Um mandato insustentável no Kosovo
Quatro anos após a guerra, a violência continua a imperar no Kosovo, onde 80 mil sérvios vivem em uma situação terrível e as forças de paz da ONU substituem as forças de segurança sérvias no impedimento às aspirações nacionais albanesasJean-Arnault Dérens
Alguns dias após o 14 de outubro, quando representantes de Belgrado e de Pristina se encontraram pela primeira vez, em Viena, para pôr fim à guerra do Kosovo, um velho, sérvio, que ficara isolado num vilarejo albanês, abandonado pelos vizinhos, morreu de fome sem que lhe fosse dada qualquer ajuda. Esta história trágica serve para lembrar a terrível situação em que vivem até hoje os 80 mil sérvios do Kosovo1 , assim como a violência que, quatro anos e meio após o fim da guerra, continua imperando naquele protetorado das Nações Unidas.
A intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), na primavera de 1999, teve por objetivo pôr um fim aos abusos do regime de Slobodan Milosevic contra a comunidade albanesa, bem como conseguir a retirada de suas forças de segurança do Kosovo. A resolução 1.244, adotada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 11 de junho de 1999, previa que o Kosovo ficaria, provisoriamente, sob administração da ONU, porém “no âmbito de respeito pela integridade territorial da Federação Iugoslava”. Esta, por sua vez, foi substituída em 5 de fevereiro de 2003 pela União da Sérvia e Montenegro, que herdou os compromissos internacionais da Federação.
O governo de Belgrado vem solicitando constantemente a aplicação rigorosa da resolução 1.244, o que implicaria em restaurar, progressivamente, a soberania sérvia sobre o Kosovo: a resolução prevê, por exemplo, a volta das forças de segurança sérvio-montenegrinas para suas fronteiras. A Missão das Nações Unidas no Kosovo (Minuk), no entanto, vem tentando, desde 1999, construir ex nihilo instituições estatais no Kosovo, esbarrando permanentemente nas contradições do próprio estatuto de seu mandato na província.
Descrédito generalizado
Após longos adiamentos, a privatização das empresas do Kosovo finalmente começou em maio de 2003. O processo é supervisionado pela Kosovo Trust Agency (KTA), que funciona sob a tutela da Agência Européia da Reconstrução. A KTA decidiu, entretanto, suspender a terceira oferta de licitação, divulgada no último mês de setembro e que envolveria 22 empresas. Na realidade, as empresas do Kosovo que pertencem ao setor de propriedade social, responderiam legalmente ao direito iugoslavo. Um empresário norte-americano que comprou uma serraria na cidade de Pec entrou com uma ação judicial num tribunal de Nova York. Os responsáveis da KTA correm o risco de ser processados por terem privatizado o que não lhes pertencia2!
A Missão das Nações Unidas no Kosovo (Minuk), no entanto, vem tentando, desde 1999, construir ex nihilo instituições estatais no Kosovo
Este exemplo ilustra, pelo absurdo, os limites do mandato internacional que, efetivamente, vigora numa situação de ausência de direito que impede qualquer projeto de desenvolvimento numa região em que o desemprego atinge – pelo menos – 50% da população economicamente ativa. “Quando cheguei ao Kosovo, no ano 2000, muitos funcionários internacionais tentavam, bem ou mal, levar adiante projetos de desenvolvimento econômico. Atualmente, todo mundo parece ter desistido da idéia de que o Kosovo possa produzir o que quer que seja ou sobreviver sem depender exclusivamente dos donativos internacionais, das transferências bancárias da diáspora albanesa na Europa e do lucro do crime organizado”, reconhece, decepcionado, um experiente colaborador da ajuda humanitária à província.
Os dirigentes albaneses insistem no caráter provisório do protetorado internacional que, segundo eles, deveria representar apenas uma etapa antes da independência do Kosovo, desejada pela imensa maioria da população. Recentemente, o analista Branislav Milosevic reconheceu que “a resolução 1.244 tornou-se uma espécie de Livro Sagrado em que ninguém mais acredita”, principalmente porque a Minuk “foi incapaz de impor uma interpretação oficial” da resolução3.
Avião sem piloto
Efetivamente, o Kosovo assemelha-se mais do que nunca a um barco sem rumo ou, como disse o jornalista albanês Veton Surroi, a um “avião sem piloto4 “. O encontro de Viena, apresentado como uma reunião fundamental para o futuro, mais parece ter sido uma operação de comunicação da comunidade internacional. Era necessário conseguir a imagem forte de um aperto de mão entre os representantes sérvios e albaneses, que não podiam senão submeter-se ao princípio da abertura do diálogo – sob pena de se exporem a insuperáveis represálias internacionais -, ainda que suas posições continuassem, em grande parte, inconciliáveis.
