Tucanos em extinção: a direita moderada está morrendo?
Um gesto desesperado — tão mais simbólico quanto estratégico — que rompeu a polarização PSDB x PT e abriu caminho para a ascensão de novos atores e discursos: a direita radical, o lavajatismo, o populismo bolsonarista…
30 de outubro de 2014, quatro dias após o segundo turno das eleições presidenciais. Derrotado por uma estreita margem de apenas 3%, o candidato do PSDB à presidência, Aécio Neves, convoca uma coletiva de imprensa para contestar publicamente o resultado das urnas — atitude inédita na trajetória de um partido até então identificado com a estabilidade democrática e o respeito às regras do jogo eleitoral.
Por que, afinal, 2014 foi diferente? Para compreender esse momento, é preciso recuar até o fervor das manifestações de junho de 2013. O Brasil vivia os ecos de um protesto difuso e antissistêmico, cujo foco inicial — o preço das passagens — logo se diluiu num mal-estar mais amplo contra a classe política. Em 2014, esse descontentamento ganharia contornos ainda mais agudos com a Operação Lava Jato, que expôs um esquema bilionário de corrupção envolvendo empresas estatais, grandes empreiteiras, operadores financeiros e líderes partidários — com destaque para figuras centrais do PT e seus aliados.
A rejeição ao governo petista crescia, mas não o suficiente para garantir a vitória da oposição. Diante da derrota, Aécio jogou sua última ficha: lançou dúvidas sobre a legitimidade do pleito. Sem saber, rompia com uma tradição de seu próprio partido e abria a tampa da caixa de Pandora — contribuindo, ainda que indiretamente, para o envenenamento progressivo do debate público, a radicalização do antipetismo e o desgaste institucional que levaria ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016.
Foi também nesse vácuo de credibilidade que a extrema-direita encontrou solo fértil para emergir, conduzindo Jair Bolsonaro ao poder em 2018. Ironia das ironias: passados mais de dez anos desde a derrota de Aécio, o PSDB, protagonista da transição democrática, agoniza — vítima de seus erros, de seus silêncios e de seu pacto tardio com a erosão da própria democracia que um dia se orgulhou de defender.
As origens dos tucanos: a socialdemocracia tropical
Fundado em 1988, ainda sob o clima de entusiasmo da Assembleia Constituinte, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) foi a primeira grande legenda nacional surgida após a ditadura militar. Nasceu como uma dissidência progressista do PMDB, à época um aglomerado ideologicamente heterogêneo, que abrigava desde líderes conservadores até militantes marxistas do MR-8, passando por quadros moderados e socialistas democráticos oriundos do PTB e do PSB pré-ditadura.
Inspirado na tradição teórica da USP e liderado por grandes nomes como Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Mário Covas e André Franco Montoro, o PSDB pretendia ocupar o centro reformista da política brasileira, sintetizando valores do socialismo democrático, do liberalismo político e do Estado de bem-estar europeu. Rejeitava tanto o comunismo autoritário quanto o conservadorismo fisiológico do PFL. Em resumo, o PSDB queria ser a modernidade política traduzida em um partido.

Mas o sonho não durou. Já em 1989, na primeira eleição direta para a presidência após o regime militar, a candidatura do tucano Mário Covas ainda refletia esse espírito de centro-esquerda, disputando espaço com nomes como Leonel Brizola. No entanto, a queda do Muro de Berlim (1989) e o colapso da União Soviética (1991) redefiniram o eixo político mundial. Assim como partidos comunistas e trabalhistas da época, o PSDB iniciou uma transição gradual para o centro — movimento que se intensificaria nos anos seguintes.
Em 1994, apenas seis anos após sua fundação, o PSDB alcançou o poder. O sociólogo e ex-ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso (FHC), impulsionado pelo sucesso do Plano Real, venceu a eleição ainda no primeiro turno. Para isso, no entanto, foi necessário se aliar ao PFL — a ala liberal-conservadora herdeira da ARENA. O vice na chapa, Marco Maciel, era figura histórica do regime militar e símbolo dessa aliança pragmática.
