Um conformismo conveniente
Nascida durante a Resistência e considerada uma referência por seus compromissos com a ética e a dignidade, a principal escola de comunicação da França – o Centro de Formação de Jornalistas – foi tomada pelo rei-dinheiro e pela lógica do mercadoFrançois Ruffin
Na França, há uma curiosidade no jornalismo: seus membros pertencem a uma das chamadas profissões “abertas”, que não exigem diploma para seu exercício1. E, na realidade, apenas 12% dos possuidores de uma carteira de jornalista estudaram num dos nove estabelecimentos credenciados: os Institutos Universitários, de Bordeaux e Tours, o Centro Universitário de Jornalismo, de Strasbourg, a Escola de Jornalismo e Comunicação, de Marselha, a Escola Superior de Jornalismo, de Lille, a Escola de Jornalismo, de Toulouse e, em Paris, o Centro de Formação de Jornalistas, a Celsa2 e o Instituto Prático do Jornalismo.
Essa frágil proporção esconde uma importante clivagem: de um lado, uma imprensa regional e uma imprensa especializada que procuram, maciçamente, profissionais sem diploma. De outro, os veículos mais famosos (a Agência France Presse, a France Inter, a emissora France 2 etc.), que consideram a passagem por uma faculdade “uma etapa quase indispensável”: “Encontrar um jovem e bom repórter que se tenha formado na base da experiência parece, atualmente, cada vez mais improvável nos grandes meios de comunicação nacionais3.” O que é uma evolução notável na profissão: onde se entrava pela porta dos fundos graças a um pistolão, hoje é exigido um título acadêmico.
A “elite” jornalística do CFJ
Mas nem todas as escolas levam a Roma. Se, por um lado, algumas faculdades (os dois Institutos Universitários, o Centro Universitário de Jornalismo, a Escola de Jornalismo e Comunicação e a Celsa) proporcionam o acesso a contratos de trabalho por tempo determinado nos veículos audiovisuais do interior, assim como as revistas, a “grande” imprensa tem preferência por dois estabelecimentos privados: a Escola Superior de Jornalismo, de Lille, e, principalmente, o Centro de Formação de Jornalistas (CFJ), de Paris, mencionado, às vezes, como a “ENA do jornalismo4“. O guia L?Etudiant, por exemplo, afirma: “O CFJ é para o jornalismo o que a Faculdade de Ciências Políticas é para a administração: uma escola de excelência5.”
A “grande” imprensa tem preferência por duas faculdades privadas: a Escola Superior de Jornalismo (Lille) e o Centro de Formação de Jornalistas (Paris)
Fundado em 1946, no centro de Paris, por jovens egressos da Resistência contra o invasor nazista, “o CFJ criaria uma estrutura permanente para o jornalismo francês6“. E formaria uma “elite”. Basta uma rápida consulta ao Anuário de ex-alunos: apenas dois mil jornalistas saíram do CFJ entre 1947 e 2002. Uma gota d?água em meio ao oceano de seus 32.768 colegas formados no mesmo período. Mas são aqueles dois mil que contam, nos veículos que contam: uns vinte no Figaro, na revista L?Express e na rádio Europe 1, uns trinta na emissora TF 1, quarenta no Libération, cinqüenta na emissora France 2, 65 no Monde e mais de cem na Agência France Presse (AFP)! Isso, enquanto a totalidade dos jornais regionais não emprega senão 68 ex-alunos do CFJ… Acrescente-se que, nas empresas em que trabalham, raramente esses diplomados ficam restritos à base da pirâmide: o citado Anuário constitui um autêntico catálogo dos jornalistas mais famosos da imprensa francesa (Franz-Olivier Giesbert, Laurent Joffrin, Pierre Lescure…), “diretores de redação” e outros chefes que tomaram o elevador da “ascensão social” e “ocupam posições de prestígio na hierarquia interna7“. Nada de espantoso, portanto, no fato de que os dois jornalistas mais influentes da França, os dois apresentadores mais credenciados do noticiário de televisão das oito horas da noite – Patrick Poivre d?Arvor, na TF 1, e David Pujadas, na France 2 – sejam egressos do CFJ…
Vazio intelectual e um discurso liberal
Semeando jornalistas bem cotados, que ocupam cargos de influência em meios de comunicação influentes, o CFJ determina, pelo menos em parte, o que é e o que deverá ser o papel da mídia. Foi edificada uma certa concepção da profissão que seus alunos espalham, progressivamente, pelas redações. De início, os professores louvavam as virtudes dos fatos em oposição aos comentários, com uma exigência da apuração do fato e da confiabilidade da fonte. Ao tipo de repórter aventureiro, como Joseph Kessel, ou ao redator talentoso, como Albert Camus, o CFJ contrapôs um modelo: o do profissional rigoroso, com um texto sem firulas (“claro, correto, conciso, completo”), que confirma com seriedade a informação de suas fontes. Numa profissão imersa na corrupção, os professores exortavam a honestidade intelectual e pecuniária, “em defesa dos valores morais e contra a lógica do lucro”. Esse esforços contavam com a simpatia da linha ascética de um Hubert Beuve-Méry8 e uma pesquisadora chegou a notar que, naquela época, na década de 50, “os redatores do jornal Le Monde compartilhavam das opiniões e da postura do CFJ9“.
