Um crime socioambiental sem precedentes
Os governos jogam para um segundo plano a relação entre comunidades e meio ambiente e, por isso mesmo, se omitem quando ambos estão em risco
O derramamento de petróleo que atingiu a costa do Nordeste em 2019 é um crime socioambiental sem precedentes por sua extensão e impacto a curto, médio e longo prazos. A ausência ainda de um culpado identificado não impede a avaliação da política pública oferecida pelo Estado brasileiro tanto para conter a progressão do petróleo como para apoiar, proteger e diminuir ou excluir os riscos à população devido ao contato direto ao petróleo ou a ingestão de alimentos marinhos como, peixe e mariscos.
Inclusive, para fins de atribuição de sentido que não descaracterize a gravidade do crime ocorrido o termo óleo pela Convenção Internacional sobre Preparo, Resposta e Cooperação em Caso de Poluição por Óleo, Decreto n. 2.870, de 10 de dezembro de 1998, o denomina em seu art. 2º, como “petróleo sob qualquer forma, inclusive óleo cru, óleo combustível, borra, resíduos petrolíferos e produtos refinados”. Trata-se, pois, como as próprias comunidades tradicionais têm afirmado, de petróleo.
Os pescadores e as pescadoras sabem que houve omissão e mau serviço oferecido pelo Estado brasileiro, por todos os entes federados, seja município, estado ou União. O descaso do Estado advém do equívoco de fundamentar e interpretar as ações públicas a partir de um referencial que desconsidera a perspectiva etnodesenvolvimentista assentada nos modos e usos do território que, comumente, as comunidades indígenas e tradicionais possuem no seu cotidiano.
Trata-se de uma percepção governamental que alija, joga para um segundo plano, a relação entre comunidades e meio ambiente e, por isso mesmo, se omite quando ambas estão em risco. É o caso do derramamento de petróleo, cujos efeitos foram elevados em razão da omissão e demora por parte dos governantes na contenção e apoio aos pescadores e pescadoras que tiveram contato direto com o petróleo.
A Constituição Federal, reinterpretada a partir da combinação do art. 1º, III, com o art. 225 e 231, aponta para outra fundamentação de ação governamental e de entidades privadas quando se trata das relações entre as pessoas e o meio ambiente. A perspectiva de centralidade do homem para o desenvolvimento de políticas públicas que não levem em conta os usos do meio ambiente já está descartada há muito. Atualmente, a conjuntura de interpretação constitucional indica o sentido ecosófico como orientador das ações públicas e privadas. Disso decorre que o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser entendido como dignidade da vida de todos os seres. A mudança de paradigma encerra um grande desafio necessário e urgente a ser enfrentado para a fruição dos direitos fundamentais.
De acordo com o artigo 3º, I, da Lei 6.938/81 se denomina meio ambiente o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas, portanto, não se restringe apenas ao ser humano, englobando outras espécies de seres vivos, incluindo vegetais.
Transportar petróleo pelos mares constitui uma atividade potencialmente poluidora. A composição do “óleo”, repleta de substâncias químicas agressivas se derramadas ao mar, além de se expandir rapidamente, impacta diretamente toda a biota marinha. Por isso mesmo o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo, de 1969, Decreto n. 83.540/1979, que estabelece a responsabilidade civil do proprietário do navio poluidor, bem como seguros obrigatórios para esse fim. Nesse sentido, a responsabilização primeira a ser realizada é daquele que provocou o vazamento, sendo possível, inclusive, a criminalização do responsável pela embarcação. Do mesmo modo, as entidades ou empresas ou países que contribuíram de algum modo para com a operação de transporte do petróleo também podem ser processadas e obrigadas a indenizarem pelos danos ambientais, sociais, econômicos e psicológicos decorrentes do vazamento.
O art. 1º, IV, da Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar (CNUDM), Decreto n. 99.165, de 12 de março de 1990, define poluição como “a introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substâncias ou de energia no meio marinho, incluindo os estuários, sempre que a mesma provoque ou possa vir a provocar efeitos nocivos, tais como danos aos recursos vivos e à vida marinha, riscos à saúde do homem, entrave às atividades marítimas, incluindo a pesca e as outras utilizações legítimas do mar, alteração da qualidade da água do mar, no que se refere à sua utilização e deterioração dos locais de recreio”.
Os agentes diretos e indiretos da poluição provocada pelo derramamento de petróleo, agredindo a vida em todas as suas dimensões, possibilitam a cada pessoa ou entidade impactada pela poluição e que pretendam uma reparação, em tese, a elegerem quem será responsabilizado. Tanto o poluidor direto como indireto podem ser responsabilizados pelas vítimas do derramamento do petróleo.
Clara, portanto, é a perspectiva de reparação aos pescadores e pescadoras do Sul da Bahia que sofreram direta e indiretamente os efeitos da depredação provocada pelo derramamento do petróleo. Entretanto, também é cabível considerar a omissão, falta ou o mau serviço prestado pelo Estado brasileiro, que deixou aos comunitários da região toda atividade de contenção e limpeza das praias.
