Um golpe a mais no mundo árabe
Depois de quatro séculos de dominação turca, o mundo árabe (“Do Golfo ao Atlântico”) passou à dominação anglo-francesa que o retalhou em Estados-nação. Hoje, a onipotência embriagada de Bush ameaça acabar com ele de uma vez por todasSelim Nassib
Sejam quais forem os pretextos que os Estados Unidos utilizem para atacar o Iraque (e, de tabela, implantar “a democracia na região”), essa guerra só é possível devido ao lamentável estado em que se encontra o mundo árabe. Caiu o Muro de Berlim, a União Soviética é apenas uma lembrança, o planeta entrou numa nova era, mas o mundo árabe continua desesperadamente parecido consigo mesmo. O fato de nele os regimes despóticos serem ampla maioria nada tem de novidade. Outras regiões do planeta passaram por períodos mais ou menos longos de tirania. Aqui, porém, os anos se passam sem que as sociedades árabes produzam por si mesmas movimentos maciços pela liberdade, pela democracia, pela modernidade. Monarquias anacrônicas e regimes militares mais ou menos disfarçados de civil continuam ocupando o poder, tendo por única oposição consistente os movimentos de inspiração islâmica. Os árabes parecem condenados a ter por única escolha formas distintas de opressão.
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Nos últimos 15 anos, o planeta mudou, entrou numa nova era, mas o mundo árabe continua desesperadamente parecido consigo mesmo
No Ocidente, há quem conclua que o Islamismo, enquanto tal, é portador de um germe antidemocrático – e fazem-se citações do Corão, a título de argumento convincente. Segundo uma opinião que predomina em círculos racistas, “o atraso” dos árabes se deveria a eles próprios, à sua mentalidade, à religião que inventaram e propagaram, à sua falta de cultura política etc. A isso, os árabes respondem que não sentem, absolutamente, qualquer responsabilidade, e que foi o Ocidente (o colonialismo, o imperialismo, Israel) que os impediu, deliberadamente, de alcançar a modernidade. Também eles citam frases liberticidas, mas extraídas da Bíblia e dos Evangelhos, frisando que as cruzadas e a Inquisição em nada ficam a dever ao atual islamismo. Acima de tudo, lembram que, por ocasião de sua idade de ouro, na Andaluzia, o Império árabe foi um modelo jamais igualado de tolerância, de ciência e de cultura. Soam os aplausos.
Declínio de 80 anos
No entanto, seja por culpa deles, dos outros, ou uma mistura das duas, é fundamental responder à pergunta: por que, há tanto tempo, vêm os árabes dando a impressão de estar aprisionados ao seu passado (glorioso), sem conseguir acesso ao tempo presente? O problema está longe de ser retórico: ameaça a paz do mundo. Há alguns meses, um jornal francês publicou um artigo de um especialista militar que afirmava que o planeta não conseguiria se acomodar por muito tempo mais com a paralisia de sua principal região petrolífera. O autor previa que esse desequilíbrio não poderia deixar de se tornar explosivo e que, conseqüentemente, a Europa deveria reorientar sua estratégia militar, preparando-se para intervir no mundo árabe. Embora de maneira confusa, o presidente George W. Bush está em vias de pôr essa teoria em prática, mas a título “preventivo” (ou seja, atirando primeiro).
Numa de suas fitas, Osama bin Laden afirmava, numa frase que não chamou a atenção, que o mundo árabe vive em declínio “há oitenta anos”. Por que oitenta? Basta fazer os cálculos: isso nos leva ao início da década de 20, ao final da I Guerra Mundial, ao colapso do império otomano, à ocupação da região pelos ingleses e pelos franceses. Foi nessa data que os árabes saíram de quatro séculos de tutela turca para passarem a ser governados por Infiéis. Isso explica a observação de Bin Laden: não há salvação fora do governo muçulmano (o califado).
