Um Estado para o Hygge
Na Dinamarca e nos demais países nórdicos, o Estado de bem-estar social avançou a ponto de se tornar um estado para o hygge. Ao avançar mais do que em qualquer outro lugar no atendimento das necessidades fundamentais dos indivíduos por meio da mobilização mais destemida dos instrumentos de política econômica e de política social, ele agiu mais no sentido de libertar as pessoas do risco permanente da privação e assegurar que elas tivessem a chance se dedicar mais às experiências individuais e coletivas que aquecem a alma e tornam a vida mais satisfatória
Na Dinamarca, a receita para uma vida mais satisfatória tem como um de seus ingredientes principais o que se costuma chamar por lá de hygge.
O termo hygge deriva de hugr, que, no nórdico antigo, significa “a alma”. Ele se refere a experiências coletivas e individuais que aquecem a alma e é amplo o suficiente para envolver as noções de conforto, aconchego e intimidade; segurança, proteção, abrigo e refúgio; acolhimento, acalento, amparo e consolo; calma, alívio, indulgência, serenidade, tranquilidade e contemplação; descanso, repouso e relaxamento; descontração, distração, recreação e divertimento; felicidade, alegria, deleite, contentamento e prazer; entusiasmo, ânimo e otimismo; equilíbrio, estabilidade, harmonia, concórdia e conciliação; informalidade, autenticidade, espontaneidade, liberdade e naturalidade; singeleza, simplicidade e sobriedade; e presença, participação, envolvimento e engajamento.
Dessa forma, hygge é estar com familiares e amigos numa cabana na praia para conversar, jogar cartas, comer alguns smørrebrød ou tomar uma dose de akvavit nos dias longos, claros e quentes de verão tanto quanto estar sozinho vestindo pijama e meias de lã entre mantas felpudas, almofadas macias e velas acesas para ler um livro, ouvir uma canção, assistir a um filme, comer alguns æbleskiver ou tomar uma caneca de gløgg nas noites longas, escuras e frias de inverno.
A importância atribuída ao hygge para uma vida mais satisfatória aumentou na Dinamarca a partir do século XIX, tornando-se parte essencial do seu ethos. Esse processo foi tão importante que transcendeu as suas fronteiras e alcançou os seus vizinhos Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia.
O fato de isso ter acontecido no mesmo momento em que esses países davam os seus primeiros passos na construção de Estados de bem-estar social robustos não é uma coincidência.
Em verdade, o Estado se tornou o fiador do hygge nos países nórdicos ao agir no sentido de livrar as pessoas do risco permanente da privação e assegurar que elas tivessem a chance de se dedicar mais às experiências individuais e coletivas que aquecem a alma.
No capitalismo, aqueles que não possuem dinheiro para comprar o que precisam para viver são obrigados a vender a sua força de trabalho em troca de dinheiro ou recorrer a familiares, amigos e conhecidos próximos que vendem a sua força de trabalho em troca de dinheiro. Mas a compra da força de trabalho depende das decisões de crédito, gasto e produção daqueles que possuem dinheiro e que são tomadas a partir de expectativas formadas em contexto de incerteza. Isso faz com que a compra da força de trabalho avance em alguns momentos e retroceda em outros, mas nunca seja capaz de absorver todos que precisam vendê-la em troca de dinheiro.
Uma vez que o mercado e a família, amigos e conhecidos próximos não são capazes de assegurar o atendimento das necessidades fundamentais dos indivíduos sozinhos nesse sistema, o Estado deve assumir um papel mais contundente nesse processo.