A partir dessa época, no entanto, o jornalismo tornou-se bem menos cidadão do que lucrativo. Levas de intelectuais deixaram-se influenciar pela conquista de audiência junto à opinião pública e pela busca do lucro. A atual orientação do CFJ traduz claramente essa inversão ideológica, tanto através de sua pedagogia, quanto através de seu vazio intelectual e seu discurso liberal.
O “módulo CFJ”
Semeando jornalistas bem cotados em cargos de influência nos meios de comunicação influentes, o CFJ determina o que é e deverá ser o papel da mídia
“Um flash são cinco, seis, sete sílabas, tac-tac-tac. Nunca passa de quarenta segundos.” Nesse tipo de ensino, predominam a forma e a formatação, com receitas que se seguem e se assemelham: “Sempre que possível, evitem as orações subordinadas, as frases com mais de quatorze palavras.” “Dois minutos e quinze segundos para uma reportagem é uma enormidade para a televisão, é demais… Há um problema de tempo.” “Avaliem só uma intervenção com uma consoante gutural de quinze segundos…” A questão do sentido não deve ser avaliada. E quando um estudante propõe essa avaliação, o professor a descarta rapidamente, como se vê por este diálogo:
– Mas, num minuto não dá para dizer nada!…
– Bem-vindo ao mundo da televisão!… – responde, divertido, o professor que também é editor-assistente da LCI10.
Por ocasião da volta às aulas, o professor responsável pela matéria de “Jornalismo Impresso” teoriza sobre alguns objetivos normativos: “É possível que se diga que existem, na nossa profissão, alguns jornais ou jornalistas que não se enquadram na linha. Aqui, nós pediremos que essa linha seja seguida, se é que se pode dizer assim, que seja adotada como uma norma.” Uma semana mais tarde, irritado e exasperado com o excesso de “desvios” de seus estudantes, desabafaria: “Tudo bem, tudo bem! O fato é que existe um ?módulo CFJ? e é a ele que vocês devem se ater.”
Ordens e conselhos
E esse módulo impõe, acima de tudo, o acompanhamento do noticiário. Porque “o que fazemos é a notícia, e mais notícia, sempre a notícia”. E os aprendizes de jornalismo são orientados para o caminho adequado na busca da notícia, seja por ordens (“Se é boa, é boa, caso contrário não se justifica”), seja por conselhos fraternais:
Uma estudante: – Para quarta-feira, com a saída do filme sobre os trabalhadores da fábrica da Michelin, nós gostaríamos de voltar a discutir a condição operária…
O professor, também editor de um jornal: – Isso aí é mais um tema para revista, não é notícia. É melhor esperar para ver se surge outra coisa como notícia, algum tipo de notícia mais atual…
E notícia é o que o professor acaba descobrindo no jornal Le Parisien: “Estou vendo aqui que, na quarta-feira, há o jogo entre o Paris Saint-Germain e o Olympique de Marselha. Isso deve dar pelo menos uma página.” Os estudantes passam então a produzir as matérias com títulos como “De olho no OM (Olympique)”, “Fernandez (técnico de futebol) põe fim ao drama”, passando a “PSG-OM, o jogo que agita a cidade”, “Um cheiro de enxofre”, “Vai haver briga”, “Uma rivalidade histórica”, “O PSG com a bola cheia”… Sete artigos para um jogo que terminou zero-a-zero e com uma modesta saraivada de pedras.
