump] se posicionou à esquerda de Hillary Clinton. Ela é belicista, muito compulsiva quanto ao desejo de utilizar a força armada, e lhe falta discernimento. Essa terá sido a primeira vez na história moderna que um candidato republicano à eleição presidencial se situou à esquerda de sua rival democrata, e isso torna as coisas interessantes”.4
Interessantes, as coisas ainda o são, mas não exatamente como Peggy Noonan havia previsto. Enquanto “a esquerda” postula que a paz decorre não da intimidação das outras nações, mas de relações mais equitativas entre elas, Trump, totalmente indiferente ao sentimento da opinião pública mundial, opera como um negociante matreiro em busca do melhor “negócio” para ele e seus eleitores. Assim, a seu ver, o problema das alianças militares não está no fato de elas correrem o risco de estender mais os conflitos mais do que de desencorajar as agressões, mas no fato de custarem muito caro. E que, por terem de pagar a conta, os norte-americanos veem seu país se tornar “uma nação do Terceiro Mundo”. “A Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] está obsoleta”, insistiu Trump em 2 de abril de 2016 durante um comício. “Nós defendemos o Japão, defendemos a Alemanha, e eles nos pagam apenas uma fração do que isso nos custa. A Arábia Saudita entraria em colapso se saíssemos de lá. É preciso se mostrar disposto a se levantar da mesa, sem o que nunca se vai obter um bom acordo.”
Suspeita de um acordo tenebroso
O presidente dos Estados Unidos esperava concluir o “bom acordo” com Moscou. Uma nova parceria teria invertido a deterioração das relações entre as duas potências favorecendo sua aliança contra a Organização do Estado Islâmico (OEI) e reconhecendo a importância da Ucrânia para a segurança russa. A atual paranoia norte-americana em relação a tudo que diz respeito ao Kremlin faz esquecer que em 2016, após a anexação da Crimeia e da intervenção direta de Moscou na Síria, Barack Obama também relativizava o perigo representado por Vladimir Putin. Suas intervenções na Ucrânia e no Oriente Médio não passavam, segundo ele, de improvisações, de “marcas de fraqueza diante dos Estados-clientes a ponto de lhe escapar”.5
Obama acrescentava: “Os russos não podem nos modificar ou nos enfraquecer de maneira significativa. É um país pequeno, um país fraco, e sua economia não produz nada que outros queiram comprar, a não ser petróleo, gás e armas”. O que ele temia então de seu colega russo era sobretudo… a simpatia que ele inspirava em Trump e em seus apoiadores. “Trinta e sete por cento dos eleitores republicanos aprovam Vladimir Putin, o ex-chefe da KGB. Ronald Reagan deve estar se revirando no túmulo!”6
Desde janeiro de 2017, o sono eterno de Reagan reencontrou sua tranquilidade. “Os presidentes vêm e vão, mas a política não muda”, concluía Putin.7 Os historiadores vão estudar um dia essas poucas semanas durante as quais convergiram os esforços dos serviços de inteligência norte-americanos, de líderes da área clintoniana do Partido Democrata, da maior parte dos eleitos republicanos e dos meios de comunicação hostis a Trump. Seu projeto comum? Impedir qualquer entendimento entre Moscou e Washington.
Os motivos de cada um eram diferentes. Os serviços de inteligência e alguns elementos do Pentágono temiam que uma aproximação entre Trump e Putin – capaz de destruir o poderio militar da OEI – os privasse de um inimigo de peso. Os clintonianos tinham pressa de imputar sua derrota inesperada a outros que não a candidata escolhida e sua inepta campanha: a pirataria dos donos do Partido Democrata imputada a Moscou faria a mágica. Os neoconservadores, “que tinham promovido a Guerra do Iraque, detestavam Putin e julgavam que a segurança de Israel não era negociável”,8 estavam indignados com as tentações neoisolacionistas de Trump.
Enfim, os meios de comunicação – o New York Times e o Washington Post, em particular – sonhavam com um novo caso Watergate. Eles não ignoravam que seu eleitorado – burguês, urbano, culto – detestava com fervor o presidente eleito, desprezava sua vulgaridade, seus tropismos de extrema direita, sua violência, sua falta de cultura.9 E que consequentemente buscaria qualquer informação ou rumor suscetível de provocar sua destituição ou demissão forçada. Um pouco como em Assassinato no Expresso Oriente, o romance de Agatha Christie, cada um tinha basicamente suas razões para atingir o mesmo alvo.