A conquista do Planalto teve um preço ideológico: o partido abandonou qualquer veleidade de esquerda e consolidou-se como uma referência de centro-direita gerencial, comprometido com a estabilidade macroeconômica, a reforma do Estado e a atração de investimentos. O PSDB passou a advogar o receituário neoliberal então em voga: promoveu uma ampla agenda de privatizações (Vale do Rio Doce, Telebrás, estatais de energia, Rede Ferroviária Federal), flexibilizou o papel da Petrobras, abriu o setor de petróleo à iniciativa privada e alinhou-se às demandas do mercado financeiro global.
Por outro lado, é inegável que o governo FHC conseguiu controlar a inflação — uma conquista que trouxe alívio à população e promoveu certa sensação de bem-estar. Além disso, iniciativas como o Bolsa Escola, no segundo mandato, marcaram o início de uma política pública de transferência condicionada de renda, posteriormente ampliada e reformulada por Lula.
Dessa forma, FHC foi reeleito com relativa facilidade, derrotando caciques poderosos como Lula, Brizola e Ciro Gomes ainda no primeiro turno. O PSDB se tornava, enfim, o polo central das direitas moderadas e das classes médias urbanas, enquanto o PT se consolidava como o principal representante da esquerda nacional.
O segundo governo, porém, marcaria o início do desgaste. A crise cambial de 1999, o arrocho salarial, o socorro ao sistema bancário e a crescente identificação do PSDB com o discurso tecnocrático e elitista contribuíram para desidratar sua popularidade. Embora tenha deixado legados importantes, o partido passou a ser visto como distante das demandas populares — e foi nesse vácuo que o PT de Lula ascendeu ao poder em 2002, encerrando o ciclo tucano no comando da presidência da República.
Os anos de polarização
O desempenho razoável na eleição de 1989, as vitórias em primeiro turno em 1994 e 1998, e a chegada ao segundo turno em 2002 consolidaram o PSDB como um dos polos centrais da Nova República. Ao lado do PFL, seu aliado histórico, o partido se tornou sinônimo de viabilidade eleitoral e estabilidade institucional. Durante anos, toda projeção sobre a sucessão presidencial girava em torno do mesmo embate: PSDB versus PT. Nesse cenário, os tucanos assumiram naturalmente o papel de epicentro ilustrado do antipetismo: contavam com ampla capilaridade político-social, tinham apoio dos grandes meios de comunicação, governavam capitais e estados estratégicos e dispunham de uma máquina partidária sólida.
Com a ausência de uma alternativa viável à direita, o PSDB passou a abrigar um conjunto cada vez mais heterogêneo de atores — desde intelectuais identificados com a social-democracia, até liberais entusiasmados com as forças do mercado e conservadores de matiz moralista. O partido que nascera como alternativa reformista passou a funcionar como guarda-chuva das direitas, incapaz, no entanto, de manter coesão programática entre seus quadros.
Em 2006, com o escândalo do Mensalão, o PT enfrentava sua primeira grande crise de legitimidade, e o PSDB vislumbrou ali a chance de retorno ao Planalto. Foi então lançado Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo, como o nome capaz de derrotar Lula. Era a quinta eleição presidencial consecutiva em que o presidenciável tucano vinha de São Paulo, revelando uma limitação geográfica e simbólica que enfraqueceria a legenda nos anos seguintes. Lula foi reeleito, e o PSDB manteve sua posição de polo oposicionista — mas já dava sinais de fadiga diante da renovação popular do lulismo.
A eleição de 2010 aprofundou esse declínio. A vitória da desconhecida Dilma Rousseff sobre José Serra escancarou a dificuldade crônica dos tucanos em romper as fronteiras do Sudeste, especialmente em conectar-se com o eleitorado popular do Norte e do Nordeste. A geração paulista envelhecia politicamente, sem conseguir oferecer respostas ou atrair novos quadros.
Foi nesse contexto que, em 2014, o partido apostou suas fichas em Aécio Neves. Neto e herdeiro político de Tancredo Neves, Aécio personificava a esperança de renovação: jovem, articulado, carismático, boa aparência e governador bem avaliado de Minas Gerais. Sua candidatura empolgou os mais velhos pela memória de seu avô, e os mais jovens pela imagem de eficiência e modernidade. Parecia a fórmula ideal para derrotar um PT em crise, desgastado por denúncias de corrupção, envolvido até o pescoço na Lava Jato e identificado com o aparelhamento das estatais. A insatisfação popular transbordava nas ruas desde junho de 2013, agora reorganizada em grandes manifestações com camisas amarelas, palavras de ordem difusas e um mal-estar generalizado contra “tudo isso que está aí”.