O público “não está nem aí”…
Numa profissão imersa na corrupção, os professores do CFJ exortavam a honestidade “em defesa dos valores morais e contra a lógica do lucro”
Na realidade, o dogma da notícia esconde uma opção economista: pede-se ao jornalista que se isole da realidade, que renuncie a seus valores, caso os tenha, em proveito de uma hierarquia de informação que atinja um público maior. “Será que se deveria ligar o aquecimento central? Com o frio que fez hoje de manhã, essa é a pergunta que as pessoas estão fazendo. Isso é uma reportagem sobre uma notícia, isso envolve 60 milhões de franceses”, garante o professor responsável pela matéria “Jornalismo de Televisão”. Esqueçam-se as notícias com conseqüências diplomáticas ou sociais, pois o que prevalece agora é o interesse imediato pela audiência do programa, o que significa que o assunto é rebatizado de “notícia”.
Durante uma aula sobre televisão, por exemplo, Stéphane diz que gostaria de fazer uma reportagem sobre o comércio justo. O professor hesita:
– Eu preferiria, por exemplo, algo como: “O que tomam os franceses como aperitivo?”
– Mas isso não tem nada a ver…
– Tudo bem, mas será visto por oito milhões de telespectadores. Ao passo que essa sua campanha, sobre a “ética do consumo”, é desconhecida do público.
– Mas é justamente isso que eu quero. Interessar as pessoas, fazer com que descubram…
– É… (E puxa a pálpebra.) Não estão nem aí… As pessoas estão pouco ligando.
A imitação como forma de ensino
A atual orientação do CFJ traduz uma inversão ideológica, tanto através de sua pedagogia, quanto através de um vazio intelectual e do discurso liberal
O objetivo deliberado desse tipo de ensino é imitar os grandes veículos de comunicação. É o que confirma um professor por ocasião do lançamento da publicação semanal da escola: “Nos anos anteriores, produzimos publicações completamente sincronizadas com os concorrentes. Cobríamos as mesmas notícias que as revistas L?Express ou Le Point. Não demos nenhuma barriga. Espero que nosso produto deste ano tenha o mesmo desempenho.” Curiosa definição de “desempenho”: conseguir fazer o mesmo “produto” que os jornalistas profissionais.
Existe, na televisão, um ritual que comprova essa preocupação constante: para preparar o noticiário (interno) das 18 horas, o professor responsável pela edição assiste às emissões das 13 horas da TF 1 e da France 2, fica de olho na I-télévision e na LCI11, separa os vários assuntos abordados, memoriza a ordem em que foram apresentados – será isso que os alunos terão que reproduzir fielmente no horário noturno: a morte de uma patinadora de esqui, o bacilo do carvão em Washington, os bombardeios norte-americanos no Afeganistão, as abóboras do Halloween… A cópia é tão perfeita que até os tempos são respeitados: “Sete minutos sobre a morte de Régine Cavagnoud, para um jornal de 20 minutos, está bom. PPDA (Patrick Poivre d?Arvor) reduzirá isso para um terço, mais ou menos, no jornal da noite.”
Outro óbito: Gilbert Bécaud, na véspera do fechamento do semanário. “Devem ser feitas quatro páginas”, é a ordem imediata do professor-editor. Mas, no dia seguinte, é tomado pela dúvida: “Os jornais diários deram na capa, mas não ocupou assim tanto espaço. Talvez tenhamos feito demais. Podemos discutir…” Mas os semanários o acabam reconfortando: “Vocês viram? Paris-Match deu a capa e uma matéria de quatro páginas. Portanto, estamos bem.” No Instituto Prático de Jornalismo, em Paris, os alunos copiam o Nouvel Observateur quase integralmente: paginação, estilo, títulos, assuntos…
O apetite pela produtividade
Existe um “módulo CFJ” que impõe, acima de tudo, o acompanhamento do noticiário. Porque “o que fazemos é a notícia, e mais notícia, sempre a notícia”
Como seria possível conceber uma “grande escola”, ainda por cima “de jornalismo”, sem uma biblioteca? Pois o CFJ é a prova de que isso é possível: a exemplo da busca de livros, existe uma “Documentação” – bastante modesta – com algumas revistas, um Quid, alguns dicionários, um manual de pontuação… No máximo, uma centena de obras de consulta e referência.