O Renascimento cultural e político
Círculos racistas ocidentais atribuem “o atraso” dos árabes a eles próprios, à sua mentalidade, à religião que propagaram, à sua falta de cultura política
Mas, independentemente do que pensa essa pessoa, o fato é que os árabes digeriram com grande dificuldade essa passagem de uma época para outra. Viviam, pensavam, iam e vinham num espaço árabe sem fronteiras, integrado ao império otomano. Seu soberano se esforçava por ser muçulmano, mas era estrangeiro, turco, o que era bastante humilhante para uma comunidade com tanto apreço por seu passado e por sua identidade. Mas acomodava-se à situação. A Porta Sublime1 (que nome maravilhoso, a meio caminho entre o secular e o transcendental) podia, eventualmente, dar mostras de selvageria, mas tinha a vantagem de deixar em paz os seus súditos, permitindo-lhes que cuidassem de seus negócios desde que pagassem seus tributos em dinheiro e homens. Uma vez pagos seus impostos e enviados seus filhos ao exército, os cidadãos árabes comuns de Beirute, Damasco ou Jerusalém ficavam quites, ou quase. O poder político ficava longe, não tinham por que se preocupar. Reunidos em famílias, clãs, comunidades, regiões ou crenças, eram todos eles árabes – da Palestina, do Líbano, da Síria – sem que seu “país” de origem representasse uma nacionalidade.
Os intelectuais árabes estavam conscientes de que o declínio do império otomano era inevitável, o que ocorreria em proveito de um Ocidente superior e com apetites evidentes. Para enfrentar esse desafio, iniciaram, no início do século XIX, um grande movimento de renascimento cultural e político, a Nahda, em que se misturavam a vontade de reformar o islamismo, a de transformar a sociedade e, finalmente, a de encontrar as forças vivas que permitissem aos árabes fazerem parte do mundo. Politicamente, esse movimento traduzia-se pela necessidade de se libertar da dominação otomana. Como a emancipação não podia ser levada em nome da bandeira do islamismo (o império turco também era muçulmano), teria que ser, naturalmente, em nome de um nacionalismo árabe incipiente, composto por muçulmanos, cristãos e leigos.
A herança da civilização grega
Por que, há tanto tempo, vêm os árabes dando a impressão de estar aprisionados ao seu passado (glorioso), sem conseguir acesso ao tempo presente?
Habilidosamente manipulado pelos ingleses (via Lawrence da Arábia) e franceses, esse gosto pela independência demonstrou ser forte o bastante para que os árabes se rebelassem, no momento apropriado, contra seus senhores muçulmanos, participando da queda do império otomano. Mas o grande Estado árabe independente que fora prometido, faltou, evidentemente, ao encontro, e a Grã-Bretanha agravou essa expectativa prometendo priorizar a criação de um “espaço nacional judeu” na Palestina. Enganados, vencidos e magoados, os árabes seguiram, com um sentimento de desencanto, em busca da modernidade tão desejada.
Logo seriam demarcadas fronteiras em suas terras e países seriam criados. Tiveram que abandonar a representação que tinham de si próprios – de súditos de um soberano – para aceitar outra – a de cidadãos de um Estado-nação (sob mandato inglês ou francês). Por que esse mandato? Oficialmente, para tomar pela mão esses jovens países que seriam independentes e formá-los, organizá-los e dotá-los de instituições democráticas, conduzindo-os, progressivamente, rumo aos tempos modernos.
Mesmo num contexto tão fragmentado e restritivo, os ventos da Nahda não paravam de soprar. O modernista e liberal Saad Zaghloul, “pai” da independência egípcia, inseriu formalmente sua ação nessa continuidade. Na década de 20, o grande escritor egípcio Taha Hussein frisava que o Oriente e o Ocidente eram dois ramos de um mesmo tronco: a civilização grega. Graças à Andaluzia árabe, essa herança pudera alcançar o Ocidente, que se desenvolvera alimentando-se dela. Por outro lado, o ramo oriental fora inibido devido à ocupação estrangeira (turca e inglesa) e o mundo árabe teria que buscar o tempo perdido caminhando, em ritmo acelerado, para um modernismo do Oriente capaz de ser parceiro do modernismo do Ocidente.
O exílio forçado dos palestinos
Foi há 80 anos, após a I Guerra Mundial, que os árabes saíram de quatro séculos de tutela turca para passarem a ser governados por Infiéis
Nem todo mundo pensava como Taha Hussein; havia mesmo quem achasse que a Nahda, o Renascimento árabe, exigiria um retorno a uma leitura mais rígida do islamismo. Mas a interpretação progressista era majoritária. Coletivamente, o mundo árabe demonstrava ser um ávido candidato à integração.
