Quem quer uma intervenção militar?
8 de agosto de 2017
A direita está nas ruas. E, segundo os organizadores da Marcha da Família com Deus – O Retorno, não deve deixá-las tão cedo. “Hoje foram 5 mil pessoas. A próxima terá 10 mil!”, bradava a partir do carro de som uma das organizadoras ao final do manifestação, que aconteceu em São Paulo no sábado, 23 de março. 50 anos depois do ato que reuniu 500 mil pessoas no trajeto de um quilômetro e meio entre as praças da República e da Sé, a reedição da Marcha da Família teve uma composição bem diferente da passeata que consolidou o apoio civil ao golpe militar de 1964. Mas seus participantes, estimados em 500 pela Polícia Militar, eram unânimes na crítica ao comunismo, que tem, para eles, o Partido dos Trabalhadores como principal ameaça.
“Os poderes estão corrompidos, isso é fato”, resume Cristina Peviani, de 51 anos, que reivindica para si a proposta do ato. Ela explica que tudo começou com uma conversa entre amigos em dezembro, que resultou na criação de um evento no Facebook. ‘Sei que general não é político. O Exército deve ser usado para um momento de crise, não em ditadura. Queremos que acabem com os três poderes e criem novos partidos, mas com ficha limpa’, disse. Com esse discurso, Cristina entrou em contato com outros dez colegas que conhecia de outros protestos. Eles, então, criaram o Movimento Brasileiro de Resistência (MBR).
“Nós somos resistência contra o desgoverno, como na Venezuela”, diz Isabella Trevisani, de 17 anos, que também organizou o ato. Moradora de Ferraz de Vasconcelos, município que faz divisa com São Paulo pela zona leste, ela já tentou criar um partido conservador. Hoje, três anos depois, Isabella avalia que esse não é o caminho: “As urnas eletrônicas são fraudadas, não há garantia de voto”. Ela engrossa o coro com Cristina no pedido por uma intervenção militar, que alega ser legal com base no artigo 142 da Constituição Federal.
“Apesar de todos os avanços da Constituição na garantia de direitos sociais e individuais, ela tem algumas amarras autoritárias e esse artigo é uma delas”, avalia o advogado Renan Quinalha, autor do livro Justiça de Transição – Contornos do Direito. “É um artigo que não mudou significativamente a relação entre poder civil e poder militar. Ele coloca as Forças Armadas como guardiã da democracia”. No entanto, Renan esclarece que é necessário haver uma demanda de um dos três poderes para uso das Forças Armadas, sobretudo da presidência, que é o comandante-chefe dessas instituições. “Saindo de uma transição negociada como a brasileira, os militares conseguiram colocar uma série de garantias e proteções a eles no que se refere à posição deles na democracia”, justifica.
‘Não apoia, nem desapoia’
Entre uma entrevista e outra, como as tantas concedidas à imprensa nos últimos dias, Cristina e os demais membros do MBR cruzam a cidade em busca de novos partidários. Nos dias que se seguiram ao ato, o grupo se reuniu com diversos pastores evangélicos – “que não querem colocar seus nomes neste momento”, como disse Cristina ao Le Monde Diplomatique – e pequenos empresários.
Mas, nos últimos meses, alguns políticos já estavam envolvidos com o grupo. À reportagem, Isabella cita como importantes para a realização do ato o deputado federal da bancada ruralista Ronaldo Caiado (DEM-GO), o também deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Romeu Tuma Júnior, que foi Secretário Nacional de Justiça entre 2007 e 2010, durante o governo Lula.
Procurado, a assessoria de comunicação de Ronaldo Caiado disse à reportagem que o deputado não falaria sobre o assunto e se limitou a informar que o ruralista “não apoia, nem desapoia” a Marcha da Família. Já Romeu Tuma Júnior disse não concordar com o evento: “Apoio uma manifestação contra o estado de coisas que estamos vivendo, mas não apoio uma intervenção militar”. “Eu sou a favor de que a gente realize mudanças pelo voto. Eu sou contra qualquer ditadura, inclusive a que a gente está vivendo, que é de esquerda. Ainda acho que existem pessoas de bem que podem, através do sistema democratizado, consertar os rumos do país”, explica. Jair Bolsonaro não foi localizado.
