Um inimigo difuso
Operações maciças e rápidas de bombardeios de grande altitude levaram os norte-americanos a pensar que poderiam ganhar guerras sem um único morto. A transformação de quatro aviões civis em bombas voadoras acaba de pôr fim a essa idéiaMarwan Bishara
O ataque de 11 de setembro acaba de pôr fim a um período em que os Estados Unidos vinham aperfeiçoando sua abordagem da “guerra com morte zero”, que prometia reduzir ao mínimo as perdas de vidas norte-americanas em conflitos futuros, infligindo o máximo de prejuízos ao inimigo. O presidente norte-americano, George W. Bush, teve que declarar “guerra” antes de saber a quem o fazer. Desta vez, ao contrário dos adversários do século passado, agora o inimigo não pode ser definido senão pelo que não é: um Estado. O novo inimigo é móvel, transnacional – ou infranacional. Os terroristas atacaram sem deixar endereço: é certo que pesam fortes suspeitas contra alguns, mas estes não se sentem comprometidos com a Declaração das Nações Unidas, nem com qualquer outra autoridade existente. O acontecimento abre uma nova era de guerra – a era dos conflitos assimétricos.
Ao contrário dos adversários do século passado, o inimigo só pode ser definido pelo que não é: um Estado. É móvel e transnacional – ou infranacional
Durante décadas, os Estados Unidos gastaram trilhões de dólares para se protegerem das conseqüências dos confrontos. Depois da guerra do Vietnã, e de vinte anos de despesas colossais, conduziram a guerra do Golfo minimizando suas próprias perdas humanas. As operações maciças e rápidas de bombardeios de grande altitude – doutrina do general Colin Powell ? levaram os norte-americanos a pensar que poderiam ganhar os conflitos “simétricos” sem um único morto: mísseis de longa distância e superioridade aérea, apoiados pelas mais avançadas capacidades de informação aérea ou espacial, garantiriam tal resultado assegurando ao inimigo um grau de destruição insuportável. A transformação de quatro aviões civis em bombas voadoras ? por piratas armados de facas e estiletes, e dispostos a morrer por sua causa ? acaba de pôr fim a essa idéia.
Um ritmo acelerado de mudanças
Nos últimos tempos, alguns estrategistas começavam a alertar os Estados Unidos contra os velhos esquemas, e previam cenários de “guerra assimétrica”, que os atingiria nos pontos em que são mais vulneráveis: mortos, civis ou militares; o orgulho nacional; Washington e Wall Street. No contexto de um mundo que se globalizava, o Pentágono se comprometeu com a “revolução nos assuntos militares” (RMA).
Duas diferentes escolas de pensamento dividem a reflexão sobre os riscos em jogo. A primeira fala de “guerra de quarta geração”, de conflito “não-estatal” (stateless) ou de “guerra assimétrica” – conduzida por “opositores cuja base pode não ser um Estado-nação, mas uma ideologia ou uma religião”. Em fevereiro de 2001, falando a respeito das “ameaças mundiais1“, diante do Comitê sobre a Informação, do Senado, o diretor da CIA, George Tenet, frisava o quanto estava surpreso com o “ritmo acelerado das mudanças em tantos setores que afetam nossos interesses nacionais”.
A “ameaça” dos “Estados-delinqüentes”
Os terroristas atacam sem deixar endereço e não se sentem comprometidos com qualquer autoridade existente. É a era dos conflitos assimétricos
Nessa ótica, a “assimetria” tanto se refere a êmulos de Osama bin Laden quanto às máfias internacionais, aos traficantes de droga e também aos atores não-estatais, como aqueles com quem os Estados Unidos se confrontaram na Somália, em Kosovo – e mesmo no Líbano, em 1983, quando uma bomba matou 239 fuzileiros navais norte-americanos três minutos antes que um caminhão com explosivos destruísse violentamente um edifício onde morreram 73 soldados franceses. Os defensores dessa abordagem devem interrogar-se quanto à utilidade das somas destinadas ao desenvolvimento de novos aviões de combate e de fragatas, quando dois homens num barco podem atirar-se sobre o navio militar norte-americano Cole (12 de outubro de 2000, em Aden) e inutilizá-lo, levando a vida de 17 soldados. A guerra de alta tecnologia é amplamente ineficaz contra o terrorismo e os opositores de quarta geração.