Essa indigência não decorre de previsão alguma; corresponde ao programa daquele estabelecimento, embora jamais seja formulada nesses termos: já que, para fazer jornalismo, não se exige saber algum, para que serviriam, então, esses instrumentos do saber? Na Escola Superior de Jornalismo de Lille, aliás, sobrevive um imenso acervo… raramente consultado, segundo o responsável pela documentação: “Quando entram para a faculdade de jornalismo, os estudantes praticamente param de ler livros (…), como se devessem, a partir de então, adquirir e interiorizar os reflexos daquilo que existe nas redações12.”
Os alunos já nem chegam a ler os ensaios que devem criticar. Benoît, por exemplo, devia fazer um trabalho sobre a guerra da Argélia. “Continue sua matéria sobre o livro de Jacques Duquesne”, aconselhou-a uma professora, jornalista do programa “France Culture”. “Mas eu nem abri o livro!…”, respondeu Benoît. “Não é preciso. Estamos com pressa. Basta você ler uma crítica do Monde.” A mesma professora repetiria essa mesma recomendação em relação a um filme de Claude Lanzmann (não projetado) e um estudo sobre os working poor. Não se trata de incompetência por parte dessa profissional: ela apenas incorporou o ritmo de seu trabalho, seu apetite pela produtividade e adotou os artifícios necessários. Isso porque, longe de prejudicar o jornalista, o desconhecimento dos assuntos constitui um trunfo: qualquer tipo de conhecimento inconveniente pode perturbar a síntese; a complexidade tomaria conta do apresentador, que poderia ultrapassar o tempo de um minuto e até – o limite absoluto – um minuto e 15 segundos…
O culto do “menos-pensar”
Em nome da “notícia”, os alunos produzem sete artigos para um jogo de futebol que terminou zero-a-zero e com uma modesta saraivada de pedras
Com quatro seminários realizados em dois anos, perdida em meio ao no man?s land das chamadas, aos flashes e às entradas em tempo real, a cultura geral limita-se a vegetar à margem da prática. Ainda mais inquietante é a ausência de reflexão na prática. Isso é flagrante nas microcalçadas do programa “Loft Story13” ou nas “infodiversões” de programas como o “Salão do Chocolate”. Mas também ocorre quando se trata de assuntos mais políticos. Os alunos escrevem incessantemente, durante três meses, “artigos” sobre as peripécias envolvendo questões como as aposentadorias, o PARE14, a redução da carga horária para 35 horas… sem ir além do noticiário recebido da Agência France Presse, sem saber coisa alguma sobre a Unedic15 ou sobre a gestão paritária, sem comparar “capitalização” e “distribuição”. Redigem seis páginas, para uma publicação semanal, sobre o “euro, romance de um nascimento”, sem o mínimo questionamento dos critérios estabelecidos pelo Tratado de Maastricht, suas conseqüências sociais, a soberania nacional etc. A nova moeda única é descrita, por exemplo, como “inovadora e, principalmente, necessária”: “Na realidade, difícil eram as relações comerciais no tempo do Mercado Comum (…), quando a flutuação das moedas podia fazer variarem, a qualquer momento, os preços de um país para o outro.” Essa avaliação não decorre tanto de uma opção quanto de uma não-opção. De uma não-reflexão que naturaliza os mecanismos históricos, financeiros e sociais. Que apresenta como necessário e positivo aquilo que existe. Que partilha docilmente do que é consensual.
É essa opção por baixo, esse “culto do menos-pensar”, que denuncia um aluno: “O que há é uma desesperadora falta de perguntas, de questionamentos de fundo, o que induz a um conformismo. Na escola, isso é desolador.” O CFJ não só não incentiva esses questionamentos de fundo, como os desencoraja. Mas a maioria dos estudantes também não os procura. Nunca há discussões entre eles, nunca há debates. Nada sobre o liberalismo, a ecologia, o papel do Estado, o fechamento da fábrica da Michelin… Nada. Ou melhor, em torno do filme Le Fabuleux destin d?Amélie Poulain – a favor ou contra? Fascistóide ou saudosista? – chegou-se a fazer uma breve discussão.
Aperfeiçoamento para quê?