Os motivos pelos quais não o conseguiu fazer são, sem dúvida, distintos e variados. Mas aquele que os árabes privilegiaram foi o da criação do “espaço nacional judeu”, projeto britânico integrado pela Liga das Nações ao mandato da Inglaterra sobre a Palestina. Israel ainda não fora criado e sua realidade virtual já era um adversário fatal junto ao bem-amado Ocidente. Teriam que aprender a se vestir, criar uma cultura, votar e se submeter a assembléias eleitas, respeitar o direito como na Europa (diziam que estavam prontos para isso) e, ao mesmo tempo, agüentar sem reclamar (sob o comando de dirigentes mais ou menos vendidos aos ingleses) aquilo que se apresentava como a escandalosa negação de um direito e a hipócrita espoliação da Palestina.
Em 1948, quando foi proclamado o Estado de Israel, os árabes voltaram a ter a impressão de que eram postos à margem do mundo. O vergonhoso conchavo feito por Hadj Amin el-Husseini, então líder dos palestinos, com Hitler, durante a II Guerra Mundial, trouxe-lhes descrédito. Nesse contexto, a simpatia (e a culpa) internacionais voltaram-se, naturalmente, para os infelizes sobreviventes do Holocausto, e nem um pouco para a população palestina – da qual, mais ou menos três quartos foram forçados ao exílio com a criação de Israel. Ao antigo ressentimento árabe de ter sido enganado logo após a I Guerra Mundial, acrescentou-se, então, um ressentimento ainda mais ardente. Uma parte da Nahda, o Renascimento, primeira grande tentativa árabe de integrar o mundo, acabou fracassando na Nakba, a catástrofe palestina.
“Do Golfo ao Atlântico”
Os intelectuais árabes sabiam que o declínio do império otomano era inevitável e que seria em proveito de um Ocidente superior e com apetites evidentes
O abalo foi tão grande que, em dez anos, se alastrou pela maioria dos regimes e das monarquias considerados responsáveis pela derrota da Palestina. O tiro de partida para as mudanças foi dado pelo Egito, onde a revolução levou ao poder os militares comandados por Gamal Abdel Nasser. Em nome da unidade árabe, da libertação da Palestina e (com menor ênfase) do socialismo, Nasser desenhou uma nova geografia. O mundo árabe tornou-se bipolar, com o Egito de um lado, aliado da União Soviética, e a Arábia Saudita, de outro, aliada dos Estados Unidos.
Na realidade, o regime relativamente leigo de Nasser – que se fez, mais ou menos, copiar em outras capitais árabes – está na origem da segunda grande tentativa de alcançar os tempos modernos. O Egito optou por chamá-la “República Árabe Unida”, na esperança de que se ampliasse, progressivamente, ganhando outros países, invalidando os Estados-nações e reencontrando, por fim, a forma “natural” do grande Estado independente (“Do Golfo ao Atlântico”) que permitiria aos árabes ocuparem, finalmente, seu lugar no mundo. No meio tempo, o “campo progressista” dirigido por Nasser trabalhava, como diz seu nome, pelo “progresso” (takaddom, uma palavra fetiche), ou pelo menos pela idéia que dele se fazia à época: nacionalizações, reforma agrária, controle das riquezas, modernização, educação, distribuição de renda etc. – mas a democracia era muitas vezes disfarçada, sob o epíteto de “burguesa”. A atração pelo Ocidente e por seu modo de vida, assim como o desejo de serem aceitos, eram, no entanto, inegáveis. Também aqui, apesar das proclamações antiimperialistas, prevalecia o sentimento da decepção amorosa.
Arábia Saudita, a peça-chave dos EUA
Para enfrentar o desafio, foi iniciado, no início do século XIX, um grande movimento de renascimento cultural e político do mundo árabe, a Nahda
O paradoxo é que os Estados Unidos, que apregoam os valores da liberdade e da democracia, têm por principal aliado na região a família real saudita, os Saud, regime de um despotismo familiar, social e religioso que vive às custas da receita do petróleo e financia o proselitismo islâmico além-fronteiras. Como naquela época a obsessão era a luta contra o comunismo, os Estados Unidos acabaram adotando por quase toda parte o hábito de manipular estrategicamente o islamismo mais fundamentalista contra os “progressistas”, apresentados como hereges, comunistas, ateus e inimigos de Deus.