O segundo campo concentrava sua reflexão sobre o escudo de defesa antimísseis, destinado a proteger o território norte-americano contra a chegada de vetores balísticos portadores de cargas nucleares, químicas ou bacteriológicas. O governo Bush, sob a direção de Dick Cheney e Donald Rumsfeld, respectivamente vice-presidente e secretário da Defesa, concentrou seus esforços nesse projeto ? que tinha o mérito, a seus olhos, de garantir importantes subvenções ao complexo militar-industrial. Para acalmar a indignação internacional suscitada pelo crescimento da proliferação de armamentos que isso implicava, Bush foi obrigado a explicar que se tratava de defender os Estados Unidos não contra as outras potências nucleares do planeta, mas contra alguns “Estados-delinqüentes” ou, pior ainda, contra grupos capazes de disparar mísseis contra os interesses norte-americanos, em seu território e em toda parte no mundo.
Diferença qualitativa ou quantitativa?
Assim, essas duas correntes de pensamento reuniram-se para elaborar uma estratégia coerente de combate contra o novo inimigo no âmbito de um confronto assimétrico. Mas, com exceção de Bin Laden, quem mais poderia ser visado? As máfias e os traficantes de droga não têm muito interesse em desencadear hostilidades que só poderiam prejudicar seus negócios. Além disso, se os Estados Unidos não têm intenção de atacar um dos países que classificam de “Estados-delinqüentes”, como os dirigentes deste poderiam ser tentados a lançar um míssil contra os Estados Unidos e a atrair, sobre si e seus países, uma resposta comparável àquela que conheceram a Líbia e o Iraque?
Duas escolas de pensamento dividem os estrategistas. Uma é a da “guerra de quarta geração”, de conflito “não estatal”, ou de “guerra assimétrica”
Muitas questões permanecem em aberto. Em que medida os Estados Unidos criaram essas novas ameaças, e qual é – além dos ataques de 11 de setembro – seu grau de perigo? Em quê esse terrorismo difere daquele que existe em outros países, árabes ou europeus? A diferença existente seria qualitativa ou apenas (se é que se pode falar assim) quantitativa? Os especialistas norte-americanos tentam dar algumas respostas a tais questões, sem chegarem a concluir que se trata de uma nova forma de guerra que sucede aos tradicionais conflitos interestatais.
A Internet no arsenal
Deve-se distinguir assimetria de dissimetria. O conceito de dissimetria indica uma diferença quantitativa entre as forças ou o poder dos beligerantes: um país forte contra um país fraco. Os Estados Unidos contra o Iraque, por exemplo. A assimetria, em contrapartida, destaca as diferenças qualitativas nos meios empregados, no estilo e nos valores dos novos inimigos. Em outros termos, quando uma potência, como os Estados Unidos, consolida sua hegemonia sobre o curso do mundo e sobre a guerra convencional, seus inimigos e suas vítimas recorrem a meios de luta não-convencionais e “assimétricos” para combatê-la, evitando sua força e concentrando os ataques contra seus pontos vulneráveis.
O novo inimigo, conclui o Pentágono, “não combate lealmente”, portanto. Utiliza, numa estratégia claramente ancorada no mundo globalizado, todos os meios modernos de comunicação, de transporte, de informação… O “terror psicológico”, a influência da mídia tradicional e a Internet fazem parte de seu arsenal. Longe de armas sofisticadas e de aviões de combate, usa facas, barcos de pesca, bombas caseiras e aviões civis que, como se viu, constituem igualmente ameaças eficazes. Isso torna mais difícil enfrentá-lo, detectá-lo e prevenir-se contra ele.
Nova geração de fundamentalistas
A “assimetria” tanto se refere a êmulos de Osama bin Laden quanto às máfias internacionais, aos traficantes de droga e também aos atores não-estatais
Mesmo que disponha realmente de uma base geográfica, é impossível cadastrá-lo de maneira categórica, ou mesmo simplesmente identificá-lo. Não tem endereço fixo e sua rede é dispersa. A exemplo das empresas transnacionais, dos gurus da mídia e dos gigantes da Internet, o mundo é seu endereço e seu campo de atuação.
Os “opositores assimétricos” têm uma força e um interesse comuns: enfraquecer a soberania dos Estados e aumentar o poder das forças do mercado. Até se poderia dizer que, de certa forma, seus interesses se aproximam dos da Sony, do McDonald?s, da CNN, da Addidas e da America Online. Todos utilizam as zonas cinzentas ? onde as estruturas jurídicas são pobres ? para obter o lucro máximo e escapar às regulamentações que decorrem da legitimidade constitucional democrática dos Estados. Todos são, nesse sentido, criaturas da globalização neoliberal. Emancipando-se dos Estados e de instituições internacionais como a ONU, que representa os Estados, eles conseguem margens de manobra de que os próprios Estados não dispõem.
É por isso que Osama bin Laden é descrito pelos meios de comunicação norte-americanos não só como um fundamentalista islâmico, enraizado em sua sociedade particular, mas como o representante de uma nova geração cosmopolita de fundamentalistas que faz pairar uma ameaça global, a exemplo do que ocorre com o movimento islâmico do sudanês Hassan Al-Tourabi (atualmente preso, no Sudão). Em tal representação, esses movimentos buscam confrontar-se com os Estados Unidos, enfraquecer sua hegemonia e mesmo destruí-los.
