Um difícil acordo dentro das transformações neoliberais
Desde o referendo de 24 de junho de 2016, que aprovou pela saída do Reino Unido da União Europeia, a situação permanece indefinida, tendo ocorrido dezenas de rodadas de negociações em Bruxelas na preparação de um projeto de desligamento de alguns setores e reorganização de outros nas relações entre o bloco europeu e o país. Portanto, não há consenso, nem mesmo entre as elites políticas.
No fim de novembro de 2018 a então Primeira Ministra do Reino Unido, Theresa May, conseguiu chegar ao “único possível acordo” sobre o Brexit. Logo em seguida, vários ministros e pessoas do governo envolvidas nas negociações se demitiram, admitindo que o acordo era o pior possível para o Reino Unido.
As reações foram além da política. O Bank of England imediatamente indicou que a economia pode encolher 8% em caso de um não acordo. Atualmente, a previsão de crescimento para o último trimestre é de apenas 0,3% do PIB, indicando um momento crítico da economia britânica, que é altamente dependente das relações com a União Europeia (UE).
A situação é de incerteza na política e o mercado financeiro mundial é dependente dos resultados na política, mas muito mais que dependente é também fiador desse cenário.
O que aconteceu?
Desde o referendo de 24 de junho de 2016, que aprovou pela saída do Reino Unido da União Europeia, a situação permanece indefinida, tendo ocorrido dezenas de rodadas de negociações em Bruxelas na preparação de um projeto de desligamento de alguns setores e reorganização de outros nas relações entre o bloco europeu e o país. Portanto, não há consenso, nem mesmo entre as elites políticas.
Desde o princípio do referendo, os partidos dominantes de centro, o Partido Conservador e o Partido Trabalhista não ousaram assumir uma única posição favorável ou contrário, até mesmo pelo fato de suas bases expressarem ambas posições. Contudo, outros partidos e forças políticas mais à esquerda e à direita assumiram papéis importantes nesse processo, como foi o papel desempenhado pelas forças eurocéticas, representadas pela figura de Nigel Farage no partido Ukip (que em 2019 conseguiu aglomerar diversos deputados e criar o Partido Brexit, conseguindo bons números eleitorais em meio a esse processo mundial de crescimento dos movimentos mais conservadores de direita), ou como o papel desempenhado pelas forças favoráveis à permanência na União Europeia, como no caso do Partido Liberal Democrata, do Partido Nacional Escocês e do Partido Verde.
Passado o referendo, anos de negociações não foram suficientes para que uma ideia mais clara sobre o Brexit fosse formada tanto no Parlamento, como nos partidos e nas classes sociais. Os acordos propostos pelo governo de Theresa May não foram aceitos pelo Parlamento Britânico, embora tivessem já sido aprovados pelo Parlamento Europeu. Após diversas tentativas, a Primeira Ministra renunciou. A liderança do Partido Conservador passou às mãos de Boris Johnson, que então assumiu o cargo de Primeiro Ministro com a tarefa de entregar um projeto de Brexit que fosse capaz de ser aprovado pelos Parlamentos até o prazo final de 31 de outubro de 2019.
A dinâmica neoliberal no Reino Unido
Tendo assumido em julho de 2019, Boris estava apoiado pela ala mais conservadora do Partido Conservador, com discurso mais extremado a respeito do Brexit e com projeto de continuidade da dinâmica neoliberal no Reino Unido.
A dinâmica neoliberal do Reino Unido passa atualmente por reformulações, enfrentando dificuldades em manter a austeridade contra as classes trabalhadoras do países: com menos investimentos no sistema de saúde, manutenção da precarização do trabalho nos transportes e educação.
Além disso, externamente a reformulação está baseada na assertividade do Brexit, que deveria ter ocorrido até outubro deste ano, perfazendo uma nova configuração nas relações entre Reino Unido e os Estados Unidos. Com Trump no governo norte-americano, as relações entre os dois países ficaram mais próximas, dadas as similitudes político-ideológicas entre o presidente e o primeiro ministro.
