Um brinde ao desajuste !
O emprego da palavra “desajuste” sempre focaliza a atenção sobre o enfraquecimento de um elemento parcial do sistema global, uma exceção confirmando a regra – é uma figura de retórica que consiste em confessar algumas faltas ocasionais para fazer aceitar um mal maiorFrançois Brune
No melhor dos mundos que é o nosso, os “desajustes” causam grande desordem. No entanto, não há razão para se afligir; a economia ocidental prova, por seus próprios deslizes, que avança irreversivelmente na via do progresso e isto em todos os níveis… 1Seu computador pifa? “Pequeno desajuste”, diz o especialista; “é normal”. Você se sente seguro: o defeito particular prova a excelência do todo.
O último foguete Ariane falha no lançamento. Falha de um motor? Vício de um microprocessador? Erro humano? “Desajuste!” Os técnicos analisarão, encontrarão. E poderemos recomeçar.
Incêndio em um túnel. Erro de projeto? Defeito de controle? Corte no orçamento destinado à manutenção? Desajuste.
Uma usina explode. Desajuste… Os técnicos pesquisarão, encontrarão e logo tudo funcionará como antes.
O serviço meteorológico se engana em suas previsões? Um sistema de auto-estradas é paralisado por nevascas previsíveis? Desajuste.
Um prisioneiro perturbado psiquicamente, colocado na mesma cela de um inocente em prisão provisória, o estrangula? É um “desajuste” do sistema carcerário (em fins de janeiro de 2002).
Não acontecerá uma segunda vez
O computador pifa? O foguete falha no lançamento, com um erro humano, falha de motor ou vício de microprocessador? Tudo não passa de “desajustes”
Na região do Yonne, tem-se muita dificuldade para esclarecer o “mistério das desaparecidas”. É lastimável; mas não passa de um “desajuste da justiça”.
O navio Erika e depois o Prestige encalham e derramam suas cargas. Desajustes! Aliás, totalmente excepcionais. Bruxelas não tinha sido advertida? Isto não deveria acontecer, assim dizem vocês. Certo. Mas houve, também neste caso, uma espécie de “desajuste”. A Comissão, de certa forma, “pifou” à sua maneira. Acalmem-se, da próxima vez… Não acontecerá uma segunda vez!
Nestes últimos anos, surgiram as bolhas especulativas prejudiciais aos mercados financeiros. Desajustes, certamente. O que dizer das falências da Enron e da Worldcom? Desajustes! “Esqueceram-se dos fundamentos”, explica Thierry Breton2; a solução, brilhante, nasce deles: vamos sair dos impasses do capitalismo reforçando ainda mais o capitalismo.
A democracia francesa teve alguns problemas com certos partidos? Desajuste. Fala-se, também, muito tecnicamente, “déficit”. Um “déficit de democracia” explicou o fracasso de Lionel Jospin, em abril de 2002… Com alguns desajustes de recompensa (do tipo “Allègre” ou “Michelin”). Mas, naturalmente, nada a ver com a situação econômica ou social.
Exceção que confirma a regra
Nos últimos anos, as bolhas especulativas prejudicaram os mercados financeiros. A solução brilhante: vamos sair dos impasses do capitalismo reforçando ainda mais o capitalismo.
Três observações podem ser feitas nesta lista diariamente renovável:
O emprego da palavra “desajuste” sempre focaliza a atenção sobre o enfraquecimento de um elemento parcial do sistema global, como se tratasse de uma exceção confirmando a regra. Qualquer que seja a catástrofe, sempre é um acidente menor que se coloca em destaque. Que vastos sistemas tecnológicos, perfeitamente “operacionais”, possam estar à mercê de um erro infinitesimal, de um “calcanhar de Aquiles” em miniatura, – isto parece não assustar ninguém. Proclama-se “desajuste”, persiste-se na via pomposa de uma funcionalidade tão frágil quanto sofisticada; para a infelicidade dos “irrealistas”, como Ivan Illich, que ousam incriminar o sistema funcional em seu conjunto.
Quando um Airbus 320 se chocou com o monte Saint-Odile, perto de Estrasburgo, há alguns anos, um comentarista alardeou: “Por que, a cada acidente, ousamos regredir a ponto de condenar o modernismo? O acidente de percurso, que é a falha técnica de um avião sofisticado, deve levar a questionar toda a evolução?”. Acidente de percurso… defeito técnico… irreversível evolução… Os efeitos perversos da modernidade “provam” a excelência da modernidade.
Interpretação abusiva? Não: esta lógica paradoxal é inerente à própria linguagem. O que é um “desajuste” ? Uma perturbação do funcionamento, diz o dicionário Petit Robert. Desta forma, quando falamos de desajuste do sistema digestivo ou do sistema nervoso, isto implica que reconhecemos o valor do sistema para nos limitar a deplorar apenas uma perturbação passageira. Mas isto leva à manipulação política quando transportamos a palavra a todos os tipos de realidades tecnológicas, econômicas, sociais, ecológicas, e até militares3. Pois, desta forma, legitimamos sua natureza e sua função no mesmo momento em que apontamos seus “desvios”. “Eufemizamos” as perturbações, abstendo-nos de apontar os culpados. O termo desajuste torna-se o cômodo pacote de justificativa de toda lógica funcional. Ele ratifica as desordens futuras e os vacina com antecedência.
