Tudo posso em Luigi que me fortalece
O que temos diante de nós é uma patologia social: as injustiças de um sistema empresarial focado no lucro geram um mal-estar na vida cotidiana de algumas pessoas
Em 1967, Guy Debord escreveu La société du spectacle (A sociedade do espetáculo), no qual apresentou uma crítica contundente à forma como os processos de alienação e controle exercidos pelo capitalismo se disseminavam desenfreadamente tanto entre os atores da esquerda quanto da direita. Sua principal crítica concentra-se na função dos meios de comunicação de massa como dispositivos centrais para canalizar e direcionar a opinião pública, impondo o que fosse necessário para manter a hegemonia e seguir as exigências da moda. Quase 60 anos se passaram desde a publicação dessa obra, mas seu diagnóstico permanece atual; pelo contrário, os sintomas apontados por Debord tornaram-se ainda mais graves com o passar dos anos. Desde a era do rádio, do cinema e da TV mencionada por Debord, avançamos para o surgimento da internet, da computação e, posteriormente, das redes sociais. Essas inovações, articuladas a um estilo de vida cada vez mais moldado pela algoritmização da existência, demonstram que os meios de comunicação de massa não desapareceram, mas se adaptaram ao longo do tempo, acompanhando os avanços tecnológicos e as demandas do sistema. As formas podem ter mudado, mas o conteúdo permanece o mesmo.

Assim, Debord chama de espetaculares todos os fenômenos imersos na estrutura do espetáculo, ou seja, aqueles que são construídos para ocupar um palco público com o propósito de se tornarem mercadorias consumidas por um espectador. A imagem, nesse contexto, é uma experiência projetada para ser consumida e assimilada a partir da posição passiva de quem está assistindo, aquele que recebe os conteúdos transmitidos por um meio específico de comunicação. Mas por que Debord e suas ideias são relevantes para nós? Porque, na estrutura de uma sociedade tecno-autoritária como a contemporânea, onde as fronteiras entre o real e o virtual se tornam cada vez mais tênues no cotidiano, o espetáculo se estabelece como a imagem dominante, exercendo uma influência profunda sobre todos nós, habitantes de um mundo transformado em plateia eterna da mídia de massa corporativa — hoje representada pelas redes sociais. É nesse ponto que Luigi Mangione entra em cena.
Não vou discutir aqui os detalhes do ocorrido, pois já existem outros meios de comunicação que o fizeram com mais profundidade. Tampouco pretendo apresentar especulações jurídicas ou éticas. Por um lado, isso não cabe a mim, já que não sou advogado; por outro, reduzir o assassinato de Brian Thompson a um julgamento moral simplista — dizer se foi ‘bom’ ou ‘ruim’ — seria um reducionismo que merece outro espaço para debate. O que quero propor é uma reflexão sobre a agitação que o caso gerou em determinados setores da esquerda e entre críticos do sistema. Talvez, influenciados por um espírito sempre disposto a enxergar o advento do fim do capitalismo a cada quatro anos, muitos veem Luigi como um messias proletário, uma espécie de Jesus Cristo que desceu do céu dos trabalhadores para iluminar qual deveria ser a práxis revolucionária do futuro.
A primeira coisa a esclarecer é que, não, o caso de Luigi, por mais que piadas e memes o apresentem de forma grandiosa, não indica que o colapso do sistema esteja próximo. Na verdade, o prognóstico para 2025 é ainda mais crítico do que para 2024. No entanto, a ideia propagada nas redes sociais é clara: Luigi teria feito algo que todos nós, acostumados à sujeira da vida cotidiana, gostaríamos de fazer — reagir violentamente a uma injustiça em um sistema que, sempre que possível, nos estrangula. O assassinato de Thompson representa o ápice de uma sociedade em crise. A semelhança com o que é apresentado no filme Coringa é evidente: um sujeito exausto direciona sua raiva contra um indivíduo, eliminando-o. Há, nesse ato, um êxtase, uma satisfação, talvez até um prazer. No entanto, é necessário romper a bolha dos justiceiros e emancipadores sociais que combatem o sistema a partir da internet. A morte de Thompson, por si só, não mudará nada.