Apostando numa jogada jurídica mais parecida com um golpe, Boris praticamente fechou o Parlamento Britânico para poder aprovar seu plano de Brexit de cima para baixo, contando inclusive com declarado apoio da monarquia.
O Parlamento ficou inoperante por algumas semanas (o que dentro da normalidade ocorre apenas por alguns dias todo ano), sendo que a suprema corte do país julgou o ato de Boris e da monarquia como ilegal. Assim, mais uma vez, as negociações para efetivar o Brexit se desenvolveram pouco, não chegando propriamente à conclusão do divórcio: da data estabelecida para o 31 de outubro, o Brexit foi novamente adiado, para janeiro de 2020.
Adiamento do Brexit ao preço de novas eleições
Com o novo adiamento, decorrente da disputa entre as diferentes forças políticas, o Partido Conservador convocou novas eleições gerais – uma medida para reavaliar a correlação de forças no país, tendo em conta a possibilidade de isolar ou diminuir, a força dos Trabalhistas e dos favoráveis à permanência do Reino Unido na União Europeia.
Apesar da relutância do Partido Trabalhista, novas eleições deverão ocorrer na primeira quinzena de dezembro e a disputa não é apenas pelo cargo de negociador do Brexit, mas está em aberto a continuidade ou uma possível ruptura com as políticas neoliberais. Contudo, desde o referendo de 2016, o Partido Trabalhista (Labor Party) vem enfrentando disputas internas que se expressam em suas políticas: não existe um consenso a respeito do Brexit, além disso, a liderança de Jeremy Corbyn também não é unânime, embora sua figura seja a mais importante no partido.
Iniciados os debates televisivos, e já com os manifestos publicados contendo as propostas de governo, a situação parecer não ser muito confortável para nenhum dos dois partidos principais. Da parte dos Conservadores, é evidente a preocupação com o novo eleitorado, que aparentemente é mais democrática e tende a votar pelas ideias de mudança do Labor, ao invés de conceder o voto à ideia de continuidade presente nos Conservadores.
Contudo, e apesar disso, os Conservadores apostam no discurso do crescimento econômico puxado pelo mercado financeiro na disputa eleitoral, mesmo tendo que tangenciar os diversos temas presentes na realidade: mudança climática, precarização do sistema público, desemprego, imigração, etc.
O Brexit ainda permanece sendo o eixo central das disputas entre os partidos dos Trabalhadores e Conservador, uma vez que a proposta trabalhista é de um novo referendo, enquanto que os conservadores preferem avançar na saída da União Europeia em janeiro. Além disso, o Brexit abriu uma disputa política que, embora esteja hoje centralizada nas instituições burocráticas, tende a gerar um debate nas diferentes classes a respeito da perspectiva de mudança social, muito presente nas ideias de governo de Corbyn. Mas, o ambicioso programa não é claro a respeito dos métodos de como se pretende chegar as mudanças (nacionalizações, criação de milhões de empregos “green”, reforma na educação, salário mínimo para todos, taxação de riquezas, fim das taxas universitárias, internet livre, etc.), sendo que o Labor parece ter evitado uma radicalização das bases para também evitar a possibilidade de assumir um governo com bases efervescentes.
Assim, as eleições podem validar, de maneira bastante limitada, o nível de consciência dentro de uma perspectiva de mudança, mas ainda está longe a atitude política da transformação. Pode ser que essas eleições, tal como o referendo do Brexit constatou a vontade pela separação sim ou não, indiquem uma vontade de mudança sim ou nao, ainda sem apresentar propriamente qual seria a trajetória dessa mudança, uma vez que qualquer transformação real não pode ser operada através de eleições parlamentares legadas ao cotidiano de um sistema que ele próprio é gerador das controvérsias e catástrofes que vivemos – e o Labor Party permanece sendo um partido dentro da ordem, apesar da radicalização de um setor interno do partido.
