Um “milagre” com pés de barro
Durante 15 anos, o regime de Ben Ali conseguiu, por meio de incontestáveis avanços na área social – o “milagre tunisiano” -, manter neutralizado qualquer tipo de oposição política. Com a profunda crise econômica, no entanto, o quadro começa a mudarSophie Bessis, Kamel Jendoubi
Até as autoridades, no entanto useiras e vezeiras em discursos triunfalistas, concordam: do ponto de vista econômico, 2002 foi um annus horribilis para a Tunísia, e suas conseqüências continuam fazendo-se sentir. A taxa de crescimento – que nunca caíra abaixo de 4% desde 1995 e havia superado 6% em 1999 – chegou, com muita dificuldade, a 1,9% no ano passado.
Além de uma safra agrícola catastrófica, que veio se juntar a quatro longos anos de seca, o ano turístico foi calamitoso para a economia tunisiana
Realmente, a conjuntura em nada ajudou o país a manter as ambições divulgadas pelo IX Plano de Desenvolvimento que previa, ao ser lançado, um crescimento de 6,5% em 2002. Além de uma safra agrícola catastrófica, que veio se juntar a quatro longos anos de seca, o ano turístico – atingido em cheio pela retração mundial do setor após o 11 de setembro de 2001 e pelo atentado do mês de abril de 2002 contra a sinagoga de Djerba – foi calamitoso: segundo os dados do governo, a queda da receita teria sido de 13% nesse setor vital para a economia, que representa 8% na formação do PNB e emprega, direta ou indiretamente, várias centenas de milhares de pessoas. Enquanto as exportações caíram por causa da relativa estagnação das economias ocidentais e do mau desempenho da agricultura, as necessidades alimentares não satisfeitas por uma fraca produção local – a produção de cereais em 2002 foi a mais baixa nos últimos dez anos – fizeram aumentar as importações.
Os primeiros anos do “milagre”
É muito fácil para as autoridades falar em azar para explicar os resultados medíocres, prometendo que a retomada se dará a partir deste ano. E, para justificar seu otimismo, passam a citar a pequena recuperação da atividade turística desde o fim de 2002 e, principalmente, excelentes índices pluviométricos no início do ano, que deveriam permitir à agricultura recuperar os níveis normais de produção.
Não é evidente, contudo, que o otimismo oficial se traduza em fatos reais e, mais do que um efeito passageiro da conjuntura, a desaceleração econômica poderia ser reveladora de males mais profundos que atingem a Tunísia. Se continuar em 2003, a degradação poderia pôr em risco o compromisso social em que se baseia o essencial da legitimidade do regime do presidente Ben Ali1. De fato, a partir do início da década de 90, uma vez liquidadas as seqüelas dos anos Mzali2 e abrandado o rigor dos programas de ajuste estrutural que se impuseram à Tunísia, o homem do 7 de novembro de 1987 inseriu-se na continuidade de seu antecessor, redistribuindo menos desigualmente que em outros lugares do Magreb os frutos de um crescimento regular, obtido no contexto de uma economia muito controlada e, ao mesmo tempo, amplamente aberta ao exterior. Os incontestáveis avanços sociais e a melhoria quase geral do nível de vida permitiram ao regime, dessa forma, fechar totalmente o campo político sem resistência importante por parte de uma população – em que as classes médias conquistaram uma posição central – preocupada, acima de tudo, em satisfazer sua sede de consumo (sobre o despertar do movimento de oposição, leia, nesta edição, o artigo de Kamel Jendoubi).
Má governança e corrupção galopante
Os incontestáveis avanços sociais e a melhoria quase geral do nível de vida permitiram ao regime fechar totalmente o campo político, sem resistência
Mas, com o início do novo século, essa dinâmica – que permitiu que o poder acreditasse estar à frente de um país emergente – começa a mostrar fragilidades que poderiam pressagiar o fim de um ciclo que seus bajuladores erigiram depressa demais em “modelo tunisiano”. Pior: o populismo sobre o qual o regime construiu o relativo consenso que ainda é sua força poderia voltar-se contra ele, à media que a nova situação econômica ameaça impedi-lo de satisfazer as aspirações materiais da população e, por conseqüência, suscitar reivindicações políticas que, por enquanto, são apresentadas por modestas oposições.