Além de São Paulo, a Marcha da Família com Deus foi marcada simultaneamente em outras 200 cidades no país. Quase todas contaram com menos de uma centena de manifestantes. No Rio de Janeiro – onde Jair Bolsonaro esteve presente ao lado de cerca de 150 outras pessoas –, o movimento tem como uma de suas principais articuladoras Marta Serrate, de 59 anos. Candidata a deputada federal pelo PHS em 2010, não foi eleita após obter votos de 98 eleitores do estado. Na internet, Marta ficou conhecida após protagonizar, em vídeo, uma discussão com um jornalista francês, um diretor de cinema e um jovem vestido de Batman.
Para o ato seguinte, que aconteceu no vão-livre do MASP no último domingo (30), Marta e Cristina divulgaram vídeo com apoio público de Coronel Telhada (PSDB), que integra a chamada “bancada da bala” na Câmara dos Vereadores de São Paulo.
Trabalho de base
Além de reuniões com políticos, empresários e pastores, os organizadores da marcha também panfletaram em portas de igrejas, faculdades e nas ruas do centro da cidade. Ao menos no discurso, as decisões entre os organizadores são tomadas coletivamente, sem estruturas hierárquicas. Problemas do cotidiano que formaram parte das pautas de junho de 2013, como a qualidade da saúde e da educação, são usados para aproximar a suposta necessidade de intervenção militar. “Os professores saem formados pela USP preparados por apostilas do MEC para incentivar o marxismo cultural. Isso é a educação do nosso país”, define Isabella.
Também de junho vieram algumas das palavras de ordem gritadas pelos manifestantes, ainda que ressignificadas. O convite “vem pra rua”, feito aos transeuntes, é um exemplo. Antes restrito aos atos de esquerda, na Marcha da Família sua entonação adquire força imperativa.
Para avaliar a reedição da Marcha da Família, Isabella retoma o bordão “o povo acordou”, repetido à exaustão a partir de 17 de junho de 2013. Nesta data, os protestos contra os aumentos das tarifas do transporte público se espalharam pelo país e adquiriram outras pautas, de maneira difusa, depois de uma repressão violenta da Polícia Militar de São Paulo ao ato da semana anterior. Isabella conta que o grupo já se conhecia há cerca de três anos de protestos contra a corrupção e contra o Foro de São Paulo e que participou, também, dos atos de junho.
“A análise das mídias sociais mostra que a direita começou a ficar muito mobilizada virtualmente olhando para a luta contra o aumento como inspiração. Até então, eles não estavam fazendo nada”, analisa Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo (USP). Pablo considera que a direita tentou mudar o rumo dos protestos e dar maior visibilidade às pautas contra a corrupção: “Embora eles tenham conseguido ampliar a pauta, não conseguiram subordinar essa pauta da corrupção ao transporte. Mas a direita conseguiu levar um monte de gente despolitizada para a rua com uma pauta que estava mais ou menos controlada por eles, que é o anti-petismo”.
Pablo não minimiza a baixa adesão de pessoas na reedição da Marcha da Família com Deus: “Em geral mobilização é de quem está sem poder e a direita não está precisando se mobilizar. Um dos sinais disso é quanto esse discurso que a gente viu na Marcha da Família está afinado com o do establishment. A direita controla a política econômica e os meios de comunicação estão completamente dominados”.
A socióloga Carla Cristina Garcia, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), considera haver uma ascensão conservadora no ocidente: “Existe uma agenda conservadora contra grupos sociais que estão fora do circuito cristão da tradição, da família e da propriedade. Isso acaba se refletindo aqui por aqui. Cada país tem uma motivação, mas isso reverbera justamente porque hoje você tem um movimento social que se organiza através das redes sociais e que está vinculada com movimentos do mundo inteiro”.