O que prevalece, atualmente, é o interesse imediato pela audiência do programa, o que significa que o assunto é rebatizado de “notícia”
Um discurso público anêmico, um pensamento vazio… num lugar em que se formam os (presumíveis) agitadores da democracia. Como explicar esse aparente paradoxo? A culpa é dos tempos, sem dúvida, do desencanto. Esses jovens cresceram durante a crise, pertencem a uma geração pragmática, sem utopias nem ilusões. “É isso aí, o espírito dos tempos”, dizia Cornelius Castoriadis. “Tudo conspira na mesma direção, pelos mesmos resultados, ou seja, pela indignificância16.”
Acrescente-se a isso uma enorme homogeneidade social. Como discutir a tortura na Argélia, o Tribunal Penal Internacional ou a intervenção norte-americana no Afeganistão, se todos os alunos pensam o mesmo? Se todos eles são progressistas, todos modernos, todos de centro-esquerda? Quase todos simpatizantes de Bertrand Delanoë17, esse “Lawrence da Arábia que conquistou Paris”, esse “político imaginativo”, “um pouco visionário”, “paladino destemido” que “vai até o fundo” e nunca “banca a vedete18“?
Trata-se de jovens de classe média alta, que vivem uma juventude insípida e/ou feliz e não foram vítimas de quaisquer injustiças. Não têm, praticamente, qualquer tipo de raiva do mundo, salvo por alguns detalhes. Para que diabos serve o aperfeiçoamento de instrumentos teóricos que denunciem os sistemas escolar, financeiro e judiciário existentes – que até hoje os atendeu tão bem?
Evidências da lógica liberal
No Instituto Prático de Jornalismo, em Paris, os alunos copiam o Nouvel Observateur quase integralmente: paginação, estilo, títulos, assuntos…
O Centro de Formação de Jornalistas não parece o berço de uma reflexão subversiva sobre o mundo – e, muito menos, sobre o jornalismo. Jamais aquela faculdade recebe um lingüista, que poderia tornar as noções de “fato” e “notícia” menos naturais. Assim como não recebe um sociólogo, que poderia demonstrar os preconceitos e pressupostos da mídia. Nem mesmo um especialista na história da imprensa, que poderia relatar as lutas dos jornalistas pela informação. Jamais são mencionados Jules Vallès, Jean Jaurès ou Octave Mirabeau, nem quaisquer grandes nomes do jornalismo que “puseram a caneta na ferida” e para quem fazer uma reportagem implicava um compromisso ético. Quanto aos repórteres heréticos ou dissidentes – como Daniel Mermet, Denis Robert, Pierre Carles e outros -, jamais são apresentados como contramodelos, como uma janela que se abre.
Haveria o risco de que esses iconoclastas introduzissem uma distância crítica. Quando os professores-formadores se esforçam, ao invés disso, por inculcar certezas aos estudantes: é evidente que temos que produzir rapidamente; é evidente que temos que atrair a audiência; é evidente que temos que divulgar a loteria, a previsão do tempo, a cotação da Bolsa de Valores… E quanto mais se analisam essas evidências, mais evidentes elas se tornam. Objeto de pouca crítica, esse tipo de produção – que abrange os principais veículos de informação – parece natural. E, portanto, impossível de ser contestado em nome de uma causa (ignorada), de uma forma (desconhecida) ou de um conteúdo (não formulado).
Quando caem as máscaras…
“Faça a matéria sobre o livro de Duquesne”, diz a professora. “Mas eu nem abri o livro!”, responde o aluno. “Não é preciso. Basta ler uma crítica do Monde”
Longe os espíritos, os raros discursos reforçam esse hermetismo: só é legítima a palavra que legitima. E essa é a palavra dos convidados assíduos: a dos editores de Paris-Match, de La Croix, do canal France 2, do Parisien; a dos donos do Canal Plus, da RTL, do jornal Ouest-France; a dos diretores de Télérama, do Express, do Monde, da TF 1 ou do jornal L?Équipe… Um troca-troca de dirigentes pouco afeitos a rebeliões – eles, que conquistaram um confortável lugar no pináculo do “quarto poder”.