Um inimigo quase “virtual”
Somando-se todos esses critérios ? que para os modernos estrategistas norte-americanos caracterizam o “inimigo assimétrico” ? é forçoso constatar o quanto entram na construção do retrato-robô do “suspeito número um” de Nova York, Osama bin Laden. Se ele não existisse, seria preciso inventá-lo! Antes de golpear o coração dos Estados Unidos, sua personagem já estava bastante presente em todos os espíritos.
A segunda escola defende o escudo de defesa antimísseis, destinado a proteger contra armas portadoras de cargas nucleares, químicas ou bacteriológicas
Todo mundo já conhece a história de Osama bin Laden, formado pela CIA na década de 80 e que acabaria virando-se contra seu criador após a guerra do Golfo (leia o artigo “O adversário”, de Ignacio Ramonet, editorial da edição de setembro de Le Monde diplomatique). Seria possível, então, distinguir o “inimigo assimétrico” dos sistemas estatais e de suas redes de informações? Seria realmente possível conduzir um movimento de violência internacional sem apoio estatal? Como pode esse novo inimigo ser quase “virtual” realizando operações definitivamente reais? Dizer que se baseia numa ideologia é incompleto: as ideologias não podem agir fora de lugares geográficos onde se preparam as operações, fora de logística e de instrumentos a serem armazenados, fora de contas bancárias etc. Seria impossível à ideologia permanecer inteiramente camuflada, assegurando seu funcionamento a longo prazo.
EUA fizeram operações semelhantes
Outras formas de assimetria aparecem também no catálogo do novo pensamento estratégico norte-americano: os Estados “delinqüentes” ou “em vias de falência”. A experiência da intervenção na Somália marcou uma guinada importantíssima: em outubro de 1993, quando o clã de Hussein Aydid humilhou as tropas norte-americanas em Mogadíscio, o governo do presidente William Clinton convenceu-se de que não poderia gerir nem ganhar uma guerra contra milícias que não combatiam “lealmente” e que não tinham contas a prestar ao sistema interestatal.
A operação “Justa Causa”, no Panamá, em dezembro de 1989 também foi, à sua maneira, um combate assimétrico, mesmo que não se tratasse, para Washington, de sua operação externa mais importante depois do Vietnã: capturar o presidente Manuel Antonio Noriega que, também ele, acabara escapando ao controle de seus manipuladores… Em seguida, os Estados Unidos investiram contra Saddam Hussein, Slobodan Milosevic e Radovan Karadzic, todos considerados mais como bandidos do que como chefes de Estado. A guerra fria estava inteiramente acabada. Contudo, essas operações não eram muito diferentes das que os Estados Unidos haviam comandado, durante a guerra fria, contra dirigentes estrangeiros, seja na América Latina ou no Oriente Médio. Então, onde está a diferença?
O combate ao “inimigo assimétrico”
Mais do que na capacidade de designar como alvo uma pessoa, e não um Estado, é provavelmente nos meios empregados que aparecem com nitidez os contornos das grandes mudanças relacionadas à avaliação de “inimigos assimétricos”. Métodos de prevenção e de dissuasão não ortodoxos, que não eram considerados ou não eram legítimos antes de 11 de setembro de 2001 ? como os assassinatos “dirigidos” de dirigentes estrangeiros2 ? vão passar a integrar o arsenal de defesa norte-americano. Daqui por diante, as intervenções externas norte-americanas vão transpor um novo patamar da violência, visto que uma grande parte da opinião norte-americana aceita, após 11 de setembro, que civis sejam tomados como alvo.
As duas correntes de pensamento uniram-se para elaborar uma estratégia coerente de combate contra o novo inimigo no âmbito de um confronto assimétrico
Para combater o “inimigo assimétrico”, os estrategistas concordam com a necessidade de se recorrer a material mais preciso e mais poderoso. Os serviços de informação serão fortalecidos tanto em recursos tecnológicos quanto em recursos humanos. Há até quem defenda a “determinação do perfil racial” nas investigações policiais. A espionagem será dirigida para uma miríade de fontes potenciais de apoio do novo inimigo: organizações não governamentais, associações de ajuda mútua, comunidades de expatriados, sites da Internet?Um senador norte-americano até se queixou, recentemente, que a CIA suplantava o Departamento de Estado no campo diplomático.