Ele deve mobilizar os instrumentos de política econômica e de política social para estimular a criação de vagas de trabalho e assegurar que as pessoas que podem trabalhar possam assumir as vagas de trabalho criadas; regular as condições de trabalho das pessoas ocupadas; prover dinheiro para pessoas que não podem trabalhar em função de idade, invalidez, enfermidade, acidente ou doença relacionada ao trabalho, desemprego e nascimento dos filhos; prever dinheiro para pessoas que precisam fazer frente aos custos inerentes à criação dos filhos; prover serviços de cuidado para quem não é capa de realizar atividades diárias por si só; prover serviços de saúde para pessoas enfermas; prover serviços de educação para pessoas sem conhecimentos e capacidades essenciais; prover serviços de habitação para pessoas que não têm onde morar de forma adequada etc.
Os países nórdicos avançaram consideravelmente nesse sentido. E embora os partidos socialdemocratas da Dinamarca, Finlândia, Islândia e Suécia e o partido trabalhista da Noruega tenham liderado esse avanço, outras legendas também tiveram as suas contribuições.

É verdade que esse avanço foi facilitado por esses países terem construído ao longo da história economias desenvolvidas, Estados sofisticados e direitos civis e políticos amplos. Mas tudo teria sido muito mais difícil sem a existência de laços de solidariedade excepcionalmente amplos e fortes.
De fato, mais do que em qualquer outro lugar, o atendimento das necessidades fundamentais dos indivíduos é visto nesses países como uma responsabilidade não apenas desses indivíduos e daqueles que estão mais próximos deles, mas de toda sociedade. O atendimento dessas necessidades deve ser o resultado não apenas de uma troca derivada de um acordo ou de uma ajuda derivada da benevolência, mas de um direito advindo da participação numa coletividade em que todos têm o mesmo valor.
O elevado comprometimento do Estado com o atendimento das necessidades fundamentais dos indivíduos nos países nórdicos pode ser medido pelos recursos públicos direcionados para a provisão de benefícios e serviços. Em 2019, do total de recursos direcionados para a provisão de bens e serviços, os recursos públicos responderam por 79,7%, na Dinamarca, 77,2%, na Islândia, 66,8%, na Finlândia, 61%, na Suécia e 58,5% na Noruega, enquanto a média da União Europeia foi de 48%. Em termos per capita, isso correspondeu a 20.665 euros na Islândia, 14.595 euros na Dinamarca, 11.312 euros na Noruega, 8.967 euros na Finlândia e 8.548 euros na Suécia, ao passo que a média da União Europeia foi de 4.149 euros.
Esse comprometimento contribui para aumentar a participação das pessoas no mercado de trabalho. Em 2019, a parcela das pessoas de 15 a 74 anos que estavam no mercado de trabalho foi de 81,2% na Islândia, 73,4% na Suécia, 70,4% na Noruega, 69,5% na Dinamarca e 66,9% na Finlândia, enquanto a média da União Europeia foi de 65,6%. A parcela das pessoas que estavam no mercado de trabalho e ocupadas foi de 96,5% na Islândia, 96,3% na Noruega, 95% na Dinamarca, 93,3% na Finlândia e 93,2% na Suécia, enquanto a média da União Europeia foi de 93,9%. E a parcela das pessoas que estavam no mercado de trabalho e desocupadas há mais de doze meses foi de 0,3% na Islândia, 0,8%na Dinamarca, 0,8% na Noruega, 0,9%, na Suécia e 1,2% na Finlândia, enquanto a média da União Europeia foi de 2,3%.
Contribui também para a redução da pobreza nesses países. Em 2019, a parcela das pessoas com renda menor que 50% da renda mediana nacional foi de 4,5% na Islândia, 5,4% na Finlândia, 6,7% na Dinamarca, 7% na Noruega e 10,2% na Suécia, ao passo que a média da União Europeia foi de 10%. E a parcela das pessoas que não são capazes de atender as suas necessidades mais elementares foi de 0,7% na Islândia, 1,5% na Suécia, 1,9% na Finlândia, 2% na Noruega e 3,8% na Dinamarca, enquanto a média da União Europeia foi de 6,5%.