No caso do Brasil, Carla avalia existir uma “proximidade de agendas muito bem articulada pela direita” e pessoas nos atos atraídas por essas pautas que “não sabem muito bem o porquê de estarem lá, mas que fazem volume”. “Daqui para a frente, isso resulta em mais pessoas conservadoras eleitas nos próximos mandatos e aí todas as conquistas de direitos ficam impossíveis”, pondera.
Outros grupos
A reedição da Marcha da Família com Deus também foi oportuna para o MBR realizar novos contatos. A articulação atraiu outros grupos de direita, como o nacionalista Ordem Dourada e o Revoltados Online, que têm interlocução direta com o MBR. Da maçonaria, também estiveram presentes o cartorário Marcos Prieto, de 52 anos, e o bancário Luciano Mateus, de 42 anos. Apesar das vestimentas maçônicas características, eles disseram ter ido individualmente ao ato para conhecer os organizadores e as propostas, que serão levadas aos demais membros da fraternidade para discussão sobre um possível apoio.
Na linha de frente do ato, um grupo de cerca de 20 homens chamava atenção. Quase todos tinham cabelos raspados, vestiam camisetas brancas e botas ou coturnos nos pés. Nos braços, uma fita azul amarrada sobre a camiseta e um risco preto feito com caneta grossa para tecido os identificavam. Eles também seguravam bandeirinhas azuis amarradas a grandes canos de ferro e nos momentos de maior tensão – que envolveram uma perseguição a uma anarquista que circulava na Praça da Sé – apertavam o passo e, em grupo, gritavam “oi, oi, oi”.
Apesar dos vários elementos que os distinguiam dos demais manifestantes, um rapaz alto e de troncos largos com um chamativo crucifixo preso ao pescoço dizia aos jornalistas, que insistentemente perguntavam de que grupo ele fazia parte, pertencer simplesmente “ao povo brasileiro”. Inicialmente identificando-se à reportagem como Gustavo, ele rapidamente se corrigiu e passou a dizer que seu nome era Moisés. Não quis dizer seu sobrenome: “Ninguém aqui é indivíduo hoje. Hoje nós somos a voz do povo, que está cansado”.
Com o objetivo declarado de fazer a segurança dos demais manifestantes, esse grupo ouvia atentamente, no início do ato, as instruções dadas Moisés, que dizia: “Localizou um esquerdista armado com coquetel molotov, canivete, qualquer coisa, derruba, imobiliza”. “Isso daqui”, prosseguiu balançando uma abraçadeira de nylon, “é para prender o camarada e chamar a polícia”. Depois, os presentes foram divididos em três grupos, separados por marcas numéricas em suas camisetas feitas na hora com caneta para tecido.
Durante o ato, Moisés subiu ao carro de som, de onde os membros do MBR e outros grupos falavam aos manifestantes, mas não falou no microfone. Ele foi descrito pela reportagem a Isabella e Cristina, que disseram não se lembrar dele. Um colega de Moisés afirmou ao Le Monde Diplomatique ter participado de algumas das reuniões, mas disse que não poderia falar em nome da organização e citou alguns nomes do Movimento Brasileiro de Resistência, como o de Cristina, que estariam como aptos a falar.
Ainda antes do final da passeata de um quilômetro e meio, colegas de Moisés que se vestiam de maneira semelhante e com quem andaram ao longo do ato olhavam para trás e observavam as pessoas atrás com sorriso no rosto. Em determinado momento, um deles não se conteve: “Puta que pariu, mano! Estamos fazendo história! Coisa linda!”. E comemorou, sendo seguido pelos demais, aos gritos: “Brasil! Brasil! Brasil!”.