É que a economia enfrenta, no plano externo, o pouco fôlego de seus parceiros da União Européia e uma queda de suas receitas tradicionais por causa, em parte, de uma abertura com conseqüências mal controladas. No plano interno, ela começa a ser minada pelos estragos de uma má governança que se traduz – entre outras coisas – por uma completa opacidade da decisão e por uma corrupção galopante que começa a irritar seriamente as instituições financeiras internacionais. Não propriamente subdesenvolvida, mas ainda longe de ser verdadeiramente próspera, a Tunísia entra numa zona de turbulências da qual o poder, fortalecido em suas derivas pela indulgência manifestada pelos parceiros ocidentais desde 11 de setembro de 2001, parece incapaz de fazê-la sair.
Uma concorrência desigual
Mas essa dinâmica começa a mostrar fragilidades que prenunciam o fim de um ciclo que seus bajuladores se apressaram em erigir como “modelo tunisiano”
Apressada em aparecer como um bom aluno e na falta de qualquer perspectiva séria de integração magrebina, a Tunísia foi o primeiro país da costa sul do Mediterrâneo a assinar, em 1995, um tratado de livre comércio, sob muitos aspectos leonino, com a União Européia (ler, nesta edição, o artigo de Jean-Pierre Séréni). Se o princípio de semelhante acordo parece resultar do bom senso para uma pequena nação de recursos limitados e já muito voltada para os países europeus, com os quais realiza perto de três quartos de seu comércio, a lógica nele subentendida corre o risco, entretanto, de ter pesadas conseqüências. Principalmente porque sua implantação se dá simultaneamente a um desarmamento alfandegário geral, comandado pelas novas regras multilaterais elaboradas pela OMC. Além do mais, o desmantelamento daqui até 2005 do acordo multifibras assistirá à volta ao mercado europeu da produção têxtil ultracompetitiva dos países asiáticos. As contribuições alfandegárias para o orçamento do Estado já passaram de 9,8%, em 1996, para 5,4% em 20003. Se a essa ausência de lucros forem acrescentados os efeitos de um nepotismo fiscal que fecha um pouco mais os equilíbrios, outorgando aos próximos do poder todo tipo de exonerações, é possível prever que o agravamento do déficit orçamentário reduzirá também as margens de manobra financeiras do Estado, já oneradas pelo peso dos juros da dívida externa. Esta, na realidade, passou de 7,69 bilhões de dólares, em 1990, para 11 bilhões em 1998, ou seja, 56% do PNB4.
Mais grave: ao término de uma abertura que beneficiaria sobretudo os exportadores europeus, foram setores inteiros da atividade que, diretamente submetidos à concorrência das economias mais poderosas do globo nos mercados externos e no mercado nacional, sofreram com a aventura. Essencialmente constituído por um tecido cerrado de mais de 2.000 pequenas e médias empresas, muito descapitalizado, o setor têxtil foi o primeiro a sofrer com ela e já viu suas vendas para a Europa se desacelerarem desde 1999. No entanto, a disputa é importante, na medida que representa mais de 6% do PIB, quase a metade do emprego manufatureiro e das exportações de bens. A agricultura, outro setor chave da economia, também não está livre de perigos.
O insaciável apetite da “família”
A economia enfrenta, no plano externo, o pouco fôlego de seus parceiros europeus e uma queda das receitas, devido às conseqüências de uma abertura inábil
Retirando sua força do princípio de que o livre-câmbio só é bom para os outros, a União Européia concedeu migalhas aos exportadores tunisianos quando da renegociação da parte agrícola do tratado, em dezembro de 2000: enquanto aumentava marginalmente as quotas de azeite de oliva e de cítricos que os tunisianos têm o direito de exportar em franquia, obtinha um reforço das vantagens dadas a seus exportadores. Estes poderão vender à Tunísia até 500 mil toneladas de cereais com direitos alfandegários reduzidos a zero daqui até 2005, assim como 8 mil toneladas de carne e 9.700 toneladas de leite submetidas a impostos muito pequenos. Ora, os custos médios de importação dos cereais são amplamente inferiores aos preços de custo dos produtores tunisianos, dada a manipulação de preços a que se entrega a União Européia pelo viés das subvenções às exportações.
As autoridades tunisianas justificaram sua pressa em abrir o país à concorrência externa pela necessidade de atrair capitais estrangeiros. Porém, essencialmente concentrado no setor energético, irregularmente estimulado pela venda de algumas preciosidades do patrimônio do Estado, como as fábricas de cimento ou, mais recentemente, 52% do capital da União Internacional de Bancos (UIB), o investimento externo não tem o mesmo ritmo, apesar da aceleração das operações de privatização desde 2001. É verdade que a corrupção gerada pelo insaciável apetite da “família”, como é chamado em Túnis o entourage presidencial, pouco incita os investidores a se precipitarem para o país.
