Um ano de ultraliberalismo de coturnos e pés de barro
Graças a esse acabrunhado keynesianismo de última instância e à irresponsável prática de vender ativos públicos para custear despesas correntes, o ultraliberal Paulo Guedes conseguiu enfim evitar o pior e chegar vivo a seu primeiro ano no comando da economia do país
O governo do capitão Bolsonaro completa um ano. É verdade que as pessoas ainda acordam de manhã, algumas continuam tomando café, outras vão à escola, os mais afortunados trabalham. Mas será que sobrevivemos? Isso que nos acostumamos a conhecer como Brasil ainda pode ser chamado de nação? Será que os interesses que atravessam este imenso território seguem dando liga?
Provavelmente 2019 ficará marcado na história como o ano da mais agressiva e radical destruição das instituições públicas brasileiras. O que a duríssimas penas levamos oitenta anos para botar de pé, Bolsonaro e sua trupe de inclassificáveis fizeram o que puderam para levar ao chão. Se na clássica reflexão da socióloga Sonia Draibe (Rumos e metamorfoses, 1985) falava-se da constituição da “ossatura do Leviatã” brasileiro por Getúlio Vargas, parece que com o ultraliberalismo rentista executado por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes estamos em processo de acelerada e intencional osteoporose. Não se requer muito para perceber que a razão primeira do governo atual é o ataque ao Estado e, mais do que isso, sua definitiva desidratação e estrutural impotência.
O percurso dessa saga regressiva, entretanto, tem se mostrado mais pedregoso do que sugeriam a propaganda mercadista e as estratégias, por conseguinte, um tanto errantes.
O ano começou com os analistas do mercado para lá de entusiasmados, projetando um crescimento do PIB que superaria a taxa de 2,5% no ano. Nas atas do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, nos relatórios das casas bancárias, nos jograis da mídia corporativa, a senha e a sanha eram uma só: com a reforma da Previdência e a limada de R$ 1 trilhão do Orçamento da Seguridade Social, a confiança seria restaurada, o animal spirit sairia da toca, a economia voltaria a bombar e o país, a sorrir. Só que não.
Já na triste Quarta-Feira de Cinzas de 2019 as taxas projetadas pelos sábios do mercado começavam a murchar. Com reforma da Previdência e tudo, de queda em queda, chegou-se às quadrilhas juninas com a mediana das estimativas do mercado triscando anêmicos 0,8%, o que significava que, a despeito do ciclo de reformas estruturais e após quatro anos de crise econômica, a economia voltava a perder fôlego.
No mercado de trabalho, o desemprego zunia em patamar historicamente elevado. Quase 13 milhões de mulheres e homens buscando em vão uma maneira de ganhar seu sustento. Entre os jovens, um em cada quatro começando a vida adulta como desocupado. Outros cerca de 5 milhões de pessoas submergiam na penosa condição do desalento, o que significa que não tinham mais condições econômicas ou anímicas para continuar procurando uma ocupação remunerada.
Mas Paulo Guedes insistiu. Sem pestanejar, conduziu um contingenciamento do orçamento federal que testou os limites das políticas públicas de saúde, educação, ciência e tecnologia, cultura, assistência social, meio ambiente etc. Motivado sabe-se lá por que tipo de desejo estranho, deixou 700 mil famílias na fila do Bolsa Família – apesar de todas estarem abaixo da linha da pobreza, aptas e cadastradas. Deu de ombros aos programas de pós-graduação, segurando os recursos das bolsas até os 45 do segundo tempo. No BNDES, depois de buscar sem sucesso revelar a fantasmagórica caixa-preta, travou a concessão de crédito ao setor produtivo, forçando o empoçamento de capital no caixa do banco para que, mais adiante, este fosse abiscoitado pelo governo central.

Mas Paulo Guedes piscou. Sem alarde, sem as bravatas costumeiras, na solidão dos corredores escuros de seu superministério – sim, em ato de populismo rastaquera, cortou as luzes dos ministérios no período da noite –, cedeu à realidade e sucumbiu a um keynesianismo torto e mal-intencionado: para dar fôlego político ao projeto de radical desmonte do setor estatal, abusou do Estado e decidiu dinamizar a demanda entregando os parcos recursos do FGTS para as famílias encalacradas do andar de baixo.
Como quando se despeja água em chapa quente, a partir de setembro deu-se início à liberação gradual dos saldos das contas ativas do FGTS. Sufocados por dívidas, pelo desemprego, pela estagnação dos salários, a grana extra no bolso dos trabalhadores transitou pelos meandros ressecados da economia, trazendo algum alento ao comércio e às atividades dos serviços. Em outra frente, colhendo os bons resultados do outrora renegado pré-sal, o governo privatista de Bolsonaro e Guedes surfou na herança dos governos do PT e viu a indústria extrativa puxar o crescimento da economia no terceiro trimestre. De quebra, por conta de R$ 100,5 bilhões conseguidos pela venda de diversos ativos das estatais da União e de outros R$ 69 bilhões embolsados com os bônus de assinatura auferidos no leilão da cessão onerosa dos do pré-sal, o governo reforçou o caixa com receitas extraordinárias, evitando o colapso completo da máquina pública.