O art. 211 da CNUDM estabelece que “os Estados (…) devem estabelecer regras e normas de caráter internacional para prevenir, reduzir e controlar a poluição do meio marinho proveniente de embarcações (…) destinados a minimizar o risco de acidentes que possam causar a poluição do meio marinho, incluindo o litoral e danos de poluição relacionados com os interesses dos Estados costeiros”. Cabe, portanto, aos Estados o dever de investir em programas, ações, tanto preventivas como preparatórias para possíveis danos provocados por derramamento de petróleo, pois o vazamento até mesmo de pequenas quantidades de petróleo também pode ocorrer continuamente e impactar o meio ambiente marítimo com frequência. Ou seja, não é preciso um derramamento enorme como o ocorrido para que o Estado diligencie sobre os serviços prestados e fiscalize os equipamentos utilizados ou a qualidade das embarcações que trafegam pelos mares costeiros brasileiros com petróleo. Não basta avaliar a documentação pertinente que valide o “bom” estado das plataformas e navios, é preciso análise qualitativa periódica sob pena de faltar com o serviço enquanto obrigação de zelar pela qualidade de vida de todos os seres.
A legislação é farta no sentido de prevenção e responsabilização por danos ambientais devido ao derramamento de petróleo. Tem-se, além da Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar (CNUDM), a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios, a Convenção Internacional sobre Preparo, Responsabilidade e Cooperação em caso de Poluição por Óleo, a Lei 9.966/2000 (Lei do Óleo), o Decreto 4.136, de 20 de fevereiro de 2002. Esse sistema normativo deve ser interpretado a partir de uma ideia central de prevenção e proteção socioambiental, um direito e dever fundamental a ser efetivado a partir de uma cooperação mútua.
A Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo, atualizada pelo protocolo de 1992, criou um Fundo Internacional para Compensação pelos Prejuízos Devidos à Poluição por derramamento de óleo, muito apropriado, aliás, para fins de indenização em relação às vítimas de derramamento. As ações necessárias para reparação, por exemplo, adequada à legislação brasileira, incluem desde a recuperação da área degradada, a cessação da atividade poluidora até a indenização às vítimas. Programas de prevenção organizados pelos estados são as melhores práticas para fins de evitar a ocorrência de danos que, comumente, tornam-se irreparáveis em razão da agressão e extinção de espécies nativas. Ou seja, ainda que seja possível a reparação nas modalidades acima indicadas, se for impossível o retorno ao status quo ante muitas vidas terão sido ceifadas. Por isso mesmo, a melhor ação estatal é preventiva, na organização da comunidade de pescadores e pescadoras, no oferecimento anterior de equipamentos protetivos em caso de ocorrência de um desastre, na elaboração de programas de educação e saúde em urgência e emergência, além de dotação de estrutura e serviços de saúde condizentes com a gravidade que um dano ambiental de derramamento de petróleo pode provocar na vida em sua dimensão mais ampla.
Uma vez ocorrido o evento danoso, cabe ao Estado voltar-se em todas as suas dimensões para conter e reparar os danos acometidos, pois, em caso de sua omissão, demora de atuação, inércia, o próprio Estado se transforma num agente poluidor, podendo ser responsabilizado civil e criminalmente pelos danos e crimes ambientais, levando em conta que pouco ou nada tenha feito para diminuir seus impactos.
Os pescadores e pescadoras da região sul da Bahia são unânimes em afirmar a inércia de todos os entes federativos, tanto para fins de contenção de danos como para prevenção e acompanhamento da saúde. Também se omitiu o Estado brasileiro na ausência de concessão de benefícios aos pescadores(as), que deixaram de trabalhar, pois apenas uma pequena parte conseguiu receber o auxílio governamental, arcando com todas as despesas e dificuldades inerentes à falta de recursos para a própria sobrevivência, incorrendo inclusive no risco de ingerir os próprios pescados que não conseguiam vender.
Os custos pela ausência de resposta satisfatória direta e de mitigação dos efeitos dos danos, pelo Estado brasileiro, enquanto ainda não se identificou o agente poluidor direto, estão disciplinados no Decreto n. 8.127, de 22 de outubro de 2013, segundo o qual, em seu art. 27, § 2º, “enquanto não identificado o poluidor, os custos relativos às atividades de resposta e mitigação serão cobertos pelo Poder Executivo Federal”.
Comprovados os efeitos danosos à saúde dos pescadores e pescadoras da região, a agressão ambiental à vida marinha, os lucros cessantes, ou seja, os recursos que deixaram de perceber para prover a família pelo período, a ausência de pagamento de benefícios aos afetados, caberá ao Estado arcar com tais necessidades. Cabe, pois, responsabilizar a União por todos os possíveis danos ocorridos em razão do derramamento de petróleo no sul da Bahia, em razão da inércia injustificada.
Antonio Armando Ulian do Lago Albuquerque, advogado e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Este texto foi produzido como relatório final do projeto “Diagnóstico das consequências do derramamento de óleo de 2019 nas comunidades de pescadores do Sul e Extremo Sul da Bahia: encontro interdisciplinar e interepistêmico de saberes comunitários e universitários”.