A intriga se fez ainda mais facilmente pelo fato de as fronteiras que separam esses quatro universos serem muito porosas. Entre os falcões republicanos, encarnados por John McCain, presidente da comissão das Forças Armadas do Senado, e o complexo militar-industrial, o acordo se tornava evidente. Os arquitetos das últimas aventuras imperiais norte-americanas, em particular no Iraque, tinham aceitado mal a campanha de 2016 e os ataques grosseiros que Trump reservara para seus conhecimentos. Cerca de cinquenta intelectuais e oficiais anunciaram que, embora republicanos, se recusavam a apoiar o candidato de seu partido, que “colocaria a segurança nacional do país em perigo”. Alguns deram o passo e votaram em Hillary Clinton.10
Faltava a imprensa. Ela também temia que a incompetência de Trump ameaçasse a ordem internacional dominada pelos Estados Unidos e não tinha nenhuma reserva contra as cruzadas militares, sobretudo quando estas podiam ser polidas por grandes princípios humanitários internacionalistas, progressistas. No entanto, segundo esses critérios, nem Putin nem sua predileção por nacionalistas de direita eram aceitáveis. Mas a Arábia Saudita ou Israel eram. Isso não impediria a primeira de poder contar com o Wall Street Journal, ferozmente anti-Rússia. Quanto a Israel, a quase totalidade dos meios de comunicação norte-americanos apoiava sua política, ainda que a extrema direita participe de seu governo.
Um pouco mais de uma semana antes de Trump tomar posse, o jornalista e advogado Glenn Greenwald – a quem se deve a publicação das revelações de Edward Snowden sobre os programas de vigilância em massa da National Security Agency (NSA) – alertava sobre o curso dos acontecimentos. Ele observou que os meios de comunicação norte-americanos tinham se tornado “a ferramenta mais preciosa” dos serviços de inteligência “que na maior parte eles reverenciam, servem, creem e sustentam”. No mesmo momento, os democratas, “ainda sob o choque de um fracasso eleitoral tão inesperado quanto traumatizante”, lhe pareceram “perder a razão e apoiar quaisquer avaliações, saudar qualquer tática, aliar-se a qualquer vilão”.11
A coalizão anti-Rússia ainda não tinha atingido seus objetivos, e Greenwald já entrevia as ambições do “Estado profundo”: “Assistimos neste momento a uma guerra aberta entre, de um lado, essa facção não eleita, mas muito poderosa que vive em Washington e vê mudar os presidentes e, de outro, aquela que a democracia norte-americana elegeu presidente”. Alimentada por serviços de inteligência, uma suspeita deixava excitados todos os adversários do novo morador da Casa Branca: Moscou detinha contra Trump segredos comprometedores – financeiros, eleitorais, sexuais – que o paralisariam em caso de crise entre os dois países.12
A suspeita de um acordo tenebroso dessa ordem, que o economista clintoniano Paul Krugman resumiu ao falar de um “tíquete Trump-Putin”, transformou o ativismo anti-Rússia em arma de política interna contra um presidente cada vez mais detestado fora do bloco ultraconservador. Não é mais raro ouvir militantes de esquerda se tornarem apologistas do FBI ou da CIA, desde que essas duas agências passaram a servir de refúgio para uma oposição latente ao presidente norte-americano e desde que elas o combatem por meio de vazamentos permanentes.
Compreende-se por que a pirataria dos dados do Partido Democrata, imputada pelos serviços de inteligência norte-americanos à Rússia, encantou o Partido Democrata e a imprensa. Dose dupla: ele permitiu deslegitimar a eleição de Trump e proibiu este de promover qualquer degelo em relação a Moscou. Washington sendo ofuscada pela ingerência de uma potência estrangeira nos assuntos internos de outro Estado até em suas eleições: o que mais essa situação estranha destaca? E quem se lembra de que pouco tempo atrás não era o Kremlin que espionava as conversas telefônicas de Angela Merkel, e sim a Casa Branca de Obama? Ao questionar o ex-diretor da CIA James Clapper, um representante – republicano – da Carolina do Norte, Thom Tillis, rompeu esse silêncio em janeiro último. Ele lembrou que os Estados Unidos “tinham estado envolvidos em 81 eleições diferentes desde a Segunda Guerra Mundial. Isso não inclui os golpes de Estado nem as ‘mudanças de regime’ pelas quais procuramos modificar a situação a nosso favor. De seu lado, a Rússia agiu da mesma forma 36 vezes”. Não se pode esperar que tal colocação em perspectiva tempere com muita frequência discursos retóricos do New York Times contra as malandragens de Moscou.
