Um debate interditado
A discussão sobre a nova «Constituição» européia é esvaziada de conteúdo, para impedir que a população reconheça ali algo próximo de um arremedo dos estatutos do FMI ou da OMCBernard Cassen
Um espectro paira a ratificação do “tratado que estabelece uma Constituição para a Europa1 “, adotado pelos 25 membros da União no dia 18 de junho de 2004 e assinado em Roma em 29 de outubro. O perigo é que não seja compreendido ou, ainda mais grave, que seja compreendido bem demais. É verdade que um texto com 324 páginas, contando suas quatro partes, às quais se adicionam 460 páginas para dois anexos, 36 protocolos e 50 declarações, já afasta, de imediato, o leitor comum. Se ele toma a liberdade de comparar essa “Constituição” com a de seu próprio país, ele constatará que esta é de dez a quinze vezes maior (14,7 vezes no caso da França), o que não é um ponto positivo para o proclamado objetivo de “aproximar a Europa dos cidadãos”.
Se o cidadão modelo, desejoso de conhecer bem o que lhe pedem para aprovar, realiza uma rápida leitura do conjunto do texto – como se percorre os capítulos de um livro antes de comprá-lo -, sentirá algo estranho: o tratado tem várias palavras, freqüentemente repetidas, que são totalmente estranhas ao léxico constitucional. Alguém curioso que disponha de computador, descobrirá que, apenas nas quatro partes do tratado propriamente dito, «banco» aparece 176 vezes; “mercado”, 88 vezes; “liberalização” ou “liberal”, nove vezes; “concorrência” ou palavras com a mesma origem, 29 vezes; “capitais”, 23 vezes; “comércio” e seus derivados imediatos, 38 vezes; “mercadorias”, onze vezes; “terrorismo”, dez vezes; “religião” ou “religioso”, treze vezes2 .
Nenhum desses termos está presente na Constituição francesa, com exceção de “comércio”, que aparece duas vezes, e “religião”, presente uma vez. A dúvida surge então em nosso admirador das palavras: trata-se de uma “Constituição” européia, que, por sinal, lhe foi apresentada como laica, ou de algo copiado e colado dos estatutos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da carta da Organização Mundial do Comércio (OMC), complementada pelo Sr. George W. Bush quanto ao terrorismo e pelo Vaticano quanto à religião?
Resultado imprevisto
Em alguns países onde acontecerá consulta popular sobre a “Constituição”, o assunto está longe de ser definido
Compreende-se, então, a afirmação com todas as suas nuanças, e no espírito pluralista que é a regra no serviço público de rádio e televisão, de uma locutora da Radio France Internationale, em 4 de janeiro: “O recurso ao referendo pela França pode revelar-se catastrófico, já que a rejeição por esse único país condenaria o projeto para toda a Europa”. E de evocar mais adiante o “frisson previsível” que deve gerar um escrutínio cujo desfecho é ainda incerto… O grande inconveniente de uma consulta eleitoral, e particularmente de um referendo, é efetivamente que nunca existe certeza absoluta do resultado com antecedência. Pois, para entrar em vigor, e segundo seu artigo IV-447 que fixa a data máxima para 1º de novembro de 2006, o tratado deve ser ratificado por todos os Estados membros da União Européia (UE) 3 .
Dois procedimentos podem ser seguidos para a ratificação de um tratado, de acordo com as disposições constitucionais de cada país ou das escolhas dos governos: um voto do Parlamento ou um referendo. No caso presente, a via parlamentar foi escolhida em quinze países, e o referendo nos dez outros4 . Na primeira configuração, a menos que haja eleições legislativas inesperadas afastando do poder um governo signatário, a ratificação é garantida. Ratificação que, por sinal, já ocorreu na Hungria e na Polônia no outono de 2004.
Em contrapartida, para certos Estados onde acontecerá uma consulta popular, o assunto está longe de ser definido, o que é o caso, seguindo a cronologia prevista, da França, da Polônia, do Reino Unido, da Dinamarca e da Irlanda. No que diz respeito à França, vale lembrar que o tratado de Maastricht foi aceito com pouca folga em 1992. A Dinamarca o havia simplesmente rejeitado, como a Irlanda iria mais tarde rejeitar o tratado de Nice. O voto «não» dos dois pequenos países foram considerados pelos outros como nulo e não ocorrido, e eles foram orientados a organizar, cada um, um novo referendo levando à única resposta correta: o “sim”. O que acabou acontecendo.