Estagnação e escândalos
Não propriamente subdesenvolvida, mas longe de ser um país rico, a Tunísia entra numa zona de turbulência da qual o poder parece incapaz de fazê-la sair
As conseqüências sociais do que parece muito uma reviravolta de conjuntura começam a se fazer sentir na taxa de desemprego, oficialmente avaliado em 16%, sem contar o subemprego em massa. Enquanto não ultrapassava 71 mil empregos no período de 1995 a 2000, a demanda adicional atinge 79 mil empregos anuais a partir de 2000, e os que têm diploma de curso superior representam uma parte crescente dos desempregados, a qual chegará perto de um terço em 2005. Somente a partir de 2010 é que a Tunísia, com uma demanda adicional de cerca de 54 mil empregos anuais, começaria a colher os frutos da forte queda de sua fecundidade5.
Durante a década de 90, as autoridades responderam ao crescimento sem precedentes da demanda através de uma política sistemática de estímulo ao crédito para o consumo, escolha politicamente rentável mas economicamente arriscada, sobretudo porque esse tipo de crédito é acompanhado por fenômenos particulares ligados às novas estratégias de sobrevivência: alguns compram a prazo bens duráveis e os revendem no mercado negro por um preço inferior ao custo total do crédito, a fim de disporem de dinheiro líquido para a satisfação de outras necessidades imediatas e qualquer que seja o custo no momento do reembolso. Sinal dos tempos, os processos por cheques sem fundos multiplicaram-se num país em que o índice de endividamento das famílias ultrapassa as normas ocidentais.
Todos conhecem, na prisão civil de Túnis, o “pavilhão Batam”, nome de uma grande cadeia de vendas a prazo que se tornou o símbolo da nova sociedade de consumo e que aceita os maus pagadores. Será que se caminha, pelo fato da estagnação da atividade e da queda do consumo, para uma crise de endividamento familiar? O retumbante pedido de concordata da empresa Batam em outubro de 2002, em condições suspeitas, poderia ser o primeiro episódio de uma crise que pesaria fortemente sobre os balanços dos bancos, onde a porcentagem de créditos duvidosos chega a até 30%6 do total dos créditos. Ainda que uma parte não desprezível dessas somas fantasmas provenha das “famílias” que a utilizam como uma forma de pilhagem, os observadores se perguntam sobre a capacidade dos bancos locais – que já não respondem às normas de prudência internacionais – para enfrentarem a chegada de seus concorrentes europeus, prevista no âmbito da zona de livre-câmbio.
O autismo autocrático do governo
A Tunísia foi o primeiro país da costa sul do Mediterrâneo a assinar, em 1995, um tratado de livre comércio, bastante desigual, com a União Européia
Queda da renda do turismo e das exportações, atividades emblemáticas do “sucesso” tunisiano, cautela dos investidores e aumento brutal do desemprego, os tunisianos estavam tanto menos habituados a esse marasmo na proporção em que o poder se tornou competente na arte da auto-satisfação. Mas os estremecimentos na UGTT – a grande central sindical há muito reduzida ao silêncio – ou o aumento espetacular da emigração clandestina de jovens para a Europa, mostram que os discursos tranqüilizadores já não bastam para acalmar as expectativas.
Além da necessidade de renegociar o acordo de livre comércio com a União Européia a fim de torná-lo mais eqüitativo, é de um novo consenso social e político que a sociedade precisaria para enfrentar as incertezas que estão por vir. Ora, é difícil ver como o regime do presidente Ben Ali promoverá as aberturas necessárias, fechado como está num autismo autocrático que o leva cada vez mais a reinar pelo medo. A economia não está, é evidente, à beira do abismo e os recursos de seu dinamismo estão longe de estarem todos gastos. Mas, se a pane se prolongar, a população não agüentará mais um autoritarismo que nada mais virá compensar. O mal-estar poderia, então, transbordar a esfera política onde, até agora, esteve confinado.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Ler “Course de vitesse en Tunisie”, Le Monde diplomatique, outubro de 2001.
2 – Assim chamados por causa do nome do primeiro-ministro de Bourguiba, Mohammed Mzali, cuja gestão desastrosa levou às revoltas de dezembro de 1983 e à assinatura, pela Tunísia, de seu primeiro programa de ajustes.
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