O movimento iniciado por Nasser fracassou, sem dúvida, por várias razões, mas a opinião pública árabe guardou em sua memória uma única: a Naksa, a histórica derrota militar sofrida por ocasião da Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967. Novamente expulsos do mundo, os árabes voltam a ver Israel como a fonte de todos os fracassos e de todas as desgraças, o que os poupa de se questionarem a si próprios. Derrotada, a nação árabe denuncia a “conspiração”, recusa a autocrítica, silencia as vozes discordantes e joga todas as suas esperanças na incipiente Resistência palestina. O regime de Nasser desapareceria com a morte de seu fundador, em 1970, mas legaria à Síria (com Hafez el-Assad) e ao Iraque (com Saddam Hussein) regimes da mesma natureza, que sobvreviveriam tornando-se implacáveis ditaduras militares.
Do lado oposto, a Arábia Saudita continuava sendo a peça-chave norte-americana. Mas sua vitória sobre Nasser e a quadruplicação do preço do petróleo (em 1973), multiplicaram também seus meios de intervenção e de proselitismo. Em pouco tempo, o Iraque e a Síria (assim como a distante Argélia) surgiriam como fortalezas sitiadas do nacionalismo árabe num universo comprado, islamizado e neutralizado pelos dólares sauditas. Em 1977, com a assinatura de uma paz em separado entre Israel e o Egito do presidente Anuar Al-Sadat, os norte-americanos podiam afirmar que sua estratégia do “islamismo total” fora coroada de sucesso.
A “dissidência” de Bin Laden
Habilidosamente manipulado por ingleses e franceses, o gosto pela independência mostrou ser forte o bastante para que os árabes se rebelassem
Mas não por muito tempo. Em 1979, a Revolução iraniana subitamente lhes mostrou que era perfeitamente possível ser islamita e anti-americano, um espécime que eles nunca haviam encontrado até então. Após passarem pela humilhação de ver sua embaixada em Teerã transformada em refém – ação que praticamente se confunde com a fundação da República Islâmica – assistiram, sem tristeza alguma, à guerra desencadeada por Saddam Hussein contra o regime dos mulás. Mas os iranianos resistiram, inverteram o quadro inicial e se tornaram ameaçadores. Com exceção da Síria, o mundo árabe supera suas divergências e se une a Saddam Hussein para conter aqueles islamitas persas e xiitas que avançavam, sem controle, sobre os poços de petróleo do Golfo. Também os Estados Unidos incentivavam Saddam, içando o inimigo da véspera ao posto de aliado.
Em outros lugares, e principalmente no Afeganistão, persiste a antiga estratégia: os Estados Unidos apóiam de todas as maneiras possíveis vários grupos fundamentalistas muçulmanos no combate à invasão soviética e ao regime entreguista de Cabul. A esquizofrenia era total. No momento em que a maioria dos regimes árabes se uniu aos norte-americanos na guerra contra o islamismo iraniano, milhares de voluntários árabes juntavam-se aos guerrilheiros islamitas radicais afegãos apoiados pelos mesmos norte-americanos…
Em 1988, o Iraque foi oficialmente declarado vencedor da guerra contra a República Islâmica. Mas o país estava exaurido, esgotado por oito anos de guerra, e precisava ser reconstruído. Ressentido pelo pouco reconhecimento que recebeu por parte dos países do Golfo e acreditando na benevolência norte-americana, Saddam Hussein resolveu então avançar sobre o Kuait, sem perceber que George Bush pai não estava disposto a permiti-lo. A primeira guerra do Golfo conteve o Iraque sem derrubar seu regime e levou os Estados Unidos a estabelecerem tropas e material militar na Arábia Saudita. E foi justamente essa presença “herética” nas proximidades dos Lugares Santos que desencadeou a “dissidência” de Osama bin Laden, também originalmente formado pelos norte-americanos.
O Frankenstein islamita
Os motivos que levaram os árabes a não alcançar a modernidade são variados. Mas o que privilegiaram foi o da criação do “espaço nacional judeu”
A ascensão de Bin Laden como figura de oposição representa uma reviravolta fundamental. Com ele, já não se trata de correr em vão na tentativa de alcançar o “mundo moderno”, mas de se vingar dele destruindo-o – para reconstruir, sobre suas ruínas, a nação muçulmana ideal. O homem que defende esse discurso apocalíptico (e que se rejubila em passar à ação) não é um coitado qualquer, mas o riquíssimo filho de uma família proeminente, vinculada aos palácios dos Saud. Subitamente, paira uma dúvida sobre o santo dos santos: essa monarquia dos Saud sobre a qual os Estados Unidos apostaram todas as fichas. Estupefatos, os investigadores norte-americanos descobriram que 15 dos 19 terroristas suspeitos de serem os responsáveis pelos atentados do 11 de setembro eram sauditas e também que, da cúpula à base da pirâmide saudita, inúmeros dirigentes são pró-americanos com a mão direita e financiam o “terrorismo” com a mão esquerda.