A vitória parecia ao alcance. Mas, com forte mobilização de sua base, ampla estrutura publicitária e uso intensivo da máquina pública, o PT virou o jogo nos últimos momentos e Dilma Rousseff foi reeleita por margem estreita. Foi então que o PSDB rompeu com a liturgia democrática que historicamente afirmava defender. Aécio Neves, incapaz de aceitar a derrota, lançou dúvidas sobre a legitimidade das eleições, questionou a confiabilidade das urnas eletrônicas e deu início a um ciclo de deslegitimação institucional até então inédito desde a redemocratização. O gesto ecoava a tradição golpista latino-americana: quando não se vence pelo voto, desestabiliza-se o jogo.
Sem compreender a própria derrota, o partido preferiu bagunçar o tabuleiro do jogo. E, ironicamente, foi esse gesto desesperado — tão mais simbólico quanto estratégico — que rompeu a polarização PSDB x PT e abriu caminho para a ascensão de novos atores e discursos: a direita radical, o lavajatismo, o populismo bolsonarista… São todos filhos bastardos de um antipetismo que os tucanos ajudaram a fomentar, mas não conseguiram — ou não quiseram — controlar. O monstro cresceu e parecia fora de controle.
O fenômeno João Doria e o início do fim
Aécio Neves foi tragado pelo próprio discurso. Pouco depois de contestar o resultado das eleições de 2014, o então senador teve seu nome envolvido nas investigações da Operação Lava Jato — que, ironicamente, havia ajudado a legitimar como bandeira política contra o PT. Um dos episódios mais emblemáticos foi a gravação em que o tucano pedia R$ 2 milhões a um empresário investigado, somada à denúncia de ameaça de morte a seu primo, caso fosse delatado. O tombo foi profundo: chegou a ser afastado do mandato pelo STF, escapando por pouco da cassação. Internamente, seu desgaste rachou o partido. Nomes históricos, como Alberto Goldman e Tasso Jereissati se distanciaram publicamente, denunciando o esvaziamento ético da sigla.
Derrotado, dividido e ideologicamente à deriva, o PSDB passou a buscar uma figura de impacto — alguém que encarnasse a promessa de devolver à legenda os dias de prestígio. Foi nesse vácuo que emergiu João Doria, empresário bem-sucedido, herdeiro político de um deputado federal cassado pela ditadura militar, e celebridade televisiva. Doria se filiou ao PSDB em 2016 já exigindo sentarsentar na janela: venceu as prévias para disputar a prefeitura de São Paulo, desbancando lideranças tradicionais e impondo seu estilo agressivo e personalista, distanciando-se do perfil cavalheiresco da intelectualidade tucana.
Ao conquistar a prefeitura, tratou o partido como um trampolim, e não como um projeto coletivo. Disputou o governo do estado em 2018 antes mesmo de concluir o mandato municipal, deixou a cidade nas mãos de Bruno Covas e venceu no embalo do discurso ‘lavajatista’ e da onda conservadora que levou Jair Bolsonaro ao Planalto. Em seu mandato, adotou uma política econômica marcadamente liberal, promovendo privatizações em série e tentando se equilibrar entre um verniz de tecnocracia moderna e um discurso vazio anticorrupção.
Mas Doria não disfarçava sua ambição nacional. Ao assumir o Palácio dos Bandeirantes, já anunciava que não cumpriria o mandato até o fim — seu projeto era disputar a presidência em 2022. Entretanto, o rastro de conflitos internos, o estilo centralizador e a forma como instrumentalizou o partido minaram qualquer apoio consistente dentro da legenda. Renunciou ao governo e acabou abandonando a vida pública sem conseguir viabilizar sua candidatura presidencial.
Tarde demais. Em 2022, o PSDB alcançou seu ponto mais baixo. Pela primeira vez em sua história, não lançou candidatura própria à presidência da República, optando por apoiar a chamada “terceira via”, encarnada por Simone Tebet (MDB), numa aliança esvaziada e sem vigor eleitoral. O resultado foi catastrófico: a legenda elegeu apenas 18 deputados federais, mesmo em federação com o Cidadania (antigo PPS), um número pífio frente aos 99 deputados federais e 7 governadores conquistados em 1998.