Além disso, em outra demonstração de rendição à heterodoxia econômica, Paulo Guedes cansou de esperar o apoio de seus amigos da Febraban e preferiu copiar a bem-sucedida política de redução das taxas de juros nas linhas de crédito dos bancos públicos praticada por Guido Mantega durante os governos de Lula e Dilma. Com a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil cortando pela metade as taxas de juros para determinadas linhas à pessoa física, os outros três bancões privados tiveram de se mexer e, aos poucos, o crédito na ponta voltou a crescer.
Ironicamente, graças a esse acabrunhado keynesianismo de última instância e à irresponsável prática de vender ativos públicos para custear despesas correntes, o ultraliberal Paulo Guedes conseguiu enfim evitar o pior e chegar vivo a seu primeiro ano no comando da economia do país. Diferentemente do que ocorria tempos atrás, entretanto, agora a claque rentista bate palmas sem constrangimento para uma taxa de crescimento do PIB que antes era chamada de “pibinho” e que deverá ficar pouco acima de 1%, isto é, tão fraca como as registradas nos últimos dois anos.
O que esperar então para o ano que vem?
O ultraliberalismo de Guedes deverá continuar pulsando, mantido por aparelhos e soluções ad hoc. Com doses extras de FGTS a vitaminarem o consumo durante o primeiro semestre de 2020, espera-se uma leve aceleração do crescimento do PIB, que poderá alcançar uma taxa entre 2% e 2,5%. Isso, contudo, fará pouca diferença para a grande maioria da população brasileira. Lastimavelmente, as bases desse provável voo de galinha são demasiadamente frágeis, com reduzido efeito dinâmico sobre o conjunto das atividades econômicas, além de limitadas no tempo e concentradas em alguns poucos setores.
Se pelo lado da demanda o principal vetor de crescimento deve vir de um consumo anabolizado e de alguma recuperação do investimento no setor de petróleo e gás, pelo lado da oferta um dos propulsores da economia deverá ser a construção civil. Depois de uma profunda crise que fez o setor se retrair 34% ao longo de vinte trimestres consecutivos, desde meados de 2019 se nota uma discreta retomada das atividades no segmento de imóveis para alta renda, provavelmente refletindo o deslocamento de investimentos em títulos de renda fixa (que se beneficiavam da Selic alta) para fundos imobiliários. Além disso, ainda pelo lado da oferta, o setor da agropecuária também deverá ajudar a impulsionar o crescimento, beneficiado por uma safra 2019/2020 com potencial de ser a maior da história.
Entre os fatores que jogarão contra o desempenho da economia no próximo ano, destaca-se a deterioração de nossa balança comercial. Se por um lado a aceleração do crescimento doméstico deverá ampliar o volume de produtos importados, por outro nossas exportações, que já têm sofrido com a desaceleração do comércio internacional, deverão ser ainda mais prejudicadas em função do acordo firmado entre Estados Unidos e China, que poderá reduzir nossas vendas ao país asiático em até US$ 10 bilhões por ano.
Além disso, no que diz respeito à dinâmica dos gastos públicos e seus efeitos sobre a renda agregada, vale lembrar que, no apagar das luzes de 2019, o governo entregou ao Congresso Nacional três Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que, se aprovadas, representarão enorme constrangimento à política fiscal e à manutenção dos programas sociais de caráter universal instituídos pela Constituição Federal de 1988. A título de exemplo, entre as diversas barbaridades encaminhadas na chamada “PEC da emergência”, em nome da “responsabilidade fiscal intergeracional”, serão estabelecidos gatilhos que permitirão aos três níveis de governo reduzir a jornada e os salários do funcionalismo em até 25% sempre que as projeções fiscais indicarem risco de déficit. Isto é, ante uma perspectiva de crise, prefeitos, governadores e governo federal poderão mandar professores, médicos e enfermeiros para casa, a fim de que as contas públicas fiquem no azul, ajudando a deprimir ainda mais a renda e o consumo das famílias e, no limite, aprofundando a crise econômica e a própria arrecadação fiscal. Em outra frente draconiana, propõe-se flexibilizar os “mínimos constitucionais”, lançando como despesas realizadas os valores pagos a aposentados dos setores de saúde e educação. Todas somadas, essas medidas representam o rompimento dos pisos de gastos que minimamente garantiam a sustentação do Estado social brasileiro e que, a um só tempo, evitavam o agravamento das condições sociais nos momentos de crise e serviam como estabilizadores automáticos da própria dinâmica econômica.
Noves fora, o ano de 2020 deverá ter um crescimento medíocre e de fôlego curto, mas, por contraste com os cinco anos anteriores, suficiente para tuítes exultantes do presidente Bolsonaro e festejos da banda rentista, que tudo fará para esconder o socorro keynesiano e louvar os supostos efeitos positivos do ciclo de reformas liberais e antipopulares que engendraram.
Para além dessa disputa de narrativa, porém, a vida da enorme maioria dos brasileiros deverá continuar tragicamente igual. O mercado de trabalho poderá registrar um pequeno aumento de algumas ocupações precárias, com baixas remunerações, alta rotatividade e, na maioria dos casos, informais. Com isso, o consumo continuará fraco e dependente de novas e improváveis medidas de transferência de fundos públicos; e a inflação – a despeito do soluço da carne e dos efeitos da desvalorização cambial sobre alguns preços – deverá permanecer sob controle, em grande medida como decorrência da prolongada anemia que caracteriza a economia brasileira nestes tempos de liberalismo de mão pesada.
Marcelo Manzano é economista, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp e coordenador do programa Maestria Estado, Gobierno y Políticas Públicas da Flacso/Brasil.