E contribui para a redução da desigualdade nesses países. Em 2019, a relação entre a renda da parcela 20% mais rica e a renda da parcela 20% mais pobre da população foi de 3,2 na Islândia, 3,7 na Finlândia, 3,8 na Noruega, 4,1 na Dinamarca e 4,3 na Suécia, enquanto a média da União Europeia foi de 4,8. E o índice de gini foi de 23,2 na Islândia, 25,4 na Noruega, 26,2 na Finlândia, 27,5 na Dinamarca e 27,6 na Suécia, enquanto a média da União Europeia foi de 29,7.
A garantia da maior participação no mercado de trabalho e menores níveis de pobreza e desigualdade contribuem para que as pessoas possam se dedicar mais ao hygge, o que, por sua vez, se reflete em uma avaliação bastante positiva sobre a sua própria vida.
Segundo pesquisa da ONU, em 2021, a Finlândia ocupou o 1º lugar, a Islândia o 2º lugar, a Dinamarca o 3º lugar, a Suécia o 6º lugar e a Noruega o 8º lugar entre 95 países tendo em vista a avaliação das pessoas sobre a sua própria vida. Em uma escala que aumenta de 0 a 10, essa avaliação foi de 7,889 na Finlândia, 7,575 na Islândia, 7,515 na Dinamarca, 7,314 na Suécia e 7,290 na Noruega, ao passo que a média dos países considerados foi de 5,841.
De acordo com pesquisa da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, em 2020, a Finlândia ocupou o 1º lugar, a Noruega o 2º lugar, a Dinamarca o 3º lugar, a Islândia o 5º lugar e a Suécia o 9º lugar entre quarenta países levando em conta a avaliação das pessoas sobre a sua própria vida. Em uma escala que cresce de 0 a 10, essa avaliação foi de 7,6 na Finlândia, 7,6 na Noruega, 7,6 na Dinamarca, 7,5 na Islândia e 7,3 na Suécia, enquanto a média dos países considerados foi de 6,6.
E segundo pesquisa da União Europeia, em 2018, a Finlândia ocupou o 1º lugar, a Noruega o 3º lugar, a Islândia o 6º lugar, a Dinamarca o 7º lugar e a Suécia o 8º lugar entre 37 países tendo em vista a avaliação das pessoas sobre a sua própria vida. Em uma escala que aumenta de 0 a 10, essa avaliação foi de 8,1 na Finlândia, 8,0 na Noruega, 7,9 na Islândia, 7,8 na Dinamarca e 7,8 na Suécia, enquanto a média dos países considerados foi de 7,1. Com isso, a parcela das pessoas que se considera muito satisfeita com a sua vida é elevada nesses países.
Segundo pesquisa da União Europeia, em 2018, a Dinamarca ocupou o 2º lugar, a Finlândia o 3º lugar, a Noruega o 4º lugar, a Islândia o 7º lugar e a Suécia o 9º lugar entre 37 países levando em conta a parcela das pessoas que se diz muito satisfeita com a própria vida. Essa parcela foi de 41,3% na Dinamarca, 41,1% na Finlândia, 39,7% na Noruega, 37,8% na Islândia e 35%, na Suécia, ao passo que a média dos países considerados foi de 24,1%.
Dessa forma, na Dinamarca e nos demais países nórdicos, o Estado de bem-estar social avançou a ponto de se tornar um estado para o hygge. Ao avançar mais do que em qualquer outro lugar no atendimento das necessidades fundamentais dos indivíduos por meio da mobilização mais destemida dos instrumentos de política econômica e de política social, ele agiu mais no sentido de libertar as pessoas do risco permanente da privação e assegurar que elas tivessem a chance se dedicar mais às experiências individuais e coletivas que aquecem a alma e tornam a vida mais satisfatória.
Assim como o hygge, o Estado para o hygge não precisa ser uma exclusividade desses países desde que prevaleça na sociedade o entendimento de que ninguém é superior ou inferior a ninguém e de que todos são responsáveis por assegurar que todos possam viver plenamente a beleza da vida.
Paulo José Whitaker Wolf é pós-doutorando no Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).