O jornal se esquece também de lembrar a seus jovens leitores que o presidente russo Boris Yeltsin, que em 1999 escolheu Putin como sucessor, tinha sido reeleito três anos antes, ainda que muito doente e frequentemente bêbado, ao fim de uma eleição fraudulenta conduzida com a assistência de conselheiros norte-americanos e o apoio declarado do presidente dos Estados Unidos. O New York Times saudou esse resultado num editorial intitulado “Uma vitória para a democracia russa” (4 jul. 1996). “As forças da democracia e da reforma tiveram uma vitória decisiva, mas não definitiva”, estimou na ocasião. “Pela primeira vez na história, uma Rússia livre escolheu livremente seu líder.”
Hoje, o diário nova-iorquino se situa nos postos avançados da preparação psicológica para um conflito contra a Rússia. Uma dinâmica como essa quase já não encontra resistência. À direita, enquanto o Wall Street Journal reclamou, em 3 de agosto, pelo fato de os Estados Unidos terem armado a Ucrânia, o vice-presidente Mike Pence evocou na Estônia o “espectro da agressão” russa, depois encorajou a Geórgia a se juntar à Otan e por fim saudou Montenegro, que tinha acabado de aderir à aliança militar. Longe de se preocupar com essa avalanche de gestos provocadores, que coincidem com um aumento das tensões entre as duas grandes potências (sanções comerciais contra Moscou, expulsão de diplomatas norte-americanos pela Rússia), o New York Times bota lenha na fogueira. Ele saudou, em 2 de agosto, a “reafirmação do compromisso norte-americano de defender as nações democráticas contra os países que as estariam ameaçando”, depois lamentou que o sentimento de Pence “não tenha sido igualmente experimentado e celebrado pelo homem para quem ele trabalha na Casa Branca”. Mas, nesse estágio, pouco importa na verdade aquilo que se passa com Trump. O presidente dos Estados Unidos não está mais em condições de impor sua vontade nesse assunto. Tendo constatado essa impotência, Moscou tira consequências dela.
“Na periferia da Otan”
Em setembro, manobras militares russas sem precedentes depois da queda do Muro de Berlim devem mobilizar perto de 100 mil soldados, marinheiros e aviadores nas proximidades da Ucrânia e dos países bálticos. O New York Times respondeu à iniciativa com um artigo de capa que lembra aqueles que o jornal publicou entre 2002 e 2003 alimentando a campanha de pânico contra as chamadas “armas de destruição em massa” do Iraque. No texto não falta nem mesmo o coronel norte-americano anunciando de forma sombria: “Toda manhã, quando acordamos, sabemos quem é a ameaça”. Também não faltou o inventário do arsenal russo, ainda mais aterrorizante pelo fato de estar acompanhado de uma disposição para “campanhas de desinformação”, nem a evocação dos veículos de combate da Otan, que, entre a Alemanha e a Bulgária, “param para deixar crianças brincar a bordo”. Mas o mais delicioso nesse modelo de jornalismo (embalado pelo Exército) foi seguramente o momento em que, para localizar os exercícios de Moscou em seu próprio território e na Bielorrússia, o New York Times teve de recorrer à expressão “na periferia da Otan”…13
A partir de agora, qualquer tentativa de apaziguamento com Moscou vinda de Paris ou de Berlim será considerada uma capitulação por um establishment neoconservador que retomou o controle em Washington e veementemente condenada pela quase totalidade da mídia norte-americana. Chegamos a um ponto em que, debruçando-se sobre a forte queda de popularidade do presidente francês, o New York Times desencavou uma explicação, espelho perfeito de sua obsessão: “A recepção luxuosa oferecida a Donald J. Trump e Vladimir Putin, tanto um como o outro pouco amados na França, sobretudo entre a esquerda, não o ajudou”…14
Os Estados europeus conseguirão deter a engrenagem militar que se desenha? Eles têm vontade de fazer isso? A crise coreana deveria em todo caso lhes ter lembrado que Washington é indiferente aos potes quebrados longe dos Estados Unidos. Preocupado em atribuir credibilidade à ameaça nuclear do presidente Trump no Extremo Oriente, o senador republicano Lindsey Graham deixou escapar em 1º de agosto que, “se milhares de pessoas morrerem, elas morrerão lá longe, não aqui”. Ele acrescentou que o presidente dos Estados Unidos compartilhava seu sentimento: “Ele me disse isso”.
*Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.
[Editorial publicado na edição 122 – setembro de 2017]
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