Suas idéias não questionam a ordem mercantil vigente, mas a justificam: “O único critério é o resultado, é a audiência ou a venda.” “Meu patrão dizia: ?Minha função, na imprensa, é a de detergente, e eu o assumo?.” “Nós não vendemos produtos, vendemos audiência.” “Nossa universo é o da informação, e portanto, o da mercadoria.” “Cada título de nossa editora deve ter um lucro de 10 a 15%.” “A lógica da mídia é a mesma que a do dono de um grande supermercado.” “O Monde é uma marca, e uma marca de peso.” Essas pequenas jóias fazem parte de uma antologia colhida aleatoriamente por ocasião do seminário “A mídia em seu ambiente”. O tema, praticamente exclusivo, foi o dinheiro. Em mão única: o dinheiro faz a felicidade dos jornalistas. A lenta invasão da imprensa pelo dinheiro? Uma fatalidade benéfica e nenhum professor incentivaria a crítica a essa tendência. Pelo contrário: todos se encantam com ela, numa unanimidade admirável.
Descobrir esse ponto de vista, o da cúpula, representa uma revelação esclarecedora. Principalmente quando caem as máscaras, sob o pretexto de que “estamos entre nós”, que “isto fica em família”, que “podemos falar abertamente” – quando o comércio da notícia deixa de se camuflar “sob o manto da cultura, do espírito, da virtude e da sabedoria19“.
Adaptando-se à demanda e às necessidades
Com quatro seminários em dois anos, perdida em meio a flashes e às entradas em tempo real, a cultura geral limita-se a vegetar à margem da prática
Pois é de um modelo que se trata. Caberá aos estudantes, em seguida, escalar a hierarquia dos grandes jornais. Caberá a eles assemelhar-se a esses chefes-diretores. Caberá a eles adotar essa linguagem, com um pano de fundo de golpes de marketing, de rentabilidade, de índices de audiência. Trata-se de um processo de perda da virgindade que o Centro de Formação de Jornalistas oferece a título de formação: “Como vocês são ingênuos!”, desabafa um professor. “A comunicação é uma indústria. Vende-se papel como se vendem legumes.” E trata-se de garantir que esses jovens percam seus pudores e pensem em suas carreiras: “Pediram-me que preparasse vocês para o dia em que serão responsáveis pelo orçamento de uma redação”, anuncia o ex-diretor do jornal La Tribune. “E é isso que lhes desejo, evidentemente.”
Qual é o papel do jornalista? Essa pergunta nunca é feita porque a questão não se coloca: o jornalista está ali para se adaptar à demanda do mercado. Qual é o papel do CFJ? Não perguntar já é responder: ele está ali para se adaptar às necessidades das empresas.
Aliás, os chefes se orgulham disso. Segundo eles, o Centro se faz adequado às “necessidades dos contratantes”, encontra “uma solução para a oferta e a demanda inadequadas”, sabe “responder às evoluções do mercado20“, “adapta o ensino, de forma permanente, às necessidades da profissão e da mídia21“, “estabelece uma relação com um ambiente-mídia em evolução constante22“, para “entregar os estudantes prontos para o batente23“, “polivalentes e preparados para assumir suas funções de imediato24“.
Uma escola voltada para o management
Durante as décadas de 80 e 90, esse economicismo impregnou, progressivamente, todos os cursos de formação de jornalistas. Mas isso é mais flagrante no CFJ, que foi mais longe e mais rápido em seu ajuste ao mercado. Uma reviravolta liberal que as circunstâncias históricas explicam.
Ocorre uma não-reflexão que naturaliza os mecanismos históricos, financeiros e sociais. Que apresenta como necessário e positivo aquilo que existe
Por ocasião de sua fundação, o Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Jornalistas (Centre de formation et perfectionnement des journalistes – CFPJ25) era administrado de forma paritária – metade por sindicalistas e metade por patrões. Na primavera de 1998, deu entrada a um pedido de concordata que foi seguido por uma privatização de fato: um grupo de editoras – RMC, La Vie du Rail, Bayard Presse, France 2, France 3, Le Nouvel Observateur, Hachette etc. – decidiu se unir para “salvar” o CFPJ. Na época, os empresários já detinham um amplo controle da estrutura. Principalmente através da contratação, para suas equipes, de alunos recém-diplomados. A partir de então, passariam a decidir de forma direta, pois a TF 1, a Havas, a agência Capa, o Monde, o Midi libre
François Ruffin é jornalista.