Um ícone do jornalismo
Os autênticos lançadores de alerta nos últimos anos – Chelsea Manning, Julian Assange, Edward Snowden –, aqueles que nos “transmitem a informação, qualquer que seja seu custo”, são mais frequentemente perseguidos pela justiça norte-americana do que clientes do departamento de publicidade da CBS, como o Washington Post
Em 3 de fevereiro de 2019, durante a transmissão do Super Bowl pela CBS, os intervalos comerciais custaram US$ 5,25 milhões por uma mensagem de trinta segundos. O Washington Post reservou um spot de um minuto, lido pelo ator Tom Hanks – ou seja, sua transmissão custou mais ou menos o volume de negócios anual do Le Monde Diplomatique. Ele disse o seguinte: “Quando vamos à guerra, quando exercemos nossos direitos, quando nos alçamos o mais alto possível, quando homenageamos um morto e rezamos, quando nossos vizinhos estão em perigo ou quando nossa nação é ameaçada, alguém junta os fatos e transmite a vocês a informação, qualquer que seja seu custo, pois saber é poder. O saber nos ajuda a decidir, o saber nos mantém livres. Washington Post: a democracia morre nas trevas”.
A publicidade não diz forçosamente a verdade… Os autênticos lançadores de alerta nos últimos anos – Chelsea Manning, Julian Assange, Edward Snowden –, aqueles que nos “transmitem a informação, qualquer que seja seu custo”, são com mais frequência perseguidos pela Justiça norte-americana do que clientes do departamento de publicidade da CBS. O crédito do Washington Post deve, portanto, estar bem comprometido para que o jornal responsável pela denúncia do caso Watergate em 1972, quando proporcionou à dupla lendária Carl Bernstein-Bob Woodward os meios de forçar um presidente poderoso à renúncia, se meta, como a Monsanto, em uma campanha de relações públicas.
Mas é possível entender por quê. Mais ou menos no momento em que seu jornal se convidava para o Super Bowl, Woodward publicava um novo livro, Medo, sobre os primeiros meses da presidência de Donald Trump.1 Dessa vez, ele não corria nenhum risco, tal o ponto em que a crítica a Trump, suas obsessões e mentiras se tornou uma indústria. O sucesso foi instantâneo: mais de 2 milhões de exemplares vendidos nos Estados Unidos em poucas semanas. E Woodward, já riquíssimo, gosta muito de dinheiro. Um investigador zeloso da ética não cobraria cachês de US$ 50 mil a 100 mil para falar2 diante de assembleias de empresários tão preocupados com o bem comum quanto o Citibank e o Instituto Norte-Americano de Comida Congelada [American Frozen Food Institute]. Da mesma forma, um jornalista escrupuloso hesitaria antes de exigir, entre um “arranjo” com uma companhia de seguros e outro com um lobby farmacêutico, que o Estado deixasse de regulamentar indevidamente seus setores para que “as forças do mercado possam cumprir sua obra inestimável”. Talvez ele renunciasse a propor que a cobertura pública das despesas médicas de idosos fosse reduzida para responder ao desafio das “realidades do século XXI”.3 Segundo o herói de Watergate, os lucros que ele aufere dessas atividades impuras sustentam a fundação que traz seu nome. Mas semelhante generosidade, permitindo-lhe reduzir sua renda tributável, beneficiou sobretudo um destinatário: a escola privada da elite de Washington que seus filhos frequentaram.
O Libération descreveu nosso ícone nos seguintes termos: “Com 75 anos, dois prêmios Pulitzer, dezoito livros dos quais doze foram best-sellers, Bob Woodward ostenta uma reputação impecável. […] Até aqueles que no passado foram alvo de suas investigações ferozes reconhecem sua ética”.4 Isso bem que merecia ir para a seção de checagem de fatos “Checknews” do jornal francês. Pois “feroz” Woodward não é com todos. Em Medo, ele não resiste à tentação de se ajoelhar aos pés de seu empregador, o homem mais rico do mundo: “A todos aqueles que são empregados pelo Washington Post ou com ele têm relações não faltam motivos para agradecer o fato de Jeff Bezos, fundador e presidente-diretor-geral da Amazon, ser também proprietário do jornal. Ele gastou muito tempo e dinheiro a fim de que esse periódico dispusesse de recursos editoriais para fazer pesquisas aprofundadas”.5 Tão aprofundadas, compreende-se, quanto aquela que ele próprio acaba de consagrar aos primeiros meses da presidência de Trump, inimigo declarado de Bezos.