“Vacina”: é exatamente isso, segundo Roland Barthes, esta figura de retórica que consiste em confessar algumas faltas ocasionais para melhor fazer aceitar um mal maior. Retórica além do mais sutil, pois, em sua extensão e em suas sábias complexidades, a palavra desajuste sempre parece conter a causa da qual ela descreve o efeito. O especialista que a emprega parece dominar o real. A opinião pública intimidada e o jornalista na falta de objeção, não têm o espaço para acusar a lógica do sistema que se desajustou. São ofuscados por uma razão técnica que dissuade a pesquisar a “Causa”. Focaliza-se sobre o “como” para impedir a emergência do “por quê”. E em cada caso, sob o artifício retórico, é a onipresença da ideologia funcional, garantia do mito do progresso que se configura. Como demonstrou Jacques Ellul, em “O Sistema técnico” 4, a regra é sempre “responder aos efeitos perversos do Sistema através de soluções técnicas que aumentam a perversidade do Sistema”. “Tecniza-se” exageradamente; engendra-se um potencial infinito de problemas que serão chamados de “desajustes”; tenta-se, a cada fracasso, aplicar remédios sofisticados, os quais aumentam a nocividade do sistema. E chegamos ao ponto dramático onde “não se pode mais des-tecnizar”. Exemplos?
Soluções “tecnizadas”
Para melhorar o problema da saturação das auto-estradas, a solução, nessa lógica, não é rever a expansão dos transportes rodoviários, mas aumentá-los radicalmente
As auto-estradas e os túneis estão saturados de caminhões. Seria necessário, para aliviar este tráfego e fazer com que certos vales respirem, regular, limitar, inverter a tendência. Seria necessário, principalmente, de forma radical, questionar a louca expansão dos transportes rodoviários por causa dos fluxos intensos… Em vez disso, o que se faz ? Cria-se novas auto-estradas, perfura-se custosos túneis e encoraja-se a demência do sistema acreditando que estes sejam os remédios para estes “desajustes”.
Deplora-se as violências mediáticas, principalmente na televisão. Seria necessário, pelo menos, regulamentar e ter a coragem de proibir. Seria necessário, principalmente e radicalmente, atacar a “tirania” da audiência resultante da absoluta submissão dos canais a toda poderosa publicidade. Em vez disso, agita-se a ameaça de medidas “liberticidas”, apela-se candidamente à educação das crianças pelos próprios pais deseducados, e logo virá a solução – imaginada há alguns anos – de um chip informatizado que permita criptografar as cenas traumatizantes, o que evidentemente resolverá o problema…
Desenvolvimento “sustentável”
Solução para o fracasso de nossos modelos nos países “em desenvolvimento”: um desenvolvimento “sustentável” que vai perenizar a falência de suas economias
É verdade que o petróleo suja nossas praias; mas não vamos, de qualquer forma, frear a livre circulação de um ouro negro que irriga toda nossa economia! Então, buscamos a solução técnica. E ela acaba de surgir! É um barco-aspirador capaz de absorver as capas de óleo que flutuam sobre as águas. Um barco que vai beber o mar! Fabricado pela Alsthom. Funciona movido a petróleo, o petróleo que ele sem duvida recolhe ao funcionar… Fonte de empregos, pois será necessário produzi-lo em série e será vendido no mercado mundial!
Nos desesperamos diante da derrocada do “desenvolvimento”, nestes países que se acreditavam “em vias de desenvolvimento” e isto apesar da ajuda de nossos engenheiros, de nossas ONG?s, de nossos empréstimos…e dos investimentos éticos de nossas empresas desinteressadas. Que fazer? Questionar os modelos de desenvolvimento que nós lhes tínhamos prescrito como os melhores? Vocês nem imaginam. Como nossas formas de auxílio se revelaram até hoje tão constantemente efêmeras, nós lhes propomos a partir de agora um desenvolvimento “sustentável” que vai perenizar a falência de suas economias perenizando seu modelo.5
Paz norte-americana
Nos alarmamos com as “guerras do Golfo” que se tornaram rituais. Mas elas são mini-desajustes de uma paz norte-americana que funciona maravilhosamente
Nós nos alarmamos com as “guerras do Golfo” que se tornaram rituais. Mas elas não passam de mini-desajustes de uma Paz norte-americana que funciona maravilhosamente sob o princípio do “Si vis pacem, para bellum” 6. A menos que seja a própria paz que, brecando as lógicas de guerra, apareça como um desajuste maior na inocente expansão do “way of life” norte-americano…
Na França, assistimos há alguns meses a uma “cascata de planos sociais”. “Desajustes !”, você vai dizer ? Absolutamente, não. Como para desmentir nossa bela análise, nunca nossos governantes empregaram a palavra fetiche! O que se passa, então? Nada mais que isso: os planos sociais não são desajustes. Eles são o sinal de uma economia liberal que galopa com toda saúde sob o chicote da feliz globalização…
Com tudo isso, não é de se espantar se nos surpreendermos sonhando… com um bom desajuste!
(Trad.: Celeste Marcondes)
1 – Ler Le Monde, de 23 de julho de 2002. A palavra «desajuste» campeia nessa página.
2 – “Para a crise do mercado, remédios do mecado”, assinala corretamente Serge Halimi no Le Monde Diplomatique, de setembro de 2002. Nada melhor para resolver uma crise comercial do que reforçar a lógica comercial da qual resulta essa crise.
3 – No Afganistão, alguns B 52 mataram americanos. “Desajustes”… Idem no Iraque onde a expressão “fogo amigo” mostra que “desajuste” já tem a sua função. Já no filme “O charme discreto da burguesia”, um militar, Piéplu exclamava com tranquilidade: “Se os americanos bombardeiam suas próprias tropas, é porque eles têm razão”.
4 – Calman-Levy, Paris,1997, livro esgotado.
5 – Ver Défaire le développement, Refaire le monde. La ligne d&#