Além do mais, na véspera do encontro, o novo chefe da Minuk, Harri Holkeri, nomeado em julho deste ano, decidiu excluir da delegação de Pristina, oficialmente por motivos protocolares, o ministro Milorad Todorovic, de origem sérvia e encarregado da volta dos refugiados, assim como a ministra Resmija Mumdzija, da Saúde e pertencente à comunidade turca. O primeiro-ministro do Kosovo, Bajram Rexhepi, recusou-se a participar das discussões.
Os responsáveis da KTA correm o risco de ser processados por terem privatizado o que não lhes pertencia
Este último é egresso do Partido Democrático do Kosovo (PDK), que abriga a maioria dos ex-guerrilheiros do Exército de Libertação do Kosovo (UCK). Embora o PDK tivesse aceitado o princípio do encontro de Viena, a delegação de Pristina só contou com Ibrahim Rugova, presidente do Kosovo – que goza de uma inegável autoridade moral, mas dispõe de poderes meramente protocolares – e Nexhat Daci, presidente do Parlamento, filiado à Liga Democrática do Kosovo (LDK), dirigida por Rugova. Portanto, os “moderados” da LDK se encontram novamente numa situação das mais desconfortáveis, correndo o risco de serem acusados de “traição” se realmente consentirem numa discussão com o inimigo sérvio.
Violência contra os sérvios
Ex-mediador da questão dos direitos humanos na região majoritariamente sérvia do norte do Kosovo, Nikola Kabasic não poupa palavras duras para estigmatizar o nacionalismo da LDK: “Ibrahim Rugova é um nacionalista apenas ligeiramente menos radical que os outros. Desde que é presidente do Kosovo, há dois anos, nunca tentou encontrar representantes sérvios, ou saber o que se passa nos enclaves, nos guetos em que vivem 80 mil sérvios.” Para Kabasic, “Uma verdadeira negociação só será possível quando os políticos albaneses tiverem a coragem de assumir suas responsabilidades para com seus concidadãos sérvios, denunciando claramente a violência, os atentados à liberdade de ir e vir e aos direitos humanos, quando pararem de considerar os sérvios como criminosos de guerra e cidadãos de segunda classe”.
Por enquanto, nenhum dirigente político albanês parece querer se arriscar por essa via, pois essa coragem política poderia ter um preço político demasiado alto a pagar. Ainda embrionária, a sociedade civil – que se desenvolveu no Kosovo durante a década de 90 – também continua muda. Desde 1999, as raras iniciativas visando a incentivar o diálogo entre as diferentes comunidades do Kosovo partiram sempre de atores estrangeiros e não encontraram uma repercussão concreta na sociedade.
Kabasic prossegue em sua crítica: “Para os albaneses, as promessas demagógicas tomam o lugar das questões políticas; para o governo de Belgrado, o Kosovo não passa de um tema de política interna a ser agitado nos períodos eleitorais; e a comunidade internacional concede, de tempos em tempos, seu aval a uns e a outros.”
Corrupção em altas esferas
O mandato internacional efetivamente vigora numa situação de ausência de direito que impede qualquer projeto de desenvolvimento numa região
A Minuk e as diferentes organizações internacionais presentes contam com milhares de funcionários civis. Nas comunidades, os administradores civis da Minuk gozam de um poder discricionário que lhes permite anular as decisões dos conselhos municipais eleitos em 2001. Muitas vezes, estes administradores não ficam mais que seis meses, ou um ano, no cargo. Nos jantares em que esses funcionários se encontram, contam-se muitas curiosidades: tal administrador, vindo da Bulgária, não fazia distinção entre suas contas pessoais e as da comunidade; tal outro, originário da Mauritânia, teria expulsado uma delegação de sindicalistas albaneses, explicando-lhes, em tom professoral, que “agora, no Kosovo, é a democracia; não há mais socialismo, nem sindicatos”.
Casos de corrupção atingiram constantemente a administração internacional, inclusive as esferas mais altas. O ex-diretor da Companhia de Eletricidade do Kosovo (KEK), de nacionalidade alemã, foi preso, em dezembro de 2002, pela polícia de seu país: 4,5 milhões de euros (15,8 milhões de reais) enviados por doadores internacionais haviam desaparecido das contas da KEK5.
