Um domingo singular para a democracia brasileira
A invasão representou o ápice do devaneio salvador, narrativa que corrobora com toda a criação mitológica em torno de uma personalidade. Nesse caso específico o devaneio vem sendo alimentado gradativamente através das redes sociais e dos grupos em aplicativos de mensagens
No dia 08 de janeiro, como de práxis à tarde, faço um café e escolho um livro pra ler. Coincidentemente – ou providencialmente, creio eu – preferi focar na obra que já lera durante a semana, a “Psicologia das massas e análise do eu” de Sigmund Freud (Companhia das Letras, 2011). Uma leitura agradável, um domingo chuvoso, um belo café. Uma singela e quase perfeita combinação.
Enquanto terminava de fazer o café meu celular recebe algumas notificações, quase todas elas em tempo real, que me alertam sobre um acontecimento vindo de Brasília. Ok. Termino de fazer o café e deixo Freud descansando ao lado. Surpreendeu o fato de não ser algum pronunciamento político ou qualquer outro assunto que já estamos cansados de ouvir, mas uma invasão de determinado grupo à sede do governo nacional. Pedi perdão à Freud, coloquei sua obra na estante e fui acompanhar o acontecimento. Com o passar dos minutos e os fatos sendo desenvolvidos acabou que acompanhei simultaneamente com a obra nas mãos.
A invasão representou o ápice do devaneio salvador, narrativa que corrobora com toda a criação mitológica em torno de uma personalidade. Nesse caso específico o devaneio vem sendo alimentado gradativamente através das redes sociais e dos grupos em aplicativos de mensagens, através de ordens e pedidos. Cada mensagem se torna um “brado retumbante” àqueles que recorrem às narrativas que lhe são mais caras, ou melhor dizendo, aquelas que coadunam com seus próprios devaneios. No fundo é tudo questão de identificação, de pertencimento a determinado grupo, à determinada causa. O que outrora normalmente estava inativo, em contato com outros, ganha possibilidade de força e se torna uma força ativa. E pensar que tudo isso começou no Superpop, diante do auditório, sendo motivo de escárnio e risos. A maioria subestimou. Ecce homo!

Ouvi de “alguns muitos” que mesmo sendo adeptos da mesma posição política do grupo que invadiu Brasília não concordavam com a atuação deste, pois se “assemelhavam aos movimentos que outrora se combateu, ou seja, a esquerda”. Nesse aspecto concordo com Le Bon, em sua “Psicologia das massas”, ao afirmar que “quaisquer indivíduos (inseridos numa massa psicológica), sejam semelhantes ou não, em ocupações ou tipo de vida, o simples fato de se terem transformado em massa os torna possuidores de uma espécie de alma coletiva”. Aos poucos ocorre o desaparecimento da particularidade, da subjetividade daquele sujeito, e aos poucos essa massa cria um caráter comum e mediano àquele grupo, com características novas e anseios universais. Esses sentimentos comuns nutridos pela massa permitem que um indivíduo encontre no outro a validação de seus instintos, em outras palavras, ao ver o outro agindo de modo animalesco, e por conseguinte irresponsável, cedo e ajo com tanto mais facilidade aos meus próprios instintos. Na prática se rompe qualquer sentimento e consciência de responsabilidade. Há um verdadeiro contágio, uma pandemia, da mentalidade determinada pelo consenso sentimental. Todavia não encontro uma cloroquina à altura para combater esse fenômeno.
Os meios que fortalecem as narrativas e imaginações que influenciaram os últimos atos são basicamente os mesmos. Os aplicativos de mensagens surgiram para diminuir os espaços, quebrar barreiras de distância, mas nesse caso tornaram-se a via mais eficaz para as construções mitológicas e messiânicas dos ditos “salvadores da pátria”. Me faz lembrar o conto de Miguel de Cervantes, o famoso “Don Quixote”, que sai à procura de inimigos e adversários para confrontar, ao lado do fiel escudeiro Sancho Pança. Na literatura, o protagonista assume as características de um líder e vai, ele mesmo, procurar seus opositores imaginários e lutar. No caso real, o dito líder sugere, como num jogo enigmático, como num filme de Dan Brown, pistas e ações para que sua massa aja em favor da causa. Freud já afirmava que a massa tem consciência de sua força, sendo ela ao mesmo tempo intolerante e crente na autoridade. Diferentemente de Quixote, não é a “autoridade” quem assume os riscos e põe “a cara a tapa”. Tem quem faça por ele. Lamentavelmente.
A obscuridade não somente das tramas e das narrativas, sempre exclusas da verdade dos fatos, mas das intenções propriamente, sugestivas em fotos ou palavras, tornam o enredo ainda mais caricato. Café, livros, manteiga, leite, panos de prato, mesa, tudo se torna objeto de enigma, de significados. Por isso me lembra uma espécie de “Código da Vinci”, mas sem a genialidade do protagonista Robert Langdon. Falando nisso, reitero e faço minhas as palavras de um importante semiólogo, o famoso Umberto Eco, que há alguns anos dizia que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis. Antes, diz Eco, os idiotas “falavam apenas em um bar, sem prejudicar a coletividade”, mas com o avanço das redes o idiota foi promovido à portador da verdade. “Normalmente eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”, completa o escritor. Entretanto as redes sociais só impulsionaram o que entrava em nossas casas normalmente, em horário nobre, com entrevistas e afirmações pitorescas diante de um auditório recheado. Não devemos esquecer.
Por fim, as cenas do último domingo não devem se esquecidas, mas relembradas como a concretização da manifestação de um grande rebanho liderado por uma ideologia danosa à sociedade. Contraditoriamente o rebanho é dócil ao seu líder, às suas sugestões e ordens, mas selvagem à nação e aos princípios democráticos. Não sei até aonde as narrativas e construções mitológicas vão chegar, mas fazendo minhas as palavras de Freud, “as necessidades da massa a tornam receptiva ao líder (no original, Führer), mas este precisa corresponder a ela com suas características pessoais” (p.30). Um dia a massa poderá cansar de seu Don Quixote. Até porque o moinho de vento da narrativa da “ameaça comunista” está condenado.
No final das contas o café ficou bom e Freud não voltou à estante tão cedo.
Railson da Silva Barboza é bacharel em Filosofia (PUC-Rio) e doutorando e Mestre em Política Social (UFF)