O maior símbolo da derrocada tucana talvez tenha sido a saída de Geraldo Alckmin, um de seus quadros mais emblemáticos, que trocou o PSDB pelo PSB para compor, como vice-presidente, a chapa de Lula — o mesmo adversário que enfrentara em 2006. A aliança, impensável poucos anos antes, escancarava a falência programática e eleitoral do partido que Alckmin ajudou a construir.
Outros nomes outrora influentes, como José Serra, Ricardo Trípoli e José Aníbal, sequer conseguiram se eleger deputados federais por São Paulo. No Rio de Janeiro, no Ceará e em Pernambuco, o PSDB não elegeu um único parlamentar. Apenas em Minas Gerais, Aécio Neves, o artífice da crise, sobreviveu politicamente. No Rio Grande do Sul, uma tênue esperança se manteve com a reeleição de Eduardo Leite, uma das poucas lideranças remanescentes com viabilidade de futuro e alto capital político.
Cláusula de barreira e o apagar das luzes
A federação com o Cidadania, articulada às pressas para superar a cláusula de barreira de 2% nas eleições de 2022, foi um casamento por conveniência — e, como tantos outros, fadado ao divórcio. No Rio de Janeiro, o Cidadania, agora liderado pelo deputado Comte Bittencourt, acusou a desorganização do PSDB de ter comprometido o desempenho da federação, optando por romper a aliança antes mesmo da próxima disputa. O que era para ser uma tábua de salvação revelou-se um fardo.
A ruptura ocorre quando o que restou do PSDB tenta negociar sua incorporação ou fusão com outra legenda de maior musculatura. De um lado, Aécio Neves defende o retorno simbólico às origens por meio de uma incorporação ao MDB: — uma volta melancólica à casa que o partido abandonou em nome da renovação democrática. Do outro, o diretório paulista aposta na absorção pelo PSD de Gilberto Kassab, que já opera como fiador do centro político brasileiro e amplia sua influência a cada debandada tucana. Correndo por fora, circulam rumores de aproximação com o Podemos — o velho PTN da família Abreu, reciclado como legenda de aluguel — ou até mesmo com o Republicanos — braço político da Igreja Universal —, o que evidenciaria a perda total de qualquer coerência ideológica por parte dos tucanos.
A indefinição sobre o próximo passo tem acelerado a fuga de quadros relevantes, como a governadora de Pernambuco, Raquel Lyra, que deixou o PSDB rumo ao PSD em busca de estabilidade institucional e canais de interlocução com o governo federal. O partido, esvaziado e fragmentado, já não oferece nem identidade, nem estrutura, nem futuro.
Se o próximo passo é incerto, o desfecho parece inevitável: o PSDB dificilmente alcançará os 2,5% da cláusula de barreira em 2026. Com isso, sua relevância política será reduzida a um resíduo simbólico, tornando-se ainda menos atraente em eventuais negociações para fusões ou incorporações. A hipótese de federação partidária está descartada, pois o PSDB tornou-se um cadáver pesado demais para qualquer legenda carregar. É isso que o partido virou: um zumbi institucional, vagando sem rumo pela República em decadência, com a certidão de óbito já lavrada. Vítima de um sistema que ajudou a construir, das suas próprias contradições ideológicas e da radicalização conservadora que, mesmo sem querer, alimentou ao longo de anos de ambiguidade e omissão.
Mas é melhor que o fim não se arraste por muito tempo. O PFL o aguarda, ao lado da UDN, da ARENA e do PTB de Roberto Jefferson, na eternidade silenciosa dos livros de História, onde descansam os partidos que já se embriagaram com o poder, mas não souberam se reconciliar com o país que ajudaram a deformar.
Leandro Gavião é Pós-doutorado em História (UFRJ), professor da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e da Escola do Legislativo do Estado do Rio de Janeiro (ELERJ).
Guilherme Galvão Lopes é Doutorado em História, Política e Bens Culturais (FGV), professor de História, pesquisador do LEPPEM (UFRRJ) e autor do livro “Brizola 62: da Guanabara para o Brasil”.