Expansão do crime organizado
A expansão do crime organizado também representa um dos fracassos mais graves da administração das Nações Unidas. Mais do que nunca, o Kosovo é uma das escalas mais importantes das rotas européias da droga e do tráfico de seres humanos – e todo o tipo de tráfico ocorre em suas fronteiras. A polícia da ONU divide a responsabilidade com o serviço de polícia do Kosovo (KPS), que conta com funcionários locais. Na realidade, agentes da UCK e mesmo os grupos criminosos estão infiltrados no KPS. Também mantêm sob seu controle os tradutores, indispensáveis para o trabalho diário dos policiais das Nações Unidas.
A expansão do crime organizado também representa um dos fracassos mais graves da administração das Nações Unidas
Em Pristina, cerca de mil manifestantes reuniram-se no dia 14 de outubro para denunciar o encontro de Viena. O Movimento Popular do Kosovo (LPK) e o Movimento Nacional para a Libertação do Kosovo (LKCK), dois partidos que participaram da guerrilha ao lado da UCK, mas atualmente estão marginalizados, reivindicam oficialmente o fim da “ocupação internacional” do Kosovo. Logo no início da intervenção da Otan no Kosovo, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano, lembrou que o motivo “humanitário” da intervenção não dispensava as democracias de proporem uma solução conveniente para um problema que pensavam poder resolver pela força. Na ausência de tal solução, o resultado paradoxal da intervenção ocidental seria as forças da paz das Nações Unidas substituírem as forças de segurança sérvias para impedir as aspirações nacionais albanesas.
Prorrogação do status quo
Desde a reunião de cúpula de Tessalônica, em junho de 2003, uma nova “doutrina européia” ganhou corpo em relação ao Kosovo. Assim como o conjunto dos “Bálcãs ocidentais” – um novo eufemismo inventado para designar a Albânia e as antigas repúblicas iugoslavas, com exceção da Eslovênia -, o Kosovo teria uma vocação “natural” a aderir, futuramente, à Europa unida. A perspectiva da integração deveria dissolver, progressivamente, as reivindicações e os conflitos territoriais, assim como significar a chegada progressiva de uma nova era de paz para a região. Os dirigentes da União Européia, no entanto, recusaram-se a mencionar qualquer calendário para essa integração.
A prorrogação do status quo é apresentada como o corolário dessa perspectiva bastante vaga da integração européia, mas a impaciência cresce entre a população albanesa. Desde a primavera, uma nova organização guerrilheira, o Exército Nacional Albanês (ANA) vem multiplicando suas ações, com atentados no Kosovo, na Macedônia e no vale de Presevo, ao sul da Sérvia. O ANA reivindica a unificação de todas as “terras albanesas” dos Bálcãs e a criação de um “Estado albanês étnico unificado”. Em 2001, as guerrilhas albanesas “periféricas” surgidas no vale de Presevo e na Macedônia já representavam uma resposta ao impasse da situação no Kosovo.
O alimento do extremismo
A maioria dos albaneses continua mais simpática à perspectiva da independência do Kosovo do que à criação de uma “Grande Albânia”
Com vínculos bastante estreitos com diversos grupos criminosos, o ANA ainda não goza de um apoio popular significativo. Além do mais, a maioria dos albaneses continua mais simpática à perspectiva da independência do Kosovo do que à criação de uma “Grande Albânia”. No entanto, a comunidade internacional continua se opondo à idéia de qualquer tipo de modificação das fronteiras da região, por temer as reações em cadeia que isso poderia acarretar. Ainda que Ibrahim Rugova tenha razão em afirmar que a recusa da independência do Kosovo alimenta o extremismo.
Para os países europeus mais atingidos pela emigração albanesa – principalmente a Alemanha, a Suíça, a Bélgica e a Suécia – a solução da crise do Kosovo passou a ser um tema da política interna. Desde 1999, todos esses países adotaram políticas, mais ou menos radicais, de rejeitar pedidos de refugiados e asilados políticos. A radicalização e o desespero da população albanesa – que é a mais jovem da Europa – pode vir a significar, num prazo curto, uma nova inflação dos fluxos migratórios
(Trad.: Jô Amado)
1 – Cerca de 200 mil sérvios do Kosovo refugiaram-se na Sérvia e em Montenegro.
2 – Ler, de Tanja Matic e Alma Lama, “Privatisations au Kosovo: mais à qui appartiennent les entreprises?”, IWPR, 24 de outubro de 2003, site: www.balkans.eu.org/article3720.htm
3 – Ler, de Branislav Milosevic, “Kosovo: la Serbie à la recherche d?une stratégie de sor
Jean-Arnault Dérens é redator-chefe do Courrier des Balkans.