No sábado seguinte, 29 de março, um novo ato foi marcado no MASP. Com a feira de antiguidades que tradicionalmente se realiza no local, o grupo de cerca de 150 pessoas se manteve o tempo todo próximo à calçada e em frente ao carro de som alugado para a ocasião. Os rostos presentes eram quase os mesmos encontrados na semana anterior no centro de São Paulo. Ali eles cortaram quatro bolos de aniversário que tinham, sobre eles, velas com os números cinco e zero, indicando que o aniversariante era o golpe de 1964, para o qual cantaram parabéns. Até o momento, nenhum novo ato foi marcado, ainda que as falas ao microfone do carro de som tenham insistido na realização de outras marchas.
Leia mais sobre o tema:
A direita está nas ruas. E, segundo os organizadores da Marcha da Família com Deus – O Retorno, não deve deixá-las tão cedo. “Hoje foram 5 mil pessoas. A próxima terá 10 mil!”, bradava a partir do carro de som uma das organizadoras ao final do manifestação, que aconteceu em São Paulo no sábado, 23 de março. 50 anos depois do ato que reuniu 500 mil pessoas no trajeto de um quilômetro e meio entre as praças da República e da Sé, a reedição da Marcha da Família teve uma composição bem diferente da passeata que consolidou o apoio civil ao golpe militar de 1964. Mas seus participantes, estimados em 500 pela Polícia Militar, eram unânimes na crítica ao comunismo, que tem, para eles, o Partido dos Trabalhadores como principal ameaça.
“Os poderes estão corrompidos, isso é fato”, resume Cristina Peviani, de 51 anos, que reivindica para si a proposta do ato. Ela explica que tudo começou com uma conversa entre amigos em dezembro, que resultou na criação de um evento no Facebook. ‘Sei que general não é político. O Exército deve ser usado para um momento de crise, não em ditadura. Queremos que acabem com os três poderes e criem novos partidos, mas com ficha limpa’, disse. Com esse discurso, Cristina entrou em contato com outros dez colegas que conhecia de outros protestos. Eles, então, criaram o Movimento Brasileiro de Resistência (MBR).
“Nós somos resistência contra o desgoverno, como na Venezuela”, diz Isabella Trevisani, de 17 anos, que também organizou o ato. Moradora de Ferraz de Vasconcelos, município que faz divisa com São Paulo pela zona leste, ela já tentou criar um partido conservador. Hoje, três anos depois, Isabella avalia que esse não é o caminho: “As urnas eletrônicas são fraudadas, não há garantia de voto”. Ela engrossa o coro com Cristina no pedido por uma intervenção militar, que alega ser legal com base no artigo 142 da Constituição Federal.
“Apesar de todos os avanços da Constituição na garantia de direitos sociais e individuais, ela tem algumas amarras autoritárias e esse artigo é uma delas”, avalia o advogado Renan Quinalha, autor do livro Justiça de Transição – Contornos do Direito. “É um artigo que não mudou significativamente a relação entre poder civil e poder militar. Ele coloca as Forças Armadas como guardiã da democracia”. No entanto, Renan esclarece que é necessário haver uma demanda de um dos três poderes para uso das Forças Armadas, sobretudo da presidência, que é o comandante-chefe dessas instituições. “Saindo de uma transição negociada como a brasileira, os militares conseguiram colocar uma série de garantias e proteções a eles no que se refere à posição deles na democracia”, justifica.
‘Não apoia, nem desapoia’
Entre uma entrevista e outra, como as tantas concedidas à imprensa nos últimos dias, Cristina e os demais membros do MBR cruzam a cidade em busca de novos partidários. Nos dias que se seguiram ao ato, o grupo se reuniu com diversos pastores evangélicos – “que não querem colocar seus nomes neste momento”, como disse Cristina ao Le Monde Diplomatique – e pequenos empresários.
Mas, nos últimos meses, alguns políticos já estavam envolvidos com o grupo. À reportagem, Isabella cita como importantes para a realização do ato o deputado federal da bancada ruralista Ronaldo Caiado (DEM-GO), o também deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Romeu Tuma Júnior, que foi Secretário Nacional de Justiça entre 2007 e 2010, durante o governo Lula.