Debate rasteiro
Em vários países, os partidos no poder e os de oposição se unem em um grande partido do “sim”, impedindo qualquer debate contraditório
As difíceis lembranças estão ainda presentes nos espíritos dos dirigentes europeus; assim que, sempre que possível – o que nem sempre foi o caso -, tomaram os cuidados necessários para que acidentes de percurso não acontecessem mais. Todos entenderam que o maior perigo estava na apropriação, pelos cidadãos, do conteúdo do tratado. Com base nisso, adotaram uma dupla estratégia. Primeiro, decidiram manter um silêncio absoluto sobre a essência do tratado – a terceira parte, intitulada “As políticas e o funcionamento da União”, na qual está a maioria das palavras citadas acima. Depois, apresentaram uma síntese altamente seletiva do texto, com destaque nas mudanças institucionais e tentando “desliberalizar” seu conteúdo liberal. Em seguida, quando um mínimo de debate público acontece, inicia-se a repetição de slogans simplistas ou alarmistas, que se resumem, no essencial, a duas idéias, expostas de várias formas: “Amo a Europa, então voto ?sim?”; “Se o ?não? vencer, vai quebrar a Europa e provocar o caos”.
A utilização de toda essa panóplia não é indispensável em todos os lugares. Em vários países, o consenso entre os partidos no poder e a maioria dos partidos de oposição, unidos em um grande partido do sim, impede qualquer debate contraditório. A opinião pública só conhecerá a versão publicitária da “Constituição”. É o caso da Alemanha, em que o Partido social-democrata, a Democracia Cristã e os Verdes vão votar como um só homem para ratificar o tratado no Parlamento, depois de o governo do Sr. Gerhard Schröder ter afastado a possibilidade, considerada por um período, de estabelecer a Lei fundamental para permitir a realização de um referendo.
É a mesma situação da Espanha, onde o Partido Socialista e o Partido Popular fazem campanha defendendo o sim no referendo de 20 de fevereiro. Nesse caso, existe porém um risco: o de uma taxa elevada de abstenções, capaz de relativizar a vitória, conquistada antecipadamente, do sim. Para minimizar esse risco, recorreu-se à contratação, pelo Sr. Jose Luis Zapatero, dos astros de grandes clubes de futebol, dentre os quais o Sr. Zinedine Zidane, em uma espetacular operação de «comunicação» a favor da “Constituição”. Essas estrelas vão realmente sacrificar seu treino físico e a ocupação de seu precioso “intelecto” para dedicar horas e horas à leitura e compreensão, particularmente estressantes, das cerca de 800 páginas do texto que se pede que “vendam”? Parece bem pouco provável… Bola nos pés no lugar de tratado nas mãos: atinge-se o topo do debate político do outro lado dos Pireneus!
Empreitada de desinformação
O esforço de desinformação feito pelas autoridades é fortemente apoiada por quase totalidade dos meios de comunicação
Na falta de boleiros multimilionários, e pelas mesmas razões da união partidária consagrada na Alemanha e na Espanha, os referendos previstos para ocorrer em Portugal, Países Baixos e Luxemburgo não devem provocar debate ou gerar surpresas. Resta, no primeiro trimestre de 2005, o caso da França, que mais assusta as capitais européias e a Comissão de Bruxelas. E por um bom motivo, pois, com a Bélgica, a França é, há um certo tempo, o único dos países membros da União Européia onde se dá um debate público sobre a “Constituição”, e de forma mais ampla sobre a construção européia; onde os textos são analisados e postos em perspectiva por uma quantidade significativa de partidos e movimentos.
Muitos desses protagonistas colocam a questão central em relação a esta construção: com sua incapacidade de ultrapassar a essência neoliberal, a “Constituição” representa o meio privilegiado de sacralizar de uma vez por todos os ditames do mercado e da concorrência5 – termos, como se viu, que são empregados 88 e 29 vezes. Empregados no texto original, mas não na apresentação que é feita nos documentos de “informação” oficiais! Tanto o livreto editado pelo ministério francês de Relações Exteriores quanto a brochura simplificada divulgada pela Agência de Publicações das Comunidades Européias6 conseguem um estranho tento: o termo “mercado” só aparece uma vez, e não há rastro algum de “concorrência” ou “capital”, que são palavras fundamentais do atual tratado, como também dos anteriores. Assim, 322 dos 448 artigos do conjunto do documento – os que compõem a terceira parte, ocultada como se fosse uma doença da qual se deve ter vergonha – são deliberadamente subtraídos dos cidadãos.