E essa ausência de mudança ocorre justamente porque Luigi representa fielmente o indivíduo contemporâneo: um sujeito que acredita que um ato individual, desconectado do coletivo, pode transformar uma estrutura como a mercantil. A UnitedHealthcare contratará outro CEO (the show must go on), e as injustiças produzidas pelo sistema de saúde e pelas empresas farmacêuticas nos Estados Unidos continuarão existindo, como há décadas. A morte de Thompson é apenas um caso isolado, que muitos querem enxergar como o colapso iminente do mundo em crise em que vivemos, mas que se reduz a um simples ato de vingança pessoal. Um ato protagonizado por alguém que, entre outras coisas, é um privilegiado com capital e que passou por uma situação que todos nós — seres de carne e osso que andam de metrô — já tivemos a infelicidade de enfrentar: a impotência diante de um sistema que, em vez de protegê-lo, o vê como um simples dano colateral.
Não, o que estamos observando aqui não é a luta de classes desenvolvida por Marx e Engels, tampouco o espírito absoluto a cavalo descrito por Hegel na Fenomenologia do Espírito. O que temos diante de nós é uma patologia social: as injustiças de um sistema empresarial focado no lucro geram um mal-estar tão profundo na vida cotidiana de algumas pessoas que as levam a tomar decisões desesperadas. Contudo, o espírito revolucionário não pode ser direcionado para uma erotização da violência, uma saída que, em contextos como os da América Central e da Colômbia, para citar dois exemplos, gerou consequências que ainda são sentidas atualmente. Isso não significa, porém, que não existam maneiras de canalizar essa economia libidinal — esse desejo que constitui a existência humana — para outras formas de produzir mudanças e mutações articuladas a um projeto coletivo. As lutas pela preservação da Amazônia, as lideranças sociais que enfrentam a violência política e social, os grupos que lutam pela memória das vítimas do Estado, e os coletivos que promovem espaços seguros para a saúde mental e física dos menos favorecidos são exemplos de atos verdadeiramente heroicos. Talvez, por não ocorrerem nos Estados Unidos ou pelas mãos de um mecenas, esses atos não sejam vistos sob as lentes do espetáculo.
A morte de Thompson não muda nada; é apenas mais um fenômeno dentro da violência tão frequente nos Estados Unidos. É comovente que alguns a comparem aos atos coletivos de V de Vingança, quando a reflexão final do filme destaca a importância da ação comum, do “nós” como potência de vida que não se rebaixa ao nível dos mestres. A emoção e a alegria que Luigi desperta em muitos setores da sociedade são compreensíveis: em um mundo onde a identidade é fragmentada e a vulnerabilidade é imposta como uma ontologia social, é fácil querer se identificar com alguém que faz algo que gostaríamos de fazer — como tirar a vida de um CEO. No entanto, o quadro geral é mais amplo. A luta de classes hoje, se é que ainda pode acontecer, não se trata de enforcar o burguês. Essa classe contra a qual se luta está escondida em um espaço de mercantilização, economia e dinheiro, não perceptível em lugares ou pessoas específicas. Não é Thompson, o CEO da UnitedHealthcare, quem faz a empresa girar, mas todo o sistema de acionistas e o aparato de desempenho que mobiliza a mais-valia extraída dos contribuintes do setor de saúde.
Não quero cometer o erro de interpretar a raiva como um sentimento errado; pelo contrário, a raiva precisa ser conduzida corretamente. Ela deve incitar o desejo por mudança, por algo mais, e não se limitar a ser uma chama que consome tudo em seu caminho, até encontrar uma força ainda maior que a extinga. Luigi não descobriu nada de novo: a violência há muito é vista na América do Sul como um condutor de raiva social e política. É justamente por isso que, há tempos, foi abandonada como método em muitos países da região. O espetáculo quer nos convencer de que Luigi revelou algo inédito, mas, na realidade, está apenas reciclando velhas narrativas, agora com um tom de pele mais claro — exatamente como a indústria cultural dos Estados Unidos costuma fazer. Não é luta de classes, não é o Coringa e, certamente, não é V de Vingança. É apenas mais um exemplo de como uma sociedade baseada no espetáculo consegue romantizar algo que, em outras regiões, já foi pensado e tentado, mas que, devido às transformações estruturais da sociedade, não pode mais ser replicado da mesma maneira.
Juan David Almeyda Sarmiento é estudante de doutorado em filosofia da Universidade Federal de São Carlos. Pesquisador e professor da Universidade Industrial de Santander (Bucaramanga-Colômbia), assim como integrante de vários grupos de pesquisa do Brasil.