Procurado, a assessoria de comunicação de Ronaldo Caiado disse à reportagem que o deputado não falaria sobre o assunto e se limitou a informar que o ruralista “não apoia, nem desapoia” a Marcha da Família. Já Romeu Tuma Júnior disse não concordar com o evento: “Apoio uma manifestação contra o estado de coisas que estamos vivendo, mas não apoio uma intervenção militar”. “Eu sou a favor de que a gente realize mudanças pelo voto. Eu sou contra qualquer ditadura, inclusive a que a gente está vivendo, que é de esquerda. Ainda acho que existem pessoas de bem que podem, através do sistema democratizado, consertar os rumos do país”, explica. Jair Bolsonaro não foi localizado.
Além de São Paulo, a Marcha da Família com Deus foi marcada simultaneamente em outras 200 cidades no país. Quase todas contaram com menos de uma centena de manifestantes. No Rio de Janeiro – onde Jair Bolsonaro esteve presente ao lado de cerca de 150 outras pessoas –, o movimento tem como uma de suas principais articuladoras Marta Serrate, de 59 anos. Candidata a deputada federal pelo PHS em 2010, não foi eleita após obter votos de 98 eleitores do estado. Na internet, Marta ficou conhecida após protagonizar, em vídeo, uma discussão com um jornalista francês, um diretor de cinema e um jovem vestido de Batman.
Para o ato seguinte, que aconteceu no vão-livre do MASP no último domingo (30), Marta e Cristina divulgaram vídeo com apoio público de Coronel Telhada (PSDB), que integra a chamada “bancada da bala” na Câmara dos Vereadores de São Paulo.
Trabalho de base
Além de reuniões com políticos, empresários e pastores, os organizadores da marcha também panfletaram em portas de igrejas, faculdades e nas ruas do centro da cidade. Ao menos no discurso, as decisões entre os organizadores são tomadas coletivamente, sem estruturas hierárquicas. Problemas do cotidiano que formaram parte das pautas de junho de 2013, como a qualidade da saúde e da educação, são usados para aproximar a suposta necessidade de intervenção militar. “Os professores saem formados pela USP preparados por apostilas do MEC para incentivar o marxismo cultural. Isso é a educação do nosso país”, define Isabella.
Também de junho vieram algumas das palavras de ordem gritadas pelos manifestantes, ainda que ressignificadas. O convite “vem pra rua”, feito aos transeuntes, é um exemplo. Antes restrito aos atos de esquerda, na Marcha da Família sua entonação adquire força imperativa.
Para avaliar a reedição da Marcha da Família, Isabella retoma o bordão “o povo acordou”, repetido à exaustão a partir de 17 de junho de 2013. Nesta data, os protestos contra os aumentos das tarifas do transporte público se espalharam pelo país e adquiriram outras pautas, de maneira difusa, depois de uma repressão violenta da Polícia Militar de São Paulo ao ato da semana anterior. Isabella conta que o grupo já se conhecia há cerca de três anos de protestos contra a corrupção e contra o Foro de São Paulo e que participou, também, dos atos de junho.
“A análise das mídias sociais mostra que a direita começou a ficar muito mobilizada virtualmente olhando para a luta contra o aumento como inspiração. Até então, eles não estavam fazendo nada”, analisa Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo (USP). Pablo considera que a direita tentou mudar o rumo dos protestos e dar maior visibilidade às pautas contra a corrupção: “Embora eles tenham conseguido ampliar a pauta, não conseguiram subordinar essa pauta da corrupção ao transporte. Mas a direita conseguiu levar um monte de gente despolitizada para a rua com uma pauta que estava mais ou menos controlada por eles, que é o anti-petismo”.
Pablo não minimiza a baixa adesão de pessoas na reedição da Marcha da Família com Deus: “Em geral mobilização é de quem está sem poder e a direita não está precisando se mobilizar. Um dos sinais disso é quanto esse discurso que a gente viu na Marcha da Família está afinado com o do establishment. A direita controla a política econômica e os meios de comunicação estão completamente dominados”.