A empreitada de desinformação realizada pelas autoridades nacionais e comunitárias é fortemente apoiada pela quase totalidade dos grandes meios de comunicação, e às vezes de modo caricatural. Le Figaro assinala de modo bastante lúcido: “Assim como se viu no referendo interno do PS, todas as mídias e todos os partidos do governo, sem esquecer o establishment econômico, farão campanha pelo sim7 “. A linha editorial é muito mais clara na imprensa escrita reputada de centro-esquerda do que as naquelas que têm como leitores majoritários os eleitores de agremiações de direita. Para estes últimos, as tomadas de posição para o sim do Sr. Jacques Chirac, do Sr. Nicolas Sarkozy e da totalidade do governo Raffarin, sem evidentemente esquecer o Movimento das Empresas da França (Medef), são sinais suficientemente explícitos. Não é preciso nada além disso, a não ser para tentar facilitar a aceitação da candidatura da Turquia8 pelo Conselho Europeu de dezembro de 2004, que divide profundamente essa fração da opinião pública.
Engrenagem liberal
Tenta-se fazer o eleitorado esquecer que as políticas da União impulsionam as “reformas” da Previdência, dos seguros saúde e da educação
A “questão turca” do eleitorado de esquerda é a “questão liberal”, que está realmente inscrita na “Constituição”. Quando o Sr. Laurent Fabius – brincando, saliente-se, contra ele mesmo, levando-se em conta sua trajetória política – transgrediu a ordem estabelecida sobre o assunto em sua campanha pelo «não» dentro do Partido Socialista, foi veementemente chamado à razão. O editorial do Monde intitulado “O erro de Fabius9 ” – sendo que um erro seria mais grave que um crime, segundo Talleyrand – desencadeou uma operação de linchamento midiático, misturando todas as tendências, de uma violência sem precedentes contra o antigo primeiro-ministro. Com essa posição – provisoriamente – fora de jogo, é preciso agora fazer o eleitorado esquecer que as políticas da União inspiram e impulsionam as reformas da Previdência, dos seguros-saúde e da educação; que estimulam os deslocamentos de empresas10 ; que constituem a matriz das reestruturações e privatizações realizadas ou prometidas do que ainda resta das empresas públicas, e isto sob o lema da “livre e verdadeira concorrência” etc.
No fundo, trata-se de fazer os cidadãos acreditarem que as políticas liberais, principalmente as das últimas duas décadas, hoje gravadas no mármore da terceira parte da “Constituição”, não atingiam apenas a França, como, em outros tempos, a nuvem de Tchernobyl. De certa forma, o texto seria um quadro jurídico neutro, enquanto, ao mesmo tempo, se lembra que mais de dois terços das leis e decretos são a transposição no direito nacional de atos legislativos comunitários. Atos decididos precisamente com base nas disposições contidas no dito texto… É essa ligação que se deve, custe o que custar, evitar que os cidadãos façam.
Encontrar-se-á um exemplo instrutivo desse exercício de equilibrismo no recente debate na Assembléia Nacional sobre o devir dos Correios11 . A sra. Marylise Lebranchu, antiga ministra e atualmente deputada socialista do Finistère, acusou o governo Raffarin de ter “optado por um claro recuo do serviço público” – o que é o mínimo que se possa dizer – “fazendo acreditar que se tratava da simples transposição de uma diretiva técnica.” Ela não precisou que a diretiva técnica, que prevê nada menos do que a liberalização total dos serviços postais em 2009, havia sido aprovada, há certo tempo, por um outro ministro socialista, sr. Christian Pierret… E a parlamentar bretã, militante do sim, aponta um grande perigo que vai além do caso dos Correios: “É essa utilização da Europa que pode desencorajar uma maioria dos franceses”. De fato, não se trata apenas de uma utilização, mas também e sobretudo de uma aplicação pura e simples de decisões européias tomadas por governos que se identificam tanto com a social-democracia quanto com o liberalismo ou a democracia cristã.
Primazia do mercado
Na terceira parte do documento, é permanentemente lembrada a primazia da concorrência e do mercado
Para conter a ameaça do desencorajamento, que poderia ter conseqüências fatais nas urnas, a mídia do sim, que se orienta principalmente para uma opinião de esquerda ou centro-esquerda, iniciou uma operação-limpeza de três pontos sensíveis: a neutralidade ideológica da “Constituição”, os avanços sociais que comportaria e os serviços públicos que protegeria. Na conclusão do documento “Manual de uso do tratado”, Le Nouvel Observateur pergunta: “A Constituição européia é social ou liberal?” E responde: “Nem uma coisa, nem outra. Uma Constituição é uma forma e um conteúdo. São os dirigentes políticos que influenciam o conteúdo, e não as instituições12 “.
