Um grande debate… à cubana
Desde que tomou posse, em 2006, Raúl Castro luta pela “atualização” do modelo cubano. Inicialmente, limitou suas ambições às reformas econômicas, garantindo que poderiam abrir as vias para uma nova organização política. Um primeiro passo nesse sentido ocorreu em fevereiro, quando os cubanos foram convidados a se pronunciar sobre a nova Constituição
Eles estão por todos os lados: nos elevadores, nas portas de entrada e a cada andar das escadas de edifícios. Sempre o mesmo anúncio: “Consulta popular. Reunião de todos os cidadãos”. No dia estabelecido, bancos e cadeiras estavam a postos nos Comitês de Defesa da Revolução (CDRs) – organizações encarregadas de acompanhar a vida cotidiana1 –, em salas de escritórios, escolas e até na rua. Em todos esses lugares, os habitantes da ilha foram convidados a se expressar sobre o novo texto constitucional proposto pela Assembleia Nacional. De acordo com os números oficiais, 130 mil reuniões públicas foram organizadas entre 13 de agosto e 15 de novembro de 2018.
No bairro de Altahabana, uma periferia popular de Havana, todas as pessoas que desejassem, em geral um por família, puderam se reunir uma segunda-feira às 18h, quando a maior parte dos habitantes voltava do trabalho ou da escola. Camila E. levou o texto do projeto de Constituição, que foi impresso e distribuído gratuitamente, ou vendido por um peso cubano (equivalente a uma porção diária de pão).
Quem organizou a reunião? Quem coordenou o encontro? E. não sabe. A pergunta chega a surpreendê-la: “Imagino que os presidentes das CDRs se reuniram em nível municipal para decidir como seria o processo”. De acordo com nossas observações, tratava-se de pessoas implicadas na vida do bairro (via CDR ou não), membros do Partido Comunista Cubano (PCC), eleitos em diversas instâncias locais (delegados da zona de circunscrição) ou simples cidadãos com competências em direito.
Outra reunião começa ao mesmo tempo em Vedado, bairro central da capital. Os organizadores lembram que não se trata de debater o texto em geral, e sim de propor emendas: cortar um artigo, inserir outro; modificar uma formulação, esclarecer outra etc. A consulta não tem como objetivo organizar um debate em torno do texto em si, nem mesmo medir o nível de adesão da população. É, antes, de um convite de participação, concebido como (e limitado a) uma possibilidade de sugerir modificações.
A leitura do preâmbulo começa. Nota-se que o projeto de Constituição acrescenta o nome de Fidel na lista de “guias políticos” da pátria: José Martí, Karl Marx, Friedrich Engels e Lenin. Uma historiadora toma a palavra: ela lamenta que o texto não mencione a luta clandestina que precedeu a Revolução de 1959. Os secretários da sessão tomam nota de sua intervenção.
Após a reunião, os relatores e os eleitos de diversas instâncias locais se reuniram em nível municipal para compilar as proposições, antes de digitalizá-las. Segundo as autoridades, o mecanismo permite visibilizar os artigos que geram questionamentos, os que não correspondem às expectativas da população. As reuniões não tiveram nenhuma votação, e continua impossível depreender o número exato de pessoas que se opuseram a determinado artigo ou das que se mostraram determinadas a que outros não fossem suprimidos. Bastava emitir um aviso para que fosse levado em conta. Quantos cidadãos concordam com determinada opinião? Impossível saber. Para alguns, esse modo de funcionamento permite o surgimento de boas ideias, independentemente de serem apoiadas por uma ou mais pessoas. Para outros, a ausência de medidas quantitativas permite sufocar reivindicações majoritárias, porém incômodas ao governo.
Em um país habituado à quase unanimidade política há mais de meio século, surgiram 783.174 propostas de modificações, ajustes ou supressões no texto constitucional. Presumindo um “exercício de democracia”, as autoridades revisaram a primeira versão: a comissão de redação retificou 60% do texto. De fato, após o fim da consulta popular, todas as propostas foram reunidas e sistematizadas em um único relatório, que foi remetido à Comissão Nacional de Reforma Constitucional. Para triar e sistematizar as propostas, foram constituídas equipes de trabalho nos níveis municipal, estadual e nacional, formadas por juristas, professores universitários, pesquisadores e técnicos em informática. Essas equipes conceberam um documento final que foi apresentado, discutido e votado pela Assembleia Nacional. De acordo com Homero Acosta, coordenador da comissão, “essa Constituição é uma expressão autêntica do caráter democrático e participativo de nosso povo, pois emana dele e acolhe seus sentimentos”. A proposta da historiadora sobre a guerrilha, por exemplo, será mantida no texto final.