A socióloga Carla Cristina Garcia, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), considera haver uma ascensão conservadora no ocidente: “Existe uma agenda conservadora contra grupos sociais que estão fora do circuito cristão da tradição, da família e da propriedade. Isso acaba se refletindo aqui por aqui. Cada país tem uma motivação, mas isso reverbera justamente porque hoje você tem um movimento social que se organiza através das redes sociais e que está vinculada com movimentos do mundo inteiro”.
No caso do Brasil, Carla avalia existir uma “proximidade de agendas muito bem articulada pela direita” e pessoas nos atos atraídas por essas pautas que “não sabem muito bem o porquê de estarem lá, mas que fazem volume”. “Daqui para a frente, isso resulta em mais pessoas conservadoras eleitas nos próximos mandatos e aí todas as conquistas de direitos ficam impossíveis”, pondera.
Outros grupos
A reedição da Marcha da Família com Deus também foi oportuna para o MBR realizar novos contatos. A articulação atraiu outros grupos de direita, como o nacionalista Ordem Dourada e o Revoltados Online, que têm interlocução direta com o MBR. Da maçonaria, também estiveram presentes o cartorário Marcos Prieto, de 52 anos, e o bancário Luciano Mateus, de 42 anos. Apesar das vestimentas maçônicas características, eles disseram ter ido individualmente ao ato para conhecer os organizadores e as propostas, que serão levadas aos demais membros da fraternidade para discussão sobre um possível apoio.
Na linha de frente do ato, um grupo de cerca de 20 homens chamava atenção. Quase todos tinham cabelos raspados, vestiam camisetas brancas e botas ou coturnos nos pés. Nos braços, uma fita azul amarrada sobre a camiseta e um risco preto feito com caneta grossa para tecido os identificavam. Eles também seguravam bandeirinhas azuis amarradas a grandes canos de ferro e nos momentos de maior tensão – que envolveram uma perseguição a uma anarquista que circulava na Praça da Sé – apertavam o passo e, em grupo, gritavam “oi, oi, oi”.
Apesar dos vários elementos que os distinguiam dos demais manifestantes, um rapaz alto e de troncos largos com um chamativo crucifixo preso ao pescoço dizia aos jornalistas, que insistentemente perguntavam de que grupo ele fazia parte, pertencer simplesmente “ao povo brasileiro”. Inicialmente identificando-se à reportagem como Gustavo, ele rapidamente se corrigiu e passou a dizer que seu nome era Moisés. Não quis dizer seu sobrenome: “Ninguém aqui é indivíduo hoje. Hoje nós somos a voz do povo, que está cansado”.
Com o objetivo declarado de fazer a segurança dos demais manifestantes, esse grupo ouvia atentamente, no início do ato, as instruções dadas Moisés, que dizia: “Localizou um esquerdista armado com coquetel molotov, canivete, qualquer coisa, derruba, imobiliza”. “Isso daqui”, prosseguiu balançando uma abraçadeira de nylon, “é para prender o camarada e chamar a polícia”. Depois, os presentes foram divididos em três grupos, separados por marcas numéricas em suas camisetas feitas na hora com caneta para tecido.
Durante o ato, Moisés subiu ao carro de som, de onde os membros do MBR e outros grupos falavam aos manifestantes, mas não falou no microfone. Ele foi descrito pela reportagem a Isabella e Cristina, que disseram não se lembrar dele. Um colega de Moisés afirmou ao Le Monde Diplomatique ter participado de algumas das reuniões, mas disse que não poderia falar em nome da organização e citou alguns nomes do Movimento Brasileiro de Resistência, como o de Cristina, que estariam como aptos a falar.
Ainda antes do final da passeata de um quilômetro e meio, colegas de Moisés que se vestiam de maneira semelhante e com quem andaram ao longo do ato olhavam para trás e observavam as pessoas atrás com sorriso no rosto. Em determinado momento, um deles não se conteve: “Puta que pariu, mano! Estamos fazendo história! Coisa linda!”. E comemorou, sendo seguido pelos demais, aos gritos: “Brasil! Brasil! Brasil!”.
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