Admirável análise jurídica que faz pensar que os jornalistas não leram a terceira parte do documento, apesar de ser a maior, intitulada, repetimos – somos nós que fazemos o destaque -, “As políticas e o funcionamento da União”, na qual é permanentemente lembrada a primazia da concorrência e do mercado. Até chegar ao absurdo: o artigo III-131 estipula que todas as disposições devem ser tomadas para “evitar que o funcionamento do mercado interno seja afetado pelas medidas que um Estado membro possa ter que tomar em caso de problemas internos graves, afetando a ordem pública, em caso de conflito ou tensão internacional grave, constituindo uma ameaça de guerra”. Durante a guerra, os negócios continuarão…
No mesmo caderno, Le Nouvel Observateur aponta que “a principal inovação consiste no reconhecimento de direitos sociais” na segunda parte do tratado, intitulada “A Carta dos direitos fundamentais da União”. Na verdade, os direitos apenas são fundamentais no nome. Além de seu conteúdo representar uma regressão em relação ao direito nacional de muitos países13 – aborda a questão do “direito de trabalhar” e não o direito ao trabalho, de “acesso às prestações previdenciárias e serviços sociais”, o que supõe sua existência prévia, e não de direito à Previdência e direitos sociais etc. -, o campo de aplicação é estritamente circunscrito: afeta os Estados e as instituições européias “apenas quando têm correspondência com o direito da União” (artigo II-111).
Serviços públicos ameaçados
O tratado não fala de serviços públicos, mas de “serviços de interesse econômico geral”, para neutralizar a carga simbólica do termo “público”
Ademais (artigo II-122-2), esses direitos são apenas reconhecidos “nas condições e limites” das outras partes da Constituição. Para que as coisas sejam perfeitamente claras, o preâmbulo desta Carta fixa, caso tenha sido esquecido, quais são essas condições e limites, especificando que a União “assegura a livre circulação de pessoas, serviços, mercadorias e capitais, assim como a liberdade de estabelecimento”. É sem dúvida a única Carta social do mundo que subordina explicitamente os direitos sociais aos imperativos da mobilidade internacional do capital e do livre comércio.
Fica a pergunta, particularmente delicada na França, sobre os serviços públicos. Em seu quis de apresentação do tratado14 , a redação do Libération pergunta: “O modelo econômico escolhido pela Constituição ameaça os serviços públicos?”; e dá em seguida sua resposta: “Falso”. A resposta certa seria, entretanto, “verdadeiro”. Um dos jornalistas justificará a posição do jornal explicando que “o tratado constitucional fornece uma base jurídica para adotar uma lei-padrão européia horizontal (ou seja, aplicável ao conjunto dos serviços públicos), o que não era o caso até agora15 “. Está certo (artigo III-122), a grosso modo, que uma parte dos tratados precedentes não impedia, de forma alguma, que tal diretiva fosse tomada se a Comissão – que tem muita imaginação para dar-se bases jurídicas sempre que necessário – o propusesse aos Estados membros. Por outro lado a existência dessa possibilidade não garante que esta seja utilizada.
E se, eventualmente, viesse a ser o caso, convém ver em qual contexto e com quais perspectivas. Primeiramente, o tratado não fala de serviços públicos, mas, como nos dois precedentes, de serviços de interesse econômico geral (SIEG), jargão imposto pela Comissão preocupada em neutralizar a carga simbólica do termo “público”. Evoca-os como “serviços aos quais todos, na União, atribuem um valor”, enquanto o tratado de Amsterdã de 1997 os reconhecia simplesmente como “valores” – nuança que não se deve negligenciar. Em seguida, os SIEG ficam subordinados às regras da concorrência (artigo III-166), a não ser, e é o único e muito modesto «avanço», se essas regras obstam “a realização em direito ou de fato da missão particular que lhes é atribuída”.
Recusa ao debate
Os defensores do tratado se negam a debatê-lo ponto por ponto, preferindo proferir considerações vazias
O mecanismo é, entretanto, muito frágil, por quatro motivos. Primeiro, os SIEG são considerados como exceções à norma superior da concorrência, e é em uma postura defensiva que os governos os deverão promover: o ônus da prova lhes é dado. Depois, o artigo III-167, ao qual os SIEG são também submetidos, proíbe os subsídios públicos que “falseiam ou ameaçam falsear a concorrência”. Além disso, é a Comissão que tem o monopólio de uma eventual proposta de diretiva. Quanto a isso, a comissária para a concorrência, Sra. Neelie Kroes, deu o tom durante sua audição diante do Parlamento europeu, destacando que os serviços públicos não constituem “interesses neles mesmos”, e que “o objetivo é estimular a economia européia16 “. Isto é que é franqueza. Por fim, as decisões do Conselho sobre uma eventual diretiva sobre os SIEG ao molho Kroes serão tomadas pela maioria qualificada e em co-decisão com o Parlamento europeu – o que, com base na correlação de forças atual, não recomenda otimismo.