Em todo caso, o lançamento do programa de governo do Labor Party introduz novos elementos na política internacional. A direita conservadora tem avançado a largos passos em todo o mundo, mas não sem alguma resistência. Após a derrocada de Salvini na Itália, Trump enfrentando processo de impeachment, incertezas em Israel, junto do desastroso caso brasileiro, e tendo em conta também o cenário em toda a América Latina, é possível identificar um momento bastante crítico do modelo representativo baseado em eleições democráticas em sociedades que perecem sob políticas-econômicas neoliberais.
Interessante é que um programa mais radical não é exclusividade do Labor Party inglês, nos Estados Unidos existe também uma tendência ao aumento do papel da esquerda, ainda que de maneira mais tímida. Para além da esquerda, a direita racista e xenófoba tem mostrado abertamente planos de governo, com considerável expressão em diversos países – Espanha, Itália, Brasil, Estados Unidos, Polônia, Indonésia, Ucrânia, etc. Aliás, a campanha preparatória do referendo de 2016 foi baseada nas mentiras e fake news que já se tornaram típicas da extrema-direita.
Aos EUA interessa a fragmentação da UE
O apoio popular à saída deve ser visto também diante das políticas que a União Europeia tem implementado. Trata-se de uma união baseada na criação de estruturas produtivas que privilegiam grandes empresas e os grandes bancos, portanto, um bloco de países que tem uma forte presença no mercado internacional. Por outro lado, internamente a UE tem perdido credibilidade como projeto de unidade entre as diferenças, visto seu papel na implementação da austeridade em diversos países, não somente desde a crise de 2008, mas muito antes, desde, por exemplo, a implementação dos parâmetros estabelecidos no Tratado de Maastrich, de 1992, para a adequação de todas as economias aos moldes neoliberais.
Assim, a UE que nasceu em tempos em que ainda havia algum estado de bem-estar social, com promessas de manutenção da qualidade de vida e liberdades sociais, se mostrou ser uma UE que tem seu caráter de classe muito bem definido para além das diferenças regionais. Assim, é possível entender as motivações populares que rejeitam a integração mesmo em países em que as classes trabalhadoras tem condições relativamente melhores, como é o caso do Reino Unido.
Com o Reino Unido fora da UE, decisões econômicas e militares não necessitarão de aprovação em instâncias supranacionais, seja a Comissão, Parlamento, ou Conselho da UE. É longa a relação entre Reino Unido e Estados Unidos, tanto em termos econômicos, como nas investidas militares – o terrível caso das guerras no Iraque e na Síria são exemplos do funcionamento dessa parceria.
As eleições de dezembro – acontecerá um youthquake?
Ainda que sustentando políticas dúbias, uma das promessas do Labor Party é a realização de um novo referendo sobre a saída do Reino Unido da UE, ao contrário dos conservadores que pretendem o cumprimento do estabelecido pelo referendum de 2016.
A tentativa do Labor Party é de devolver às urnas o futuro do Reino Unido, focando na possibilidade de reverter o primeiro resultado. Assim, antes do próximo passo do Brexit, primeiro se definirá que tipo de desenvolvimento poderá ser implementado no Reino Unido durante os próximos anos.
A disputa central entre Boris Johnson e Corbyn parece depender do interesse da juventude em participar das eleições, por isso a data escolhida para as eleições precede as férias de fim de ano das escolas e universidades. Já se fala da possibilidade de um youthquake, um terremoto da juventude. De fato, não é somente o Brexit que está em questão. O problema climático, o desemprego, o individualismo e consumismo, hoje fortemente presentes nos questionamentos sociais, também estão em evidência nas eleições britânicas. De conjunto, tais problemas tem uma origem comum, e esse “detalhe” ainda passa despercebido, inclusive no Labor Party, ainda que seu programa de governo seja progressista e crítico.
Rodrigo I. Francisco Maia é doutorando em Política Internacional na Brunel University London.