Na Jihad desencadeada por Bin Laden, a imensa rede de organizações de caridade criada durante várias décadas pela Arábia Saudita serve de viveiro e os ex-guerrilheiros do Afeganistão, de vanguarda armada. E, embora se apoiando numa base teológica obscurantista, os métodos utilizados para fazer funcionar a nebulosa são bastante semelhantes aos métodos sofisticados, desterritorializados, globais, da gestão do império financeiro saudita. No fim, a estratégia do “islamismo total” alimentada pelos norte-americanos voltou-se cruelmente contra eles próprios. Desaparecido o inimigo público número um, o comunismo, os Estados Unidos elevam outro ao trono, o Frankenstein islamita que criaram com suas próprias mãos e que lhes fugiu do controle. Invertendo completamente sua estratégia, passam, então, a proclamar uma cruzada “contra o islamismo total” e a exigir que o mundo inteiro se junte a eles.
Democracia, o sonho inacessível
Essa dramática reviravolta dá aos árabes, uma vez mais, a impressão de serem tomados por alvo, apenas por serem árabes, e paralisa seu sentimento de pertença, bloqueando qualquer pensamento individual independente. No entanto, existem democratas naquela região do mundo. Ignorados, muitas vezes reprimidos com selvageria, travam uma luta particularmente difícil e quase sem qualquer apoio externo. Mas sua mensagem não cola, nem se encarna. São vistos como pessoas corajosas e isoladas que não conseguem atrair seguidores nas sociedades a que pertencem2.
Ao atacarem o Iraque, os EUA não estão apenas declarando guerra a esse país, mas ao mundo árabe como um todo
Entretanto, os povos árabes (e especificamente os iraquianos e os sírios) sabem que o regime de Saddam Hussein é uma tirania sangrenta, sem escrúpulos, e que o regime sírio dos Assad – tanto o do pai quanto o do filho – não é nem um pouco mais simpático. Ficariam contentes, sem dúvida, de os ver desaparecerem, desde que seu desaparecimento se faça sem apocalipse. De momento, o ditador mantém o mesmo discurso que eles diante da agressão. Quando denuncia as falsas promessas, a dupla linguagem e a impunidade que o Ocidente oferece a Israel, estão todos de acordo. Quando defende a unidade árabe e a justiça da causa palestina, também estão de acordo. No final, o sentimento de ser árabe e de pertencer à comunidade, seja de que maneira for, se revela mais forte que a aspiração democrática, tida como um sonho inacessível.
Os delírios de onipotência de Bush
Atualmente, os norte-americanos vêm descobrindo que, com seus monarcas fundamentalistas, seus militares e seus militantes islamitas radicais dançando sobre poços de petróleo, o mundo árabe se tornou impossível de administrar ou de dissociar. É um pântano de onde só podem surgir confusões e convulsões. Para desatar os nós dessa região, teria sido preciso começar por resolver com um mínimo de justiça e de humanidade seu problema mitológico central: a Palestina. Não teria sido suficiente (Israel está longe de ser o único problema), mas acabaria com as justificativas por parte das ditaduras, com o pensamento comunitário, com o recesso para si mesmo, com o sentimento de exclusão e com a explicação-reflexo que está na fonte de todos os males: “A culpa é dos outros.”
A outra “solução” é recorrer à cirurgia (a matança) para acabar com tudo de uma vez por todas. Ao atacarem o Iraque, os Estados Unidos não estão apenas declarando guerra a esse país, mas ao mundo árabe como um todo – tanto os regimes leigos quanto os islâmicos. Trata-se de um chute no formigueiro – e isso se verá, mais tarde. Embriagado por sua onipotência solitária, George W. Bush imagina que, dominando o Iraque (que detém as segundas maiores reservas de petróleo do mundo) e instalando um poder “amigo” no país, se livra da pouco confiável Arábia Saudita (que detém as primeiras). E, uma vez derrubadas as ditaduras e controlados os poços de petróleo, um futuro radioso e democrático surgirá milagrosamente para toda aquela região, inclusive o Iraque. Atualmente, a questão está em saber se o planeta (com exceção da Grã-Bretanha e de Israel) terá peso suficiente para se contrapor ao projeto deste novo doutor Fantástico