Tais análises de fatos e textos – e se poderia citar dezenas de outros – despedaçam as afirmações anestesiantes dos que pretenderiam que a “Constituição” teria uma dimensão social. Não basta, na verdade, falar (apesar de isso não ser negligenciável) dos princípios gerais, às vezes generosos, postos nos preâmbulos, e do enunciado de valores e objetivos da União, cuja aplicação tem muita chance de ser deixada de lado. Deve-se analisar cuidadosamente as políticas concretas atualmente em vigor e que o tratado tem como missão “constitucionalizar”, tornando-as então dificilmente reversíveis. Eis um texto que não interessa dar conhecimento ao público; e se compreende que os que o defendem rejeitem, de forma geral, debatê-lo ponto por ponto, preferindo proferir considerações vagas e vazias. Resta-lhes, entretanto, uma arma muito potente, levando-se em conta sua posição midiaticamente dominante: demonizar os argumentos adversos.
O mais chocante, do ponto de vista da simples honestidade intelectual, é dar destaque ao espantalho da “volta ao calamitoso tratado de Nice”, enquanto este texto rege a União desde 1º de maio passado sem ter provocado uma catástrofe maior… Segundo argumento falacioso: a vitória do não em um ou vários países levaria à paralisia da Europa. Na verdade, a Europa do day after ao referendo seria o “dia do início”, e todos os textos, incluindo o tratado de Nice, continuariam a ser aplicados. Só restaria então renegociar um novo tratado, mais aceitável, e com o tempo necessário para isso, pois nada urge.
Fugindo da manipulação
Os eleitores devem se libertar de qualquer tentativa de manipulação e, de texto na mão, desenvolverem sua opinião antes de votar
Sim, mas os governos não iam querer mais voltar à mesa de negociação – rebatem os defensores da teoria do caos… É evidentemente o contrário que aconteceria, pois esses governos precisam absolutamente de um novo tratado para que a UE funcione sem muitos problemas com 25 membros, enquanto essas regras atuais foram previstas para uma comunidade de seis. O que significa que seria então submetida à ratificação apenas a primeira parte da atual Constituição, a que, para o essencial, fixa as regras do jogo mecânico e institucional. Ninguém perderia com o desaparecimento da segunda parte, que não cria nenhum novo direito social digno desse nome, e poucos derramariam lágrimas se o manifesto liberal que constitui a terceira fosse descartado.
Se os eleitores são convocados pelo presidente da República para dizer «sim» ou «não» a um texto, pode-se presumir que cada uma das respostas é plenamente legítima e que nenhuma coloca em perigo a República ou a União. Senão ele seria irresponsável, até sujeito a ser levado à Alta Corte, se fizesse tal pergunta… É então libertado de toda chantagem e de qualquer tentativa de manipulação que cada um, texto na mão, deve desenvolver sua opinião antes de depositar seu voto na urna.
(Trad.: João Alexandre Peschanski)
1 – Sobre a ambigüidade do termo “Constituição”, ler Anne-Cécile Robert, “Golpe de Estado ideológico na Europa”, Le Monde diplomatique, novembro de 2004.
2 – A contagem foi realizada por Alain Lecourieux, integrante do Conselho Científico da associação Attac.
3 – Deve-se acreditar, entretanto, que a incerteza faz parte da margem de manobra, pois a declaração nº 30 anexada ao tratado indica que «se, depois de dois anos após a assinatura, apenas quatro quintos dos Estados membros a ratificaram, o Conselho europeu toma a responsabilidade do assunto». Isto deixa, de forma prudente, todas as possibilidades em aberto…
4 – Na ordem atualmente prevista: em 2005, a Espanha no dia 20 de fevereiro; os Países Baixos e a França no primeiro semestre; o Luxemburgo em julho; a Polônia no outono. Seguem, em 2006, o Reino Unido em março; a República Tcheca em junho. A Dinamarca, Portugal e a Irlanda ainda não agendaram uma data.
5 – Ler “Uma Constituição para sacralizar a lei do mercado”, Le Monde diplomatique, janeiro de 2004.
6 – Respectivamente Constituição para a Europa. Manual de uso (45 páginas) e Uma Constituição para a Europa (16 páginas).
7 – Le Figaro, 31 de dezembro de 2004.
8 – Ler Ignacio Ramonet, ’Turquia’, Le Monde diplomatique
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.