Pelo socialismo e pela propriedade privada
Retorno ao bairro Vedado. A enumeração dos artigos foi mantida, assim como as propostas – que de forma geral se referiam à forma do texto, e não ao seu sentido profundo. Mas nem sempre. O caráter comunista de Cuba, proclamado na Constituição de 1976 – “O socialismo e o comunismo permitem ao homem se libertar de todas as formas de exploração” – foi suprimido na versão submetida à população. Cuba não era mais “comunista”, e sim “socialista”. A consulta popular conduziu à restauração da afirmação da natureza socialista e comunista do Estado cubano. No momento em que o próprio Estado autoriza pouco a pouco a contratação de assalariados por artesãos e empresas, a população deseja que a noção de “exploração” – no sentido marxista, segundo a qual o empregador absorve uma parte do trabalho de seus funcionários – permaneça como algo a ser banido: “Estamos convencidos de que Cuba jamais retornará ao capitalismo, regime fundado sobre a exploração do homem pelo homem, e que apenas o socialismo e comunismo permitem a plena dignidade do ser humano”, proclama a nova Constituição.
No entanto, a “linha ideológica” das emendas aportadas pela população não é um bloco monolítico. O artigo 22 da primeira versão do texto propunha o reconhecimento da propriedade privada. Apesar de incompatível com uma concepção comunista de mundo, o artigo foi mantido e ampliado aos estrangeiros, atualmente autorizados a comprar imóveis na ilha. O artigo 28, que a consulta não alterou, declara que “o Estado encoraja e assegura as garantias ao investimento estrangeiro para manter o desenvolvimento econômico do país”.
Da mesma forma, o artigo 36 ressalta, após a consulta, que “a aquisição de outra nacionalidade não implica a perda da nacionalidade cubana”, algo que o projeto original nem sequer mencionava. Esse ponto estava proscrito no texto de 1976, apesar de muitos cubanos não terem respeitado a interdição. Dessa forma, a nova Constituição legaliza situações antes à margem da legalidade, já experimentadas por muitos cubanos, e permanece alinhada ao trabalho de legalização de operações já existentes levado adiante por Raúl Castro no âmbito da economia.
A questão do casamento homoafetivo suscitou os debates mais calorosos. O projeto da Constituição apresentado não falava na união de “um homem e uma mulher”, e sim entre “duas pessoas”. As igrejas católicas e protestantes emergiram como uma forma de contrapoder inimaginável alguns anos antes, mas seu peso não é a única explicação para a rejeição desse artigo pela população. Em Vedado, um habitante pede a palavra e explica que Cuba “não está pronta ainda, em relação às mentalidades e à história, para assumir uma mudança como essa”. Uma vizinha se levanta e se indigna, objetando que se trata de um direito elementar e que esse artigo não poderia estar em contradição com o artigo 42, que ela cita: “Todas as pessoas são iguais perante a lei, recebendo a mesma proteção e gozando dos mesmos diretos e oportunidades, sem discriminação de sexo, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, idade, origem étnica, cor da pele, crença religiosa […] ou qualquer outra circunstância pessoal que implique uma distinção em termos de dignidade humana”. Para Dionisio García, bispo de Santiago de Cuba, a segunda maior cidade do país, o casamento homoafetivo revela um “colonialismo ideológico”.
No total, 195 mil propostas relacionadas a esse artigo foram consignadas nas reuniões públicas: 35 mil favoráveis e 160 mil opostas. O texto final da Constituição conservou a ambiguidade e a neutralidade para permitir uma potencial evolução do Código da Família. A redação do artigo 82 se consolidou da seguinte maneira: “O casamento é uma instituição social e jurídica […] que se funda sobre o livre consentimento e a igualdade de direitos, obrigações e capacidades legais dos cônjuges”. A redação marca um recuo em relação à proposta inicial, mas há um avanço em relação ao texto de 1976. Contudo, o poder prometeu um novo referendo sobre a questão do casamento homoafetivo daqui a dois anos. Supõe-se que o Estado não quis arriscar que uma parte grande da população votasse “não” à Constituição para expressar seu veto a esse artigo em particular.