Há trinta anos, as receitas de Woodward não variam nunca: escolher um personagem de destaque impopular ou em torno do qual haja algum consenso (garantia de best-seller), recompensar seus delatores (ou informantes), atribuindo-lhes um papel bonito, e destruir todos os que se recusam a cooperar. Cada qual fala a Woodward como se falasse a um procurador, e ainda ignoram o que outras testemunhas lhe hajam porventura confiado…
Gary Cohn e Rob Porter devem ter se mostrado loquazes, pois Medo os trata como heróis. O primeiro passou da presidência do banco Goldman Sachs à administração Trump – certificado duplo de retidão moral… Livre-cambista como Woodward, cujo conformismo é absolutamente seguro em relação a quaisquer assuntos, Cohn enfrentou na Casa Branca os arroubos protecionistas de seu patrão. Na primeira cena do livro, ofegante, ele surge prestes a surrupiar no Salão Oval um documento que, se assinado, anularia um acordo de livre-comércio com a Coreia do Sul. Isso significaria, ao que parece, uma “possível catástrofe para a segurança nacional”. Woodward se rejubila então por esse “golpe de Estado administrativo”, a sugerir que a existência de um “Estado profundo” não é mera invenção de paranoicos. Realizada a façanha, Cohn se sente tentado a pedir demissão em protesto contra a reação benevolente de Trump à passeata racista e antissemita de Charlotesville. Mas, quando o patrão apela para seu patriotismo, ele adia a partida a fim de concretizar o projeto de ambos: reduzir os impostos dos mais ricos. Quanto ao outro grande resistente do interior, Porter, acusações de violências domésticas o obrigaram também a pedir demissão. Segundo Woodward, ele se dedicará doravante a “melhorar suas relações e a se cuidar”.6
A benevolência do autor para com suas fontes não abre exceções. Como nenhum hóspede da Casa Branca jamais falou tanto a Woodward quanto o presidente George W. Bush, três livros lhe foram consagrados, os dois primeiros hagiográficos. O terceiro, menos elogioso, saiu quando a Guerra do Iraque começou a andar mal. No entanto, Bush não foi o único responsável pelo desastre: as mentiras referentes às armas de destruição em massa pretensamente em mãos de Saddam Hussein teriam sido menos mortíferas sem o concurso militante do Washington Post – e do próprio Woodward.
O ex-presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, também não teve motivos de queixa contra nosso investigador lendário. O título de sua biografia, Maestro (Simon & Schuster, 2000), já era um elogio de sua severidade. Mas foi uma cartada ruim para Woodward, pois o Fed iria desempenhar um papel de relevo na eclosão da crise financeira deste século.
Infelizmente, Trump confia seus sentimentos ao Twitter, e não a Woodward! Ainda assim, por causa de vazamentos de oportunistas convictos de que, traindo seu chefe, ganharão fama, Woodward parece saber tudo sobre as reuniões da Casa Branca, a ponto de poder conseguir ler os pensamentos de cada um dos participantes. Sua técnica narrativa, bem antiga, consiste em colocar entre aspas diálogos que dificilmente foram reproduzidos ao pé da letra pelas testemunhas, tornando a leitura de seus livros mais excitante – mesmo que esse “novo jornalismo” retome os truques mais surrados da narrativa…
Assim, o livro que Woodward consagrou aos primeiros meses da presidência de Clinton começa por um diálogo entre os dois cônjuges, em 1991, em sua cama de casal. O casal examina a ideia da candidatura de “Bill” à Casa Branca no ano seguinte. “Você vai chegar lá”, diz Hillary ao marido. “Acha mesmo?”, pergunta ele. “Sim”, insiste a esposa. “O que acha que vai acontecer?”; “Acho que você vai ganhar”; “Acredita realmente nisso?”; “Acredito, sim”. Na introdução do mesmo livro, Woodward se gaba de sua arte, que “mistura a exatidão da história com a contemporaneidade do jornalismo”: “Os diálogos e as citações provêm ao menos de um participante ou de notas que alguém tomou durante a discussão. Quando se diz que uma pessoa ‘pensou’ ou ‘sentiu’ uma coisa, essa descrição vem da própria pessoa ou de outra que a confiou a ela diretamente”. Técnica das mais confiáveis, pois Woodward pode escrever que um ator de seu relato “pensa mais ou menos que…”7
À diferença de seu antecessor, que “não era suficientemente firme”, Trump teria de qualquer forma compreendido que “não se pode agir de maneira normal no mundo dos Khamenei, dos Putin, dos Al-Assad”. Ah, suspirou Woodward no ano passado, se em lugar desses brutos o mundo fosse povoado de dirigentes esclarecidos como “o carismático Mohammed bin Salman! MBS tem visão, tem energia. Cheio de encanto, fala em reformas audaciosas e modernizadoras”. Pouco depois desse elogio por parte de um ícone vivo do jornalismo, “MBS” ordenou o assassinato de Jamal Khashoggi, editorialista do Washington Post.
Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique Brasil.
1 Bob Woodward, Peur. Trump à la Maison Blanche [Medo. Trump na Casa Branca], Seuil, Paris, 2018.
2 “Bob Woodward”, All American Speakers. Disponível em: <www.allamericanspeakers.com>.
3 Ken Silverstein, “Bob Woodward’s Moonlighting” [O trabalho clandestino de Bob Woodward], Browsings, 12 jun. 2008. Disponível em: <https://harpers.org>.
4 Frédéric Autran e Charlotte Oberti, “Un costard taille Woodward pour Trump” [Um terno tamanho Woodward para Trump], Libération, Paris, 6 set. 2018.
5 Bob Woodward, op. cit.
6 Cf. Tim Weiner, “No heroes here” [Não há heróis aqui], The New York Review of Books, 8 nov. 2018.
7 Bob Woodward, The Agenda: Inside the Clinton White House [A agenda: dentro da Casa Branca de Clinton], Simon & Schuster, Nova York, 1994.