As novas táticas israelenses
Além do que, atualmente o escudo antimíssil pode vir a sair do papel: quem sabe o que preparam esses assassinos demoníacos? O Senado aprovou, por unanimidade, poderes ampliados para o presidente. Na Câmara dos Deputados, houve 420 votos “a favor” e um único “contra”, o da democrata Barbara Lee, para quem “uma ação militar não impedirá que sejam perpetrados outros atos de terrorismo internacional contra os Estados Unidos” 3.
Na prática, a maioria dos trabalhos teóricos dedicados à guerra assimétrica dedica-se aos Estados Unidos e, depois da segunda Intifada, a Israel. Esses dois países colaboram estreitamente em diversos programas “assimétricos”, principalmente em torno do projeto antimíssil Arrow. As técnicas militares empregadas por Tel-Aviv na Cisjordânia e em Gaza constituem especial interesse entre os analistas, que nelas detectaram “um caráter assimétrico”.
Sob o título Como travar uma guerra assimétrica, o general Wesley Clark, que comandou as tropas da Otan durante a guerra do Kosovo, explica que os palestinos “no interior de Israel” – ele não sabe, certamente, que a Cisjordânia e Gaza não ficam “no interior de Israel”, mas, segundo o direito internacional, são territórios ocupados – aprenderam a resistir fazendo uso de armas não-mortais, pedras e pedaços de pau. Tratava-se, segundo sua análise, de uma tática visando a explorar a sensibilidade da opinião mundial e a obrigar as forças de segurança israelenses a uma reação desproporcional. Na época, homens armados misturavam-se com atiradores de pedras, enquanto outros colocavam bombas. Contra-atacar com aviões de caça, blindados e tiros de artilharia era ineficaz; revidar com tropas de infantaria expunha os soldados e, portanto, a coesão da opinião pública, a muitos riscos. Israel teve que desenvolver novos equipamentos, novas forças e novas táticas. Para tornar suas fronteiras mais seguras, utilizou mais blindados. Comprou helicópteros, aviões teleguiados e sistemas ópticos de longo alcance. Armou seus soldados com balas de borracha, dentre outros instrumentos para controle de rebeliões. Forças especiais foram encarregadas de se juntar ao exército convencional na manutenção da ordem, no interior de Israel4.
O perigo das “zonas cinzentas”
Osama bin Laden é descrito como o representante de uma nova geração cosmopolita de fundamentalistas islâmicos que faz pairar uma ameaça global
A admiração devotada por Wesley Clark à tática de Israel é alarmante: essa política provocou a morte de mais de 600 palestinos, sem falar dos milhares de feridos. Sobretudo, essa utilização da força não deu resultado algum, em termos de segurança, visto que na ausência de opções políticas ou diplomáticas, não dissuadiu palestinos de cometerem novos atentados.
Eminente analista do Centre for Strategic and International Studies de Washington, Anthony Cordesman havia começado por sugerir que Israel obrigasse a Autoridade Palestina a eliminar palestinos e a limitar suas liberdades individuais para “estabilizar” a situação. Evocara até o uso da tortura. Depois, com a continuação da Intifada, mostrou que os palestinos já não tinham senão uma alternativa: a “a paz na violência”, ou a guerra. Dessa forma, Israel se encarregaria do serviço sujo no lugar da Autoridade, e contra ela, o que ele chamava de “guerra assimétrica”. Isso significava mais controle social, mais assassinatos, e sempre mais entraves à economia. A se escutar o que diz o presidente George W. Bush, parece claro que os Estados Unidos caminham para uma prática similar de “guerra assimétrica”, a despeito do fracasso evidente dessa estratégia na Cisjordânia e em Gaza.
Essa opção seria uma catástrofe. As “zonas cinzentas” do mundo, criadas pelas guerras, pela globalização e pelo empobrecimento, são um terreno perigoso para se travarem “guerras assimétricas”. Instituições públicas e o desenvolvimento são mais necessários do que intervenções militares. Por outro lado, os atentados de 11 de setembro não mudarão o mundo, mas refletem as transformações de um mundo que muda e que é preciso tentar entender. O contra-ataque norte-americano que se esboça confirma, no entanto, a busca de uma estratégia antiga que visa a impor uma ordem internacional de segurança pública favorável aos interesses dos Estados Unidos (leia, nesta edição, o artigo “Do triunfalismo ao desastre”, de Steven C. Clemons). Será que vamos ver novamente o mesmo roteiro que se seguiu à “vitória” sobre o Iraque e que incentivou a expansão dos grupos fundamentalistas islâmicos mais radicais ? O novo “inimigo assimétrico” não pode ser vencido por meio da força bruta e, menos ainda, por meio de uma tecnologia sem projeto político que, cada vez mais, se revelará inferior ao poder da cultura e da identi
Marwan Bishara é jornalista, autor de Palestine/Israel: la paix ou l’apartheid (Paris, La Découverte, 2002).