O artigo 109, que reorganiza os poderes, cria os cargos de presidente da República e primeiro-ministro. Na antiga Constituição, existia apenas a função de presidente do Conselho de Estado, que centralizava as funções de chefe de Estado e chefe do governo. O novo texto faz jus, assim, à promessa de Castro de desconcentrar o poder político. Além disso, limita para dois o número de mandatos presidenciais e a 65 anos a idade limite para se apresentar ao mandato supremo.
Outra novidade: o artigo 55 estabelece a “liberdade de expressão”, enquanto a Constituição de 1976 reconhecia apenas uma liberdade de expressão e de imprensa “de acordo com os objetivos de uma sociedade socialista”. Essa liberdade deverá ser construída, assim como o processo de elaboração da nova Constituição: limitado a falas públicas – portanto, sem a possibilidade do anonimato –, o modo de expressão de pontos de vista não favoreceu a crítica.
Vários depoimentos relatam o mesmo tipo de cena: durante as reuniões públicas, uma pessoa sugere reformular um artigo sensível ou faz uma demanda incômoda para o governo, como o fim do partido único.2 Sua sugestão é acolhida pelos relatores, de acordo com o procedimento habitual. Alguns dias depois, essa pessoa é convocada a comparecer na delegacia, onde ela deve explicar os motivos que a fizeram apresentar tal emenda. Na sequência, passa por um longo interrogatório, em que as autoridades buscam garantir que não há algum interventor pagante (notadamente uma potência estrangeira) para que a pessoa formule essa proposta – procedimento que convida a ponderar o otimismo de Acosta.
Campanha pelo “não”
Além disso, a campanha em favor do “sim” sobre o texto final a ser aprovado no referendo parecia ocupar todos os espaços. Nem a televisão, o rádio ou os cartazes evocavam o “não”. O Instituto Cubano da Música e o Ministério da Cultura lançaram um apelo aberto aos artistas para que compusessem uma canção chamando para o “sim”. Na Avenida Boyeros, que liga o aeroporto ao centro de Havana, conhecida pelo imponente painel lembrando que a ilha está sob embargo há cinquenta anos, apareceu durante a campanha um segundo painel, com três “sins” em segundo plano; no primeiro, a frase: “Por nossa cultura, nossas tradições, nossas convicções, nossas crianças, pela juventude, pela democracia, pelo socialismo e pela pátria”. A campanha pelo “não” se restringiu às redes sociais, mais acessíveis desde a abertura do 3G, no dia 6 de dezembro de 2018. A maior parte de seus animadores são os mais críticos ao regime e se recusam a apoiá-lo participando do que eles consideram um simulacro de democracia ou um plebiscito em favor do presidente Miguel Díaz-Canel.
Domingo, 24 de fevereiro de 2019: o dia do referendo chegou. Todos os cidadãos de mais de 16 anos estão aptos a votar, exceto os que residem fora do país. A contagem dos votos aconteceu na mesma noite, em público. Mas seria preciso esperar dois dias para saber os resultados nacionais completos, anunciados pela comissão eleitoral nacional e publicados no jornal oficial Granma. A apresentação leva em conta as abstenções, votos brancos e nulos. Participação: 84,41%. Sim: 86,85%. Não: 9%. Brancos: 2,53%. Nulos: 1,62%. Resultado final: 73,31% de votos efetivos a favor da aprovação do texto. A Constituição entrou em vigor em 10 de abril de 2019, publicada no boletim oficial da República.
*Simone Garnet e Grégoire Varlex são jornalistas.
1 Ler Marion Giraldou, “À Cuba, José ne s’est pas levé” [Em Cuba, José não se levantou], Le Monde Diplomatique, fev. 2016.
2 Ao total, segundo números oficiais, 10 mil propostas foram coletadas a